Limite Penal

O que implica a devida diligência na violência doméstica?

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Fernanda Pacheco Amorim

    é advogada doutoranda em Direito na UFPR mestra em Ciências Jurídicas na Univali pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai te amo sempre" feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

4 de outubro de 2019, 13h01

Spacca
A questão das violências contra as mulheres [1] é pauta que tem sido levantada – de forma necessária – mais avidamente atualmente. O Brasil, segundo o Mapa da Violência de 2015, é o 5º país do mundo com as maiores taxas de homicídios contra as mulheres. Os números de estupros, agressões físicas, psicológicas[2], patrimoniais e tantas outras são alarmantes.

Tendo isso em vista, é importante reconhecer que o Brasil possui uma lei de violência doméstica (Lei Maria da Penha), que traz mecanismos interessantes de combate e prevenção à questão das mulheres. Apesar disto, a Lei Maria da Penha não é suficiente para evitar que muitas mulheres virem estatística.

Pensando nisso, faz-se essencial recordar que o Estado brasileiro é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. A CADH procura positivar os direitos humanos reconhecendo sua universalidade, conforme exposição trazida em seu preâmbulo, e seu artigo 1 é, segundo Mac-Gregor e Möller[3], a pedra angular do sistema de direitos e liberdades constantes na totalidade do documento.

O referido artigo traz aos Estados partes da CADH os deveres de respeitar e garantir os direitos e liberdades expostos no documento. São dois momentos distintos e complementares de atuação estatal previstos no artigo, inicialmente os Estados Partes se comprometem a respeitar os direitos e liberdades positivados na Convenção, ou seja, há responsabilidade direta dos Estados Partes, incluindo-se os agentes públicos, em não infringir os direitos impostos pela Convenção, direta ou indiretamente.

Na segunda parte do artigo é apresentado o dever de garantir o livre e pleno exercício dos direitos elencados na CADH a toda pessoa sujeita à jurisdição dos Estados Partes sem qualquer tipo de discriminação, ressaltando-se o fato de que a Convenção esclareceu que pessoa é todo ser humano. O dever de garantia nada mais é que o encargo dado aos Estados de assegurar, de todas as formas razoavelmente viáveis, o exercício dos direitos pelas pessoas, criando mecanismos materiais de proteção aos direitos bem como meios de efetivação desses. Preocupando-se com a proteção formal e material dos direitos humanos, a CADH complementou a tutela do artigo 1 com o disposto no artigo 2.

Observa-se com isso, a incumbência posta aos Estados Partes de adotar, caso ainda não existentes, preceitos legislativos ou de qualquer outra natureza que se façam necessários para efetivar os direitos e liberdades garantidos pela CADH, ou seja, cabe aos Estados Partes a prevenção e o combate, através de todos os mecanismos que estiverem disponíveis e mais os que possam ser criados para tanto, às violações aos direitos humanos sustentados pela Convenção, sejam estas cometidas pelo poder público, sejam cometidas por particulares, conforme já amplamente explicado pela CIDH no caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras.

A este dever do Estado de atuar com o intuito de prevenir as possíveis violações a direitos humanos cometidas pelos seus agentes ou por particulares, sob pena de responsabilização internacional, de utilizar mecanismos disponíveis e ainda criar mecanismos a fim de garantir o pleno gozo dos direitos humanos dá-se o nome de devida diligência.

A devida diligência é efetivamente a adoção de medidas legislativas ou não que possam auxiliar no combate e na precaução necessários em relação aos direitos humanos que são ou que possam ser violados. A inércia dos Estados Partes perante as violações que sabe acontecer em seu território, desde que razoavelmente evitáveis a partir de políticas públicas que possam ser adotadas, já bastam para que reste comprovada a ausência de devida diligência e, consequentemente, seja possível a responsabilização internacional.

Hoje, há uma série de tecnologias disponíveis que podem ser utilizadas no combate às diversas violências existentes, especialmente – em razão da proposta deste escrito –, em relação à questão das mulheres. Portanto, cabe ao Estado brasileiro atuar com devida diligência e começar a investir em novos mecanismos que possam agir preventivamente, sejam eles tecnológicos, sejam de educação sobre a questão de gênero.

Propôs-se, na obra Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher publicada pela EMais Editora, a construção de um software de controle de medida protetiva, chamado MINA (Monitoramento por Inteligência Artificial) que envolve geolocalização, reconhecimento facial, inteligência artificial etc. numa tentativa de efetivação dos direitos humanos das mulheres e atuação preventiva por parte do Estado. As novas tecnologias são uma realidade, interagimos com inteligências artificiais no nosso dia a dia (como você acha que as assistentes pessoais do celular respondem, ou a Netflix escolhe quais filmes te indicar?), só falta começarmos a usá-las a nosso favor!

E, em relação ao Estado brasileiro, caso a quantidade alarmante de violências contra as mulheres que acontecem todos os dias, o número de feminicídios, de estupros, agressões etc. não forem suficientes para motivar um investimento em prevenção e atuação proativa no combate a essa realidade, talvez a possibilidade de sanções internacionais em razão do desrespeito à devida diligência possa estimular a atuação. Seguimos juntxs, lutando, com todos os mecanismos, por questões básicas: respeito, igualdade e, essencialmente, a vida de todas as mulheres.

Parte deste artigo faz parte da obra: Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher de Fernanda Pacheco Amorim, publicada pela EMais Editora.


[1] Sobre a devida diligência estatal em relação aos direitos das mulheres é essencial a obra: MARCON, Chimelly Louise de Resenes. Já que Viver é Ser e Ser Livre: a devida diligência como standard de proteção dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[2] Sobre violência psicológica Ana Luisa escreveu obra necessária: RAMOS, Ana Luisa Shmidt. Violência Psicológica contra a mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal. EMais Editora: Florianópolis, 2019.

[3] FERRER MAC-GREGOR, Eduardo; PELAYO MOLLER, Carlos Marìa. La obligación de “respetar” y “garantizar” los derechos humanos a la luz de la jurisprudência de la corte interamericana: análisis del artículo 1º del pacto de San José como fuente convencional del derecho procesal constitucional mexicano. Estudios Constitucionales, Santiago, v. 10, n. 2, p. 141-192, 2012. Disponível em: <https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-52002012000200004&Ing=es&nrm=iso>.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

  • é advogada, doutoranda em Direito na UFPR, mestra em Ciências Jurídicas na Univali, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst, autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai, te amo sempre", feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

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