Opinião

Meios de impugnação e cumprimento de decisões parciais contra a Fazenda Pública

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

2 de outubro de 2019, 6h15

Com o advento do CPC/15, ocorreram mudanças substanciais relacionadas à unicidade do julgamento de mérito, em decorrência da possibilidade de seu fracionamento (arts. 354 e 356).

Neste ensaio, pretende-se enfrentar aspectos ligados à resolução parcial de mérito nas causas que envolvem a Fazenda Pública, especialmente em relação a alguns aspectos processuais, a saber: aproximação procedimental entre o agravo de instrumento e a apelação; desmembramento dos momentos de cumprimento das decisões judiciais; cabimento de remessa necessária também nos casos previstos no art. 356, do CPC/15.

Considerando a previsão de fracionamento do objeto litigioso, deve existir uma aproximação entre os sistemas de recorribilidade da decisão de mérito por apelação e por agravo de instrumento, bem como há a remessa necessária em ambos os casos, desde que atendidos seus requisitos específicos do art. 496, do CPC/15. Portanto, é razoável defender que devem ser aplicadas ao julgamento parcial nas demandas promovidas em face da Fazenda Pública as mesmas regras da apelação e da remessa necessária, quanto à ineficácia da obrigação nele contida antes da apreciação pelo respectivo Tribunal (arts. 496 e 1012, do CPC/15), exceto se for concedida tutela provisória no próprio decisum ou se a hipótese se enquadrar em uma das exceções previstas no próprio Código (arts. 1012. §1º e/ou 496, §§3º e 4º, do CPC/15).

No tema, o Enunciado 17 do Fórum Nacional do Poder Público consagra: “a decisão parcial de mérito proferida contra a Fazenda Pública está sujeita ao regime da remessa necessária”.

Outrossim, em decorrência da aproximação procedimental entre a apelação e o agravo de instrumento interposto contra a decisão parcial de mérito, mesmo com entendimentos em sentido contrário [1], é defensável o cabimento de agravo adesivo (art. 997, §2º, II, do CPC/15) e de sustentação oral na sessão de julgamento do recurso (art.937, I, do CPC/15).

Destarte, os regimes jurídicos dos recursos são aproximados e, portanto, além do prazo ser idêntico (quinze dias úteis – art. 1003, §3º, do CPC/15 ou em dobro, caso o recurso seja do ente público – art. 183, do CPC/15), devem ser aplicadas ao agravo de instrumento do art. 356, §5º, do CPC/15, as mesmas garantias do recurso de apelação, inclusive pela necessidade de tratamento igualitário das partes no processo.

Realmente, interpretação literal dos dispositivos do CPC/15 poderia levar a incongruência e quebra de isonomia procedimental: a apelação contra sentença, independentemente de apreciar ou não o mérito, permite a sustentação oral e o agravo de instrumento contra decisão parcial de mérito, não teria tal garantia pela simples vontade do legislador.

Este raciocínio não parece correto! No caso de resolução parcial de mérito com sucumbência recíproca deve ser admitido tanto o agravo adesivo como a sustentação oral no momento do julgamento pelo colegiado, salvaguardando a aproximação procedimental dos meios recursais contra as decisões de mérito proferidas em 1º grau.

Escreve Assumpção Neves: “entendo, portanto, ser adequada uma interpretação da norma legal para que se admita, por analogia, o agravo de instrumento na forma adesiva do recurso de mesma espécie interposto contra a decisão que julga o mérito de forma parcial” [2].

Como bem aponta Thofehrn: “não podemos ignorar que a previsão de dois procedimentos recursais diferentes para o reexame de decisões semelhantes representa uma quebra na isonomia procedimental, especialmente porque o agravo de instrumento utiliza de um procedimento que foi pensado para o reexame de decisões de natureza interlocutória, e, por ter essa característica, tem uma menor abertura ao contraditório se comparado à apelação, recurso próprio para a rediscussão do mérito” [3].

Além de todas as questões apresentadas visando um regime jurídico único entre a apelação e o agravo de instrumento contra decisão parcial de mérito, ainda existe mais uma garantia que deve ser reconhecida a ambos: o efeito suspensivo legal da apelação (art. 1.012, do CPC/15) deve ser estendido ao agravo de instrumento e à remessa necessária.

Ora, como já mencionado, nos casos em que a apelação possui efeito suspensivo legal (art.1012, do CPC/15), não deve ser admitido o cumprimento provisório quando se tratar de resolução parcial de mérito, bem como nos casos em que a decisão parcial estiver sujeita à remessa necessária e sem qualquer tutela provisória para garantir a eficácia imediata ao decisum.

