Interesse Público

Mediação e arbitragem nas desapropriações: faculdade ou dever?

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3 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
No prefácio ao meu último livro, Controle e Consensualidade, publicado pela editora Forum, Belo Horizonte, 2019, o professor Fabrício Motta vaticinou, com especial sutileza, a relação que meus estudos acadêmicos têm com o tema da consensualidade. Segundo o prefaciador, a consensualidade, “antídoto ao autoritarismo e à imperatividade”, é minha paixão.[1]

De fato, a força do diálogo social e institucional e a construção bilateral e/ou plurilateral de relações jurídicas no âmbito da administração pública, apresentam-se, a meu juízo, como combustíveis eficazes à solução de diversos problemas práticos, o que justifica meu particular apreço quanto ao tema.

E é por essa razão que a grande maioria dos trabalhos científicos que produzi nos últimos anos – e das colunas publicadas neste espaço da ConJur – desenvolve-se em torno da temática da consensualidade aplicada ao Direito Administrativo.

Sobre essa perspectiva no âmbito das desapropriações, por exemplo, publiquei recentemente a coluna “Por um contencioso administrativo do justo preço nas desapropriações”, na qual sustentei, em síntese, a oportunidade da valorização da fase administrativa da desapropriação como locus ideal para a discussão do justo preço expropriatório, “potencializando o uso de instrumentos de consenso na resolução do conflito (consensualidade), sem a necessidade de travamento de batalhas infinitas na esfera judicial.”

Na mesma linha de pensamento, dividi com o professor lusitano Jorge Bacelar Gouveia, o artigo intitulado Procedimento Expropriatório e Administração Pública Dialógica: estudo comparativo da expropriação no Brasil e Portugal. [2]

Tivemos a oportunidade de anotar que, diante da frustração da etapa administrativa da expropriação em Portugal, “o processo será remetido para arbitragem, com recurso posterior para os tribunais comuns. É a arbitragem, portanto, que dá início à expropriação litigiosa em Portugal. A arbitragem é forma de resolução extrajudicial de conflitos (com efeitos jurisdicionais de primeiro grau), que busca solução substitutiva da vontade das partes no processo expropriatório.”[3]

Mais à frente continuamos a destacar “o quão interessante é a experiência portuguesa de aplicação da arbitragem ao processo expropriatório. Dita experiência serve de baliza para o processo expropriatório no Brasil, sobretudo porque com a edição da Lei 13.129 de 27 de maio de 2015, que alterou a Lei 9.307/96, a legislação brasileira passou a admitir que a Administração Pública direta e indireta possa se utilizar da arbitragem para dirimir litígios referentes a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º, §§1º e 2º). A arbitragem pode ser realizada na etapa administrativa do processo expropriatório (art. 10, DL 3.365/41), antes do ingresso com a ação judicial respectiva, ou no curso da ação, após a suspensão do processo deliberada consensualmente pelas partes.”

O epílogo desta parte do nosso artigo reconheceu que “seria deveras um avanço se a Administração Pública Brasileira evoluísse no sentido de submeter procedimentos de expropriação, quando não à “distensão democrática” do processo administrativo, pelo menos à arbitragem, demonstrando disposição de se submeter à solução justa e imparcial dos conflitos expropriativos.”

No último dia 27.08.2019, entrou em vigor no Brasil a Lei 13.867, de 26 de agosto de 2019, que alterou o DL nº 3.365, de 21 de junho de 1941, possibilitando o uso da mediação e da arbitragem para a definição dos valores de indenização nas desapropriações por utilidade pública, aplicável também às por interesse social regidas pela Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, por força do art. 5º desta.[4]

Assim como imaginávamos, a nova legislação se ocupou de introduzir, após a fase declaratória de desapropriação – de medeio entre a fase executiva administrativa e a judicial – a possibilidade de uso da mediação e da arbitragem como instrumentos legitimamente vocacionados à definição do justo preço indenizatório nas desapropriações.

De acordo com o novo art. 10-A do Decreto lei 3365/41, introduzido pela Lei 13.867/19:

“Art. 10-A. O poder público deverá notificar o proprietário e apresentar-lhe oferta de indenização.

§ 1º. A notificação de que trata o caput deste artigo conterá:

I – cópia do ato de declaração de utilidade pública;

II – planta ou descrição dos bens e suas confrontações;

III – valor da oferta;

IV – informação de que o prazo para aceitar ou rejeitar a oferta é de 15 (quinze) dias e de que o silêncio será considerado rejeição;

V – (VETADO).

§ 2º Aceita a oferta e realizado o pagamento, será lavrado acordo, o qual será título hábil para a transcrição no registro de imóveis.

§ 3º Rejeitada a oferta, ou transcorrido o prazo sem manifestação, o poder público procederá na forma dos arts. 11 e seguintes deste Decreto-Lei”.

Observe-se que o novo art. 10-A do DL 3.365/41 trata primeiramente da etapa administrativa da desapropriação, prevendo a notificação do expropriado para a aceitação do preço apresentado pela Administração ou por quem lhe faça as vezes (concessionários e demais empresas privadas). Se a proposta for aceita, a desapropriação será “amigável”, entabulando-se um acordo entre as partes.

Por outro lado, se a proposta for rejeitada, a nova redação do decreto lei abre para o expropriado duas vias: (a) a tradicional disputa pelo justo preço na esfera judicial; (b) a opção pela mediação ou pela arbitragem, indicando um dos órgãos ou instituições especializadas, previamente cadastrados pelo órgão responsável pela desapropriação (Art. 10-B), para resolver a controvérsia.

