Opinião

O advogado criminal como co-construtor da jurisprudência

Autor

  • Nilo Batista

    é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Candido Mendes. É presidente do Instituto Carioca de Criminologia.

2 de outubro de 2019, 17h19

* Aula inaugural do curso de especialização em Advocacia Criminal da OAB e UERJ

A advocacia é hoje uma profissão sofrida, sob o impacto direto de três graves crises. A mais grave delas, que aqui será aquela com menor interesse para nós, é a crise do capitalismo de barbárie, para usar a expressão de Menegat. É frequente em nossa profissão isto de nos interessarmos mais pelo que é menos relevante; em certos casos, é quase uma virtude profissional abstrair-se o advogado das grandes determinações históricas para poder concentrar-se inteiramente no claustro do caso concreto.

E é assim que conflitos interindividuais, às vezes mesquinhos, obtêm nossa integral dedicação, e ficamos sem