Direitos Fundamentais

Direitos de personalidade e controle jurisdicional de conteúdos na Internet na Europa

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4 de outubro de 2019, 11h09

Como noticiado precisamente pela ConJur, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu, em 3/10/19, num caso oriundo da Justiça Austríaca, que o Direito da União Europeia permite que um provedor de conteúdo — no caso também as mídias sociais — como o Facebook, seja obrigado a suprimir comentários idênticos ou mesmo similares a comentário (s) que já fora declarado como sendo ilícito. Da mesma forma — e cuida-se de aspecto ainda mais relevante e impactante — o TJUE — afirmou que tal medida inibitória venha a produzir efeitos em escala mundial, no âmbito do direito internacional que os Estados-Membros da União devem observar.

No que concerne ao caso concreto que deu ensejo à decisão do TJUE, valemo-nos aqui — a despeito bem redigido resumo publicado hoje na ConJur — do texto publicado no informativo online do próprio TJUE, disponível, aliás, em diversas línguas, ressaltando-se que no caso do Português, se cuida da versão lusitana, no qual provavelmente se baseou a notícia veiculada pela ConJur.

Segundo tal informativo, E. Glawischnig-Piesczek, que era Deputada no Nationalrat (Conselho Nacional, Áustria), e Presidente do grupo parlamentar «die Grünen» (Os Verdes), além de porta-voz federal desse partido, instaurou uma ação contra o Facebook da Irlanda perante a Justiça austríaca, requerendo que fosse ordenado ao Facebook o apagamento de comentário ofensivo à sua honra, publicado por um usuário dessa rede social, assim como fossem retirados conteúdos idênticos ou semelhantes.

O objeto da insurgência foi o compartilhamento, por meio do Facebook, na página pessoal de um usuário, de um artigo da revista austríaca de informação em linha oe24.at, intitulado «Os Verdes: a favor da manutenção de um rendimento mínimo para os refugiados». Em consequência disso, gerou-se, nessa página, uma «janela de pré-visualização» da página de origem, que continha o título desse artigo, um breve resumo deste último e uma fotografia da parlamentar autora da demanda. Além disso, o mesmo usuário publicou um comentário do artigo referido, valendo-se de uma redação que os órgãos jurisdicionais austríacos declararam ser suscetível de ofender a honra da então líder do Partido Verde austríaco, no sentido de a injuriar e de a difamar, comentário disponível a todos os usuários do Facebook.

Ao examinar a matéria, Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) solicitou ao TJUE — por meio do assim chamado reenvio prejudicial —[1], que declinasse a sua interpretação da Diretiva da União Europeia sobre o comércio eletrônico 1. De acordo com o Informativo do TJUE, segundo tal Diretiva, “a responsabilidade de um fornecedor de armazenamento como o Facebook, não pode ser invocada no que respeita à informação armazenada quando este não tenha conhecimento da ilicitude ou quando atue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso a essas informações a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude. Tal exoneração não impede, no entanto, que seja ordenado ao fornecedor de armazenamento que ponha termo a uma infração ou que previna uma infração, nomeadamente suprimindo as informações ilegais ou impossibilitando o acesso a estas últimas. Em contrapartida, a diretiva proíbe a imposição, a um fornecedor de armazenamento, de vigilância, de maneira geral, sobre as informações que armazena, ou de procurar ativamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes”.

À vista da consulta da Corte austríaca, o TJUE, na decisão ora reportada, respondeu “que a Diretiva sobre o comércio eletrônico[2], que visa estabelecer um justo equilíbrio entre os diferentes interesses em jogo, não se opõe a que um órgão jurisdicional de um Estado-Membro possa ordenar a um fornecedor de armazenamento:

— que suprima as informações por si armazenadas cujo conteúdo seja idêntico ao de uma informação declarada ilegal anteriormente ou que bloqueie o acesso às mesmas, seja qual for o autor do pedido de armazenamento dessas informações;

— que suprima as informações por si armazenadas cujo conteúdo seja semelhante ao de uma informação declarada ilegal anteriormente ou que bloqueie o acesso às mesmas, na medida em que a vigilância e a procura das informações a que essa medida inibitória diz respeito estejam limitadas às informações que veiculem uma mensagem cujo conteúdo permaneça, em substância, inalterado em relação ao que deu lugar à declaração de ilicitude e que contenham os elementos especificados na medida inibitória, e as diferenças na formulação desse conteúdo semelhante relativamente à que caracteriza a informação declarada ilegal anteriormente não sejam suscetíveis de obrigar o fornecedor de armazenamento a proceder a uma apreciação autónoma desse conteúdo (o fornecedor de armazenamento pode assim recorrer a técnicas e a meios de pesquisa automatizados);

— que suprima as informações a que a medida inibitória diz respeito ou que bloqueie o acesso às mesmas a nível mundial, no âmbito do direito internacional relevante que cabe aos Estados Membros ter em conta” (fim da transcrição do informativo).