A mediação seguirá as normas da Lei 13.140/15 e, subsidiariamente, os regulamentos do órgão ou instituição responsável. A arbitragem seguirá as normas da Lei 9.307/96 e, subsidiariamente, os regulamentos do órgão ou instituição responsável.

Numa primeira leitura, a redação do novo art. 10-B do DL 3.365/41 pode dar a impressão de que a opção pela via da mediação e da arbitragem constitui direito subjetivo do expropriado e consequentemente um dever jurídico do executor da desapropriação. Na verdade, o expropriado tem o direito subjetivo a manifestar a sua opção pela mediação e/ou pela via arbitral. Mas daí não se impõe dever de acatamento pela Administração ou quem lhe faça as vezes, sem juízo de discrição.

Com efeito, as razões do veto do Presidente da República ao inciso V do §1º do art. 10-A do DL 3.365/41 deixam ver que foi exatamente essa obrigação que se pretendeu extirpar com a oposição presidencial. É que o preceptivo vetado dizia que a notificação do expropriante deveria trazer “a informação de que o proprietário pode optar por discutir o valor da indenização por meio de mediação ou pela via arbitral, com menção expressa à possibilidade de a indenização ser fixada em valor menor do que o inicialmente ofertado e indicação dos órgãos ou instituições aptos a realizar o respectivo procedimento.”

Segundo as razões do veto “o dispositivo estabelece a obrigatoriedade de notificação do poder público ao proprietário com a oferta de indenização e a opção do particular em discutir o valor por meio de mediação ou pela via arbitral. Ocorre que a proposta permite interpretação de que a arbitragem e mediação são facultativas ao expropriado, mas obrigatórias ao poder público, restringindo a possibilidade da devida avaliação prévia da conveniência e oportunidade da adesão ao procedimento de mediação ou arbitragem pelo poder público, o que viola o princípio da inafastabilidade do acesso ao poder judiciário previsto no inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República de 1988”.

A despeito de não se concordar com a fundamentação expressa na parte final do veto (calcada no princípio da inafastabilidade do acesso ao poder judiciário), parece-me extreme de dúvida que com ele o acatamento compulsório da mediação e da via arbitral pelo executor da desapropriação tornou-se uma faculdade e não um dever. Não consigo extrair da redação do art. 10-B do DL 3.365/41 uma obrigação imposta à Administração Pública de adesão compulsória aos procedimentos da mediação e da arbitragem. [5]

Desse modo, tendo o expropriado registrado a opção pela mediação ou pela arbitragem ou por ambas sequencialmente, abre-se uma faculdade ao executor da desapropriação (discricionariedade), a de acatar ou não a proposta do expropriado pelos métodos extrajudiciais de solução da controvérsia.

Bem de ver que é possível que a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios editem regulamentos (art. 84, IV da Constituição), com o objetivo de disciplinar, nos respectivos âmbitos, a obrigatoriedade do acatamento da proposta do expropriado, quando devidamente exercida. [6]

Com efeito, não obstante ser privativa da União a competência para legislar sobre desapropriação (art. 22, II da Constituição), é viável, mercê do pertencimento ao campo da ação administrativa, a limitação da discricionariedade administrativa das entidades legitimadas ao procedimento expropriatório, mediante a edição de atos normativos inferiores à lei, tornado obrigatório o uso da mediação e da arbitragem nas desapropriações.

Tal como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello “o regulamento tem cabida quando a lei pressupõe, para sua execução, a instauração de relações entre a Administração e os administrados cuja disciplina comporta um certa discricionariedade administrativa”, arrematando que “o regulamento coarta essa discrição, pois limita a conduta que órgãos e agentes terão de observar e fazer observar.”


[1] FERRAZ, Luciano. Controle e Consensualidade. Belo Horizonte: Forum, 2019. p. 17.

[2] FERRAZ, Luciano. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Procedimento Expropriatório e Administração Pública Dialógica: estudo comparativo da expropriação no Brasil e Portugal, Revista Brasileira de Estudos Políticos, https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/445/364. Este artigo é resultante do Relatório Final apresentado pelo autor desta coluna para a obtenção do Diploma de Pós-doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, no ano de 2016, sob a orientação do Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia.

[3] Conforme registro de Marçal Justen Filho, “a difusão da arbitragem produzirá a substituição dos critérios decisórios nos litígios entre a Administração e particular. A ausência de documentação das decisões administrativas e a omissão em decisão tempestiva criarão o risco de derrota da Administração. A invocação a princípios abstratos (‘interesse público’, por exemplo) poderá ser insuficiente para superar defeitos na conduta administrativa.” (JUSTEN FILHO, Marçal. A revolução secreta nos contratos públicos: como a cultura da arbitragem muda a vinculação aos contratos (https://www.jota.info/opinião-e-analise/colunas/publicistas/a-revolução-secretas-nos-contratos-publicos-24092019)

[4] Art. 5º No que esta lei for omissa aplicam-se as normas legais que regulam a desapropriação por unidade pública, inclusive no tocante ao processo e à justa indenização devida ao proprietário.

[5] Nesse particular estou a divergir do pensamento de PEREIRA, César. Desapropriação e Arbitragem: a Lei 13.867. Disponível em https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI310114,101048-Desapropriacao+e+arbitragem+lei+13867.

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 7. ed., São Paulo: Malheiros, 1995. p. 200.

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