Aqui, vale citar nova passagem de Assumpção Neves: “há, entretanto, uma gritante contradição entre qualquer decisão que resolva o mérito e seja recorrível por apelação e a decisão que julga antecipadamente parcela do mérito. Enquanto no primeiro caso será inviável, ao menos em regra, a execução em razão do efeito suspensivo do recurso; no segundo, será cabível a execução provisória. A distinção de tratamento não tem qualquer justificativa lógica ou jurídica plausível, porque trata julgamentos de mérito de maneira distinta quanto à sua eficácia imediata e sem nada que justifique o tratamento desigual, em nítida ofensa ao princípio da isonomia” [4].

Concordo plenamente com estas ponderações. Com o objetivo de alcançar a efetiva aproximação dos dois regimes recursais, também no agravo de instrumento contra decisão parcial de mérito deve existir o efeito suspensivo legal, não se justificando o tratamento diferenciado contido nos arts. 1012 e 356, §2º, do CPC/15.

O ideal é que, no momento da decisão parcial proferida contra o particular ou contra a Fazenda Pública, seja concedida a tutela provisória em relação ao capítulo apreciado, desde que atendidos os requisitos legais, cabendo ao recorrente pleitear o efeito suspensivo diretamente ao Relator, nos termos do art. 1019, I , do CPC/15 [5].

Além do agravo de instrumento, a Fazenda Pública pode apresentar Pedido de Suspensão de eficácia da decisão parcial de mérito, diretamente ao Presidente do respectivo Tribunal (art. 15, da Lei 12.016/09; art. 4º, da Lei 8.437/92; art. 12, § 1º, da Lei 7.347/85, etc), desde que atendidos os pressupostos ensejadores da medida: dano à ordem, saúde, segurança e economia públicas [6].

De outro prisma, os questionamentos ligados ao fracionamento decisional ganham maior fôlego quando se discute a possibilidade de cumprimento provisório parcial, especialmente nos casos envolvendo pagamento de quantia pela Fazenda Pública.

Neste contexto, é dever ampliar a leitura do art. 100 da CF/88, para consagrar o cumprimento definitivo de decisão parcial de mérito de natureza pecuniária contra a fazenda pública, desde que não tenha sido interposto Agravo ou após a apreciação da remessa necessária pelo respectivo Tribunal, quando esta for cabível.

Nos casos de obrigação de fazer, não fazer ou entrega de coisa distinta de dinheiro, em sendo concedida tutela provisória na própria decisão parcial de mérito, ou mesmo em outra etapa procedimental, será possível o cumprimento provisório deste capítulo, nos termos dos arts. 536 a 538, do CPC/15. Há precedentes da Corte da Cidadania permitindo a imputação de multa cominatória [7][8] (REsp 1801468 / SP – Re. Min. Herman Benjamin – 2ª T – J. 16.05.2019 – DJe 30/05/2019 [9]), com restrições ao seu direcionamento à pessoa do agente público (REsp 747.371-DF – Rel. Min. Jorge Mussi – 5ª T – J. em 06/04/2010 – DJe de 26/04/2010) [10][11].

Aliás, em relação à prerrogativa processual ligada à vedação de tutela provisória contra a Fazenda Pública e, consequentemente, ao cumprimento provisório de decisão judicial, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido execução provisória “quando a sentença não tiver por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (AgRg no REsp 742474 / DF – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – 6ª T – J. em 29/06/2009 – Dje 17/08/2009).

Ainda de acordo com entendimentos da Corte, as limitações legais “à concessão de antecipação dos efeitos da tutela, ou mesmo da execução de sentença antes do trânsito em julgado, contra o Poder Público, previstas na Lei nº 9.494, de 1997, não alcançam os pagamentos devidos aos servidores inativos e pensionistas, na linha da jurisprudência (AgRg na SLS 1.545/RN, Rel. Ministro Ari Pargendler, Corte Especial, julgado em 2/5/2012, DJe 15/5/2012)” (AgInt nos EDcl no REsp 1718412 / SP – Rel. Min. Sérgio Kukina – 1ª T – J. em 23/10/2018 – DJe 31/10/2018).

Ora, se o sistema processual garante, e até incentiva, a cumulação de pedidos, o amadurecimento precoce de um deles enseja o desmembramento da tutela jurisdicional definitiva.

Visando colocar a última pá de cal nessa discussão, o STF, no julgamento do RE-RG nº 573.872, de Relatoria do Min. Edson Fachin (Tema 045/RG – j. em 24.05.17), fixou a seguinte tese: “A execução provisória de obrigação de fazer em face da Fazenda Pública não atrai o regime constitucional dos precatórios".