Tal decisão — e é este precisamente o nosso limitado intento nesta coluna — revela, ao menos em parte, uma sintonia do TJUE em relação a julgamentos (aqui relativos à regulação de conteúdos na Internet) da outra instância judiciária supranacional Europeia, designadamente a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), que, diferentemente do TJUE, que vela pela aplicação (e interpretação) da Carta Europeia de Direitos Fundamentais[3], que vincula apenas os Estados-Membros da União Europeia, é o Órgão instituído e encarregado de zelar pela proteção e efetividade dos direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos[4], atualmente ratificada por 47 países, neles incluídos os integrantes da União Europeia.

Note-se, ainda, que dadas as diversas competências das duas Cortes da Europa e sua independência entre si, não raras vezes as suas decisões diferem em maior ou menor medida, ao que se soma o fato de que os órgãos judiciários nacionais (em parte, em se tratando dos membros da União Europeia, vinculados às duas Cortes) devem observar as decisões de tais cortes e nem sempre o fazem, ou eventualmente não da mesma forma como decidido pelas instâncias judiciárias europeias.

Mas, dito isso, o que aqui importa é, em caráter sumário, demonstrar que existe um crescente e processo de harmonização da jurisprudência do TJUE e da CEDH no que diz com a proteção dos direitos fundamentais da União Europeia e os direitos humanos da Convenção, o que também tem sido possível registrar em relação à matéria aqui versada.

Em caráter ilustrativo, cita-se o julgado da CEDU no caso Belkacem v. Belgium, de 27/6/2017[5]. Em apertada síntese, o caso versava sobre a legitimidade (na perspectiva da ConvEDH) da condenação criminal (em 2012) à pena de dois anos de prisão do cidadão belga Belkacem, líder e porta-voz da organização “Sharia4Belgium”, pelo fato de ter postado na plataforma do YouTube, vídeos de caráter ofensivo, e incitando à discriminação de pessoas não-mulçumanas, tendo como alvo principal o então Ministro da defesa daquele país.

Note-se que nos referidos vídeos foi deflagrada uma convocação dos internautas para a dominação e para a conflagração de atos de combate alicerçados na apologia da jihad e da sharia, tendo Belkacem sido processado com fundamento na Belgium’s Anti-Discrimination Law de 2007. De acordo com a Corte de Antuérpia, restara manifesto o caráter intencional, explícito e reiterado das ofensas e incitações à discriminação e violência, aplicando, além da pena restritiva de liberdade, multa no valor de quinhentos e cinquenta euros. A decisão condenatória, salvo quanto à revisão do tempo de prisão, foi mantida em grau de apelação (2013).

Em face de recurso individual interposto em abril de 2014, alicerçado na negativa dos atos de incitamento e do discurso de ódio, bem como com arrimo no seu direito à liberdade de expressão, assegurado pelo artigo 10 da ConvEDH, a CEDH, entendeu configurado o abuso no exercício dessa liberdade, por conta do caráter ofensivo, discriminatório e violento do conteúdo dos vídeos postados pelo recorrente, direcionado a todos não-muçulmanos, aplicando ao caso concreto o disposto no artigo 17 da referida Convenção.

De acordo com a CEDH, o conteúdo dos vídeos e as respectivas manifestações de Belkacem configuram ataque aos valores da tolerância, da paz social e da não discriminação que subjazem e permeiam a ConvEDH. Em especial no tocante às referências de Belkacem sobre a Sharia, a Corte reiterou seu entendimento — mencionado na parte introdutória — de que a propagação na internet de discursos apologéticos convocando para atos de violência pode ser classificada como discurso do ódio e que, por tal razão, cada Estado signatário da Convenção tem o direito de se opor a movimentos de tal natureza baseados em fundamentalismo religioso. Disso resulta que a legislação belga, com base na qual se deu o juízo condenatório de Belkacem, é plenamente compatível com a ConvEDH, a jurisprudência da Corte e as recomendações do Conselho da Europa, destinadas a combater o incitamento ao ódio, à discriminação e à violência.

