Opinião

Constituição Federal vs Eficiência: a importância da decisão do STF no HC 166373

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3 de outubro de 2019, 13h15

“Percebe-se com mais clareza esse propósito ideológico quando o Estado é descrito como um “interesse coletivo”. Na verdade, a população de um Estado está dividida em vários grupos de interesses mais ou menos opostos entre si. A ideologia de um interesse coletivo de Estado é usada para ocultar esse inevitável conflito de interesses.”[1]

No dia 2/10/2019, o STF, ao julgar definitivamente o HC n° 166.373, formou maioria (7×4) para fixar o entendimento de que o réu-delatado tem o direito de ser ouvido depois do réu-delator na fase instrutória do processo penal, como medida de concretização da ampla defesa.

O STF acertou. A Lei n° 12.850/2013, que criou no Brasil a figura da colaboração premiada como meio de prova, é omissa quanto às posições processuais desses “réus qualificados”, tornando o CPP 403 insuficiente para regrar a nova realidade. A leitura constitucional desse último dispositivo se impõe com a força inegável de uma garantia: sem ela o delatado não teria como se contrapor, com efetividade, a toda carga acusatória que lhe é imposta durante o processo.

Quanto à correção e aos aspectos processuais penais da decisão já se falou e com propriedade aqui no Conjur (vejam aqui a coluna de Aury Lopes Jr. e Vítor Paczek e, aqui, o belíssimo texto de Lenio Luiz Streck sobre o assunto). Queremos, agora, ressaltar o que ela significa, em termos de técnica jurídica e de simbologia, na era das “decisões judiciais pautadas pela eficiência”.

O acerto do STF e o triunfo da Constituição na era do eficienticismo
Um rápido passar de olhos pelos noticiários dos últimos dias torna evidente que a decisão do STF, em que pese o seu acerto técnico, foi recepcionada por parte da mídia como o sepultamento definitivo da Operação Lava-Jato. Trata-se do famoso argumento ad terrorem (bem lembrado, inclusive, pelo Min. Ricardo Lewandowski em seu voto), no qual se evocam consequências devastadoras, pouco ou nada embasadas em dados empíricos.

O argumento, além de falacioso, dá um enfoque eficienticista à atuação do STF, como se lhe coubesse não interpretar a Constituição e as leis, mas antes proferir decisões que reforcem sempre o combate à corrupção e atendam aos anseios de uma anônima e difusa vontade popular, ainda que de forma contrária à legalidade vigente. Nesse momento, sempre se deve recordar da distopia apresentada por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, nela a ineficiência teria sido transformada no maior pecado contra o espírito santo.

A função de uma Corte Constitucional não é essa, e com a decisão em comento, o STF reafirmou sua importância contramajoritária no arranjo democrático brasileiro, atuação essa que ecoa momentos recentes, tais quais a fixação competência da Justiça Eleitoral para julgamento de crimes eleitorais conexos a delitos comuns ou a proibição da condução coercitiva sem intimação prévia.

Essa é, em nossa visão, a maior lição que devemos tirar da última decisão do STF: a constitucionalidade venceu a eficiência. A maioria da Corte não se pautou pelas consequências práticas que a decisão poderia ou não ter com relação ao combate à corrupção (que, como bem lembrou o Min. Gilmar Mendes, é um compromisso de todos). Pautou-se, antes, pela necessidade de uma leitura constitucional do CPP 403 e da posição que os réus delatados possuem no processo penal brasileiro, e não pela vontade anônima das maiorias eventuais. Prevaleceu o paradigma da autonomia do direito. Julgamos como o direito diz que deve ser. Não utilizamos conceitos extralegais como “combate à corrupção” para suspender a normatividade da nossa Constituição.

Da falácia do argumento da “opção legislativa”
Outro argumento recorrente em tudo que se anda dizendo contra a decisão do Supremo é o de que o Tribunal teria “legislado” sobre o tema, sendo a questão uma “opção legislativa”. Em rápida consulta de nossos escritos, é fácil constatar nossa extrema preocupação com ativismo judicial bem como a necessidade de sempre haver uma deferência à lei e o respeito à autonomia do Legislativo. Ocorre que não é possível coadunar com o consenso dos indignados, de que caberia ao Congresso Nacional prever expressamente em lei a oitiva posterior do delatado em relação ao delator.

A tese de que os Tribunais Constitucionais seriam meros “legisladores negativos” já foi superada. A aplicação efetiva da Constituição não apenas permite, como impõe ao STF a tarefa de atuar, por vezes, como verdadeiro “legislador positivo”, o que ocorre, por exemplo, nas sentenças aditivas e substitutivas, nas quais o Tribunal atua diretamente no texto legal para adequar seu sentido ao texto constitucional.[2]

Tal atuação, por óbvio, é excepcional e impõe um grande dever argumentativo ao julgador na elaboração de sua fundamentação. No entanto, para a proteção de direitos fundamentais e a realização dos cânones constitucionais diante de um texto legal incompleto ou defeituoso, o Tribunal deve adaptá-lo ao sentido da Constituição, seja atuando efetivamente no plano textual (mediante verdadeiro efeito aditivo) ou no plano da norma, ao estabelecer o sentido de determinado dispositivo que melhor se adapta à CF, mediante interpretação conforme, por exemplo.