Nada impede que, no caso concreto, a resolução parcial de mérito atinja um capítulo litigioso, inclusive com a concessão de tutela provisória para garantir a sua eficácia, enquanto os demais são apreciados em momento posterior.

Há, assim, a possibilidade de desmembramento procedimental, com o cumprimento provisório (na pendência de Agravo de Instrumento sem efeito suspensivo e/ou de remessa necessária) ou mesmo definitivo (em caso de inexistência de agravo e de remessa necessária) de uma parte do objeto litigioso (arts. 356, §§3º e 5º, e 496, do CPC/15), e prosseguimento do feito para a instrução e julgamento futuro, das demais.

Portanto, é extremamente importante analisar a natureza da obrigação a ser satisfeita, para o devido enquadramento na hipótese prevista no art. 100, da CF/88.

O Tema 045/RE-RG, do Supremo Tribunal Federal e os precedentes do Superior Tribunal de Justiça são bons indicativos acerca da interpretação a ser dada em relação às ordens judiciais em desfavor da Fazenda Pública advindas da resolução parcial prevista no art. 356, do CPC/15, consagrando, de um lado, um diálogo recursal entre a apelação e o agravo de instrumento e, de outro, a multiplicidade de etapas para o cumprimento das ordens judiciais.

Estas são as observações sobre este importante tema.


[1] THOFEHRN, Guilherme Lessa. Julgamento parcial do mérito e a necessidade de aplicação do procedimento recursal adequado. Revista de Processo 281, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2018, p. 298; RODRIGUES, Viviane Siqueira. Comentário ao art. 356 do CPC. Comentários ao Código de Processo Civil, vol V. ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel (Coordenadores); MARINONI. Luiz Guilherme (Diretor). São Paulo : Revista dos Tribunais, 2018, p. 287.

[2] NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Incongruências sistêmicas do Código de Processo Civil de 2015 diante do julgamento antecipado parcial do mérito. Revista de Processo 204, São Paulo : Revista dos Tribunais, outubro/2018, p. 47.

[3] THOFEHRN, Guilherme Lessa. Julgamento parcial do mérito e a necessidade de aplicação do procedimento recursal adequado. Revista de Processo 281, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2018, p. 298; RODRIGUES, Viviane Siqueira. Comentário ao art. 356 do CPC. Comentários ao Código de Processo Civil, vol V. ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel (Coordenadores); MARINONI. Luiz Guilherme (Diretor). São Paulo : Revista dos Tribunais, 2018, p. 296-297.

[4] NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Manual de direito processual civil. 8ª edição. Salvador : Juspodivm, 2016, p. 625.

[5] Aliás, em relação ao efeito suspensivo judicial, há uma diferença procedimental que deve ser ressaltada: enquanto na apelação, o requerimento é feito por meio do incidente previsto no art. 1012, §3º, do CPC/15, no agravo de instrumento é formulado no próprio recurso (art. 1019, I, do CPC/15), tendo em vista que, enquanto aquela é interposta no 1º grau e apenas posteriormente é remetida ao órgão ad quem, este é manejado diretamente no órgão colegiado.

[6] Sobre o Pedido de Suspensão, indico minha obra Mandado de Segurança. 7ª edição: Juspodivm, 2019.

[7] Tema importante e ainda pouco explorado pelos operadores do direito é se, nas causas envolvendo a Fazenda Pública, é possível a utilização de medidas executivas atípicas (art. 139, IV, do CPC) direcionadas ao agente público.

[8] Sobre medidas atípicas: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (coords). Medidas executivas atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018

[9] No REsp 1.474.665/RS (Rel. Min. Benedito Gonçalves – 1ª Seção – J. em 26/04/2017 – DJe 22/06/2017), sob o rito dos Recursos Repetitivos (Tema 98), a Corte entendeu cabível a aplicação de multa à Fazenda Pública em condenações de obrigação de fazer constante de fornecimento de medicamentos.

[10] Vale transcrever passagem da Ementa deste REsp 747371 / DF: “(…) 2. A extensão ao agente político de sanção coercitiva aplicada à Fazenda Pública, ainda que revestida do motivado escopo de dar efetivo cumprimento à ordem mandamental, está despida de juridicidade”.

[11] Em outro julgado, entendeu a 2ª Turma que "é possível a fixação de astreintes em mandado de segurança, inexistindo óbice à sua imposição sobre a autoridade coatora se esta, sem justo motivo, causar embaraço ou deixar de cumprir a obrigação de fazer" (AgInt no REsp 1703807/SP – Rel. Min. OG Fernandes – 2ª T- J. em 14.08.2018 – DJe 20/08/2018).

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    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; doutor e mestre pela Universidade Federal do Pará; professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); procurador do estado do Pará e advogado.

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