Uma vez apresentados ambos os julgados, o que se pretende aqui destacar é que, a despeito de o caso apreciado pela CEDH tenha tido por objeto a regulação (e seus limites) do assim chamado discurso de ódio na Internet, ao passo que a decisão do TJUE tenha se debruçado sobre conteúdos de caráter injurioso e ofensivo em termos gerais (mas que não podem em si serem qualificadas como sendo um autêntico discurso do ódio), em ambos os casos foi assegurada aos Estados-Membros da União Europeia e signatários da Convenção, margem de apreciação relativamente ampla para regular o estabelecimento de limites a conteúdos tidos como ilícitos postados e compartilhados na Internet.

Além disso, e mesmo que este não tenha sido aspecto versado na decisão da CEDH, há que destacar que, no que diz com o TJUE, na esteira do que já havia decidido no julgamento do caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja González (2014), sobre o assim chamado direito ao esquecimento, as medidas determinadas pelo Tribunal e também instâncias nacionais, são aplicáveis em todos os Estados-Membros da União Europeia (como também aos signatários da Convenção de Direitos Humanos, em se tratando de decisão da CEDH), mas também em escala mundial, como agora decidiu o TJUE.

Tal tendência, de atribuir efeitos e executoriedade internacional (para além mesmo das fronteiras territoriais da jurisdição própria das cortes supranacionais), embora apresente virtudes, não deixa — como já tem sido discutido — de trazer uma série de problemas e preocupações, inclusive de natureza prática, como, por exemplo, relacionadas a questões tecnológicas, processuais, dentre outras.

O fato, todavia, é que o problema da regulação de conteúdos na Internet, o modo pela qual esta se deve realizar e os seus respectivos meios e limites, é de cimeira relevância, seja para a efetividade dos direitos humanos e fundamentais, seja para a salvaguarda da Democracia e dos princípios do Estado de Direito. Mas é também justamente aqui que se tem percebido o quão difícil é conciliar interesses e direitos tão distintos e muitas vezes colidentes, sem prejuízo de assegurar a todos os níveis mais elevados possíveis de proteção.


1 A título de esclarecimento, calha recordar que o instituto do reenvio prejudicial permite aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros da União Europeia, no âmbito de um litígio que lhes seja submetido, consultar o TJUE sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade de um ato da União. Ainda nesse contexto, é de se destacar que o TJUE não resolve o litígio nacional, porquanto ao órgão jurisdicional do Estado-Membro cabe decidir o processo em conformidade com a decisão do Tribunal de Justiça, naquilo em que fixou de modo então vinculativo determinada interpretação. Além disso, a decisão do TJUE também vincula os outros órgãos jurisdicionais nacionais aos quais seja submetido um problema semelhante.

2 1 Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a determinados aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrônico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrônico» – JO 2000, L 178, p. 1: www.curia.europa.eu.

3 A Carte de Direitos Fundamentais da União Europeia foi aprovada em Nice, França, em 2000, tornando-se normativa vinculante para todos os Estados-Membros com a sua incorporação ao Tratado da União Europeia (Tratado de Lisboa) de 2009.

4 A Convenção Europeia de Direitos Humanos foi adotada pelo Conselho da Europa em 04.11.1950 e entrou em vigor em 1953. A Convenção instituiu dois órgãos para zelar pela sua aplicação e efetividade, um de natureza jurisdicional, no caso a Corte Europeia de Direitos Humanos, outro de natureza executiva e mesmo deliberativo-normativa, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa.

5 A respeito da decisão, conferir: <http://hudoc.echr.coe.int/eng-press?i=003-5795519-7372789>

Acesso em: 01.out.2018; Para conferir a decisão na íntegra, v. CEDH, Cour (Deuxième Section), 27 juin 2017, 34367/14: <https://www.doctrine.fr/d/CEDH/HFDEC/ADMISSIBILITY/2017/CEDH001-175941>. Acesso em: 01.out. 2018

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