Não há que se falar em “opção legislativa” aqui. A ampla defesa (CF 5.º LV) está insculpida no documento que reúne as decisões políticas superiores que balizam as regras de nosso jogo democrático. Cabe aos Poderes da República realiza-la e foi o que fez o STF ao interpretar o CPP 403 e a Lei n° 12.850/2013 à luz da Constituição e da efetiva relação antagônica entre delator e delatado, já que a lei condiciona, no caput do seu art. 4.º, a concessão de benefícios ao delator à efetiva obtenção de determinados resultados processuais concretos.

Hipótese que não tolera modulação
O Supremo ainda tem outros desafios pela frente, sendo o principal deles o da modulação dos efeitos da sua decisão, alvo de muita discussão em 2.10.19. De nossa parte, entendemos que a decisão não tolera modulação, uma vez que ela, como ferramenta do constitucionalismo, deve ter por escopo tutelar direitos fundamentais, o que claramente deixaria de ocorrer caso se decidisse por uma produção ex nunc dos seus efeitos, hipótese em que cairíamos no mesmo eficienticismo que a decisão em comento procurou combater. Conforme já defendemos, decisões protetivas de direitos fundamentais, da mesma forma que leis penais benéficas, devem retroagir para assegurar a isonomia e impedir que a força persecutória do Estado continue surtindo efeitos para situações que deveriam ser submetidas a novo entendimento. [3]

A decisão representa, antes de tudo, um bom “precedente” para embasar a concessão de ordens de HC a outros pacientes na mesma situação, seja a pedido do réu ou de ofício (como ressaltou Lênio Streck em artigo recente aqui na ConJur).

Há, ainda, pelo menos mais uma questão sensível que vislumbramos e que pode efetivamente vir a ser debatida pelo STF, em sede de controle de omissões legislativas inconstitucionais. A Lei n° 12.850/2013 teria sido omissa quanto à oitiva do réu delatado, ou, ainda, os processos da Lava-Jato consistiriam em uma circunstância superveniente que tornou o CPP 403 parcialmente omisso em relação ao mesmo ponto? Veremos. Esses questionamentos se impõem, uma vez que, dadas as características próprias do controle objetivo, seus efeitos irradiariam com maior extensão, autoridade e correção técnica.

Iniciamos o presente texto com uma citação de Hans Kelsen, que refutava o argumento de que o “interesse comum” seria algo que justificasse a existência de um conceito sociológico de Estado. Ainda que isso existisse, prossegue Kelsen, deveria ser subordinado ao conceito jurídico, já que o Estado nada mais é do que uma manifestação de uma ordem jurídica nacional.

Kelsen é certeiro. A ideia de “bem comum” é ideológica, política, e serve a fins próprios. Nesse sentido, não são outas as qualificações que daríamos ao recurso, no STF, à “vontade popular” ou ao tal “interesse público”, esse ser desconhecido, formado pelo amálgama de vontades anônimas e capturadas apenas por alguns seres iluminados.

O STF, ao decidir a questão, deu um recado às instituições responsáveis por investigar e acusar: essas atividades reclamam uma legitimidade que só pode ser obtida a partir de uma atuação pautada pela concretização da Constituição, e não pela pauta da eficiência no combate à corrupção. Combater a corrupção flexibilizando garantias constitucionais e devido processo legal, certamente, não nos levará a um lugar melhor. Até porque fora da Constituição só há ativismo, decisionismo e barbárie, mesmo se o mote for o combate à corrupção, fazer o bem ou proteger gerações futuras.

A rigidez de nossa Constituição bem como os direitos fundamentais são freios para o exercício do poder, inclusive o judicial. Daí a necessária reflexão de todos aqueles descontentes com a decisão do STF: digam-nos se a sua discordância é teórica ou se apenas é um sinal de insatisfação, uma contrariedade por não se poderem amoldar à garantia do devido processo legal a ponto de fazê-la a sua imagem e semelhança. Afinal, não é só Narciso que acha feio tudo que não é espelho…


[1] KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, 5ª edição, Martins Fontes, trad. Luís Carlos Borges, p. 267. Destaques nossos.

[2] Sobre tema, ver: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 3.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2019, n. 3.24, p. 672 et seq.

[3] Sobre tema, ver: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 3.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2019, n. 3.29.4, p. 765 et seq.

Autores

  • é advogado e professor de Processo Civil da PUC-SP e do programa de mestrado em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF). Tem mestrado e doutorado em Direito pela PUC-SP.

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