Avanços da lei

STJ tem criado jurisprudência essencial para proteção à criança

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7 de outubro de 2019, 9h34

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vai completar 30 anos em julho de 2020 e é considerado um marco de como os campos jurídico e político encaram e preservam os direitos das pessoas com menos de 18 anos.

O Superior Tribunal de Justiça fará na próxima quinta-feira (10/10) um evento para marcar o aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança, que também está completando 30 anos (adotada pela ONU em 1989, ela entrou em vigor e foi ratificada pelo Brasil em 1990).

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Aplicação efetiva das leis garantem proteção de fato e de direito para crianças e adolescentes 123RF

Em suas três décadas de existência, o STJ — cuja instalação se deu em 7 de abril de 1989 — tem criado jurisprudência essencial para a adequada aplicação dos dispositivos do ECA e de outros instrumentos jurídicos de proteção às crianças e aos adolescentes.

Sobre o ECA, o ministro Joel Ilan Paciornik destacou que é preciso haver uma proteção de fato e de direito para crianças e adolescentes. "De nada adiantará todo o aparato judicial preventivo se este não é aplicado de forma efetiva", observou o ministro. O estatuto seria um mecanismo essencial para essa proteção.

Já o ministro Napoleão Nunes Maia Filho destacou o fato de que a norma não determina responsabilidades só à família, mas também prescreve à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar à criança e ao adolescente os direitos fundamentais com absoluta prioridade.

O advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo (Condepe) e do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, afirmou que o Brasil tem uma das legislações mais modernas para a defesa de crianças e adolescentes, que introduziu muitos avanços: "O ECA ajudou a diminuir a mortalidade infantil, criou os conselhos tutelares e as varas da infância, e deu a base para os programas de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil."

Internação adequada
Porém, Ariel de Castro destacou que ainda há muito a ser feito, pois muitos estados não têm a estrutura necessária para a proteção dos mais jovens. "A atuação de tribunais como o STJ é particularmente importante nessa área, pois garante que a internação de menores seja adequada", asseverou. Um exemplo foi o voto do ministro Herman Benjamin no Recurso Especial (REsp) 1.653.359, que tratou da intervenção por irregularidades em um centro de internação em Belo Horizonte.

Em liminar, o juiz da Vara da Infância e da Juventude determinou o afastamento do gestor e a apresentação de um plano para sanear as irregularidades em 30 dias. Houve recurso afirmando que a apuração de irregularidades deveria passar pelo trâmite do processo administrativo, e a liminar foi cassada. No recurso ao STJ, foi pedido o restabelecimento da liminar.

O ministro Herman Benjamin observou que as irregularidades citadas nos autos eram muito graves, como a existência de esgoto a céu aberto, infestação de ratos e o acúmulo de lixo. Acrescentou que os dispositivos legais para a garantia de direitos do ECA não podem ser encarados como uma abstração dos princípios e das finalidades para os quais foram criados, e o artigo 193 do estatuto dá ao juiz da vara de infância o poder de determinar prazo para a correção de irregularidades.

Sujeitos de direitos
A educação foi um ponto muito enfatizado na elaboração do ECA — e é o de maior importância, para grande parte dos especialistas. O mestre em pedagogia, consultor e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB) José Ivaldo Araújo de Lucena destacou que houve uma mudança na concepção de criança e adolescentes.

"Havia uma perspectiva caritativa ou assistencialista. Depois do ECA, os mais jovens são sujeitos de direitos, algo já previsto na Constituição Federal de 1988. O estatuto e a educação são de crucial importância no processo de identificação e intervenção efetiva em situações de violação desses direitos", observou.

Lucena declarou ainda que a legislação reconhece que crianças e jovens passam por um processo complexo de desenvolvimento fisiológico, emocional e social, e necessitam de proteção e garantias para obter educação.

Um exemplo é a garantia dada a crianças de serem matriculadas em creches próximas à residência, assim como a obrigação estatal de prover esse serviço, como apontado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho no REsp 1.697.904. O ministro destacou que há um direito subjetivo à educação e, portanto, não há discricionariedade da administração pública para negá-lo.

Já a ministra Assusete Magalhães observou, ao julgar agravo interno no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 1.223.450, que esse tema foi considerado de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, mas o sobrestamento de um recurso especial não impede o provimento de eventual medida de urgência se são preenchidos os seus requisitos legais.

Garantindo direitos
Além da educação, a saúde e a própria subsistência das pessoas que não atingiram a maioridade foram assuntos de outros recursos no STJ. O professor José Ivaldo de Lucena assinalou que, do ponto de vista do desenvolvimento cerebral, áreas responsáveis por controle de impulsos, emoção, tomadas de decisão e sexualidade podem só estar maduras aos 25 anos. "Essa situação especial deve ser protegida no âmbito das políticas sociais voltadas para a criança e o adolescente."

Essa proteção aparece no voto do ministro Herman Benjamin no REsp 1.726.973, que considerou que o ECA dá à criança e ao adolescente sob guarda uma condição de dependente para todos os efeitos, incluindo-se os previdenciários. No caso, um avô entrou com mandado de segurança para que o neto sob sua guarda tivesse o direito de assistência à saúde. No julgamento do caso pelo STJ, o ministro reconheceu o direito à assistência.

Menores sob guarda também fazem jus a pensão. No seu voto no REsp 1.411.258, o ministro Napoleão considerou que, embora a Lei 9.528/1997 tenha excluído quem está sob guarda do rol dos dependentes, isso não muda o fato de haver uma dependência financeira. "Do ponto de vista ideológico, seria um retrocesso normativo incompatível com as diretrizes constitucionais de isonomia e de ampla e prioritária proteção à criança e ao adolescente", acrescentou.

Crimes sexuais
O ECA é um instrumento de proteção do Estado para os mais jovens. O advogado Ariel de Castro Alves informou que, mesmo com a melhoria de vários índices nos últimos anos, ainda há 3,5 milhões de brasileiros na faixa de 4 a 16 anos fora da escola, muitos deles em situação de rua e explorados no trabalho infantil ou sexualmente. Segundo o advogado, a prevenção por meio de políticas sociais custa menos que a repressão.

"As mortes violentas de crianças e jovens aumentaram nos últimos anos, chegando a 29 por mil em 2017", alertou. Problemas com a exploração sexual também têm crescido. As decisões do STJ vêm ajudando a combater essa realidade.

Em recurso julgado pela 6ª Turma em junho deste ano (processo em segredo de Justiça), o ministro Rogerio Schietti Cruz invocou o princípio da proteção integral ao julgar um caso de estupro de vulnerável, cometido contra uma menina com menos de 14 anos. Na ação, o réu alegou que o ato não havia sido consumado, o que descaracterizaria o estupro — argumento aceito nas instâncias ordinárias.

No seu voto, o ministro deu provimento ao recurso para reconhecer que, mesmo naquelas circunstâncias, ficou configurado o crime previsto no artigo 217-A do Código Penal — ou seja, manter relação sexual ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Condenado o réu no STJ, o processo foi devolvido ao tribunal de origem para o cálculo da pena.

Em julgamento de agosto de 2017, na 5ª Turma (processo em segredo), o ministro Joel Ilan Paciornik asseverou que uma suposta liberdade de escolha da vítima ou o não tolhimento de sua liberdade não descaracterizam a exploração sexual de crianças e adolescentes. Paciornik ponderou que, segundo a jurisprudência firmada pelo STJ, a aparente concordância do menor com os atos sexuais não tem o mesmo valor dado à de quem já atingiu a vida adulta.

Adoção à brasileira
O combate a irregularidades como a chamada a "adoção à brasileira" (quando se registra o filho de outro como se fosse próprio, com conhecimento disso) é outra marca da atuação do STJ. No Recurso em Habeas Corpus (RHC) 506.899, o ministro Moura Ribeiro afirmou que, em casos nos quais ainda não estejam estabelecidos laços afetivos entre as crianças e os pretensos guardiães, é possível abrigar o menor em instituição, até ele ser colocado em uma família registrada legalmente no cadastro de adoção.

Segundo o magistrado, a jurisprudência considera possível permanecer com a família que praticou a adoção irregular — se não houver riscos evidentes de danos físicos e psíquicos e já tiverem sido constituídos laços afetivos. Mas, na situação analisada, a convivência foi de apenas quatro meses.

Para o professor Lucena, o ECA é a materialização de décadas de discussões e o resultado de uma luta por direitos iniciada com a redemocratização. "Com ele, temos uma ferramenta para o atendimento de suas necessidades, considerado seu processo de desenvolvimento no âmbito das suas famílias e da sociedade, numa perspectiva cidadã para as crianças e adolescentes", declarou. O que é necessário, segundo ele, é implementar de fato o estatuto.

O advogado Ariel de Castro Alves afirmou que a lei ainda é, em grande parte, desrespeitada. "Muitos avanços na garantia dos direitos previstos no ECA decorreram de decisões judiciais, especialmente do STJ", completou. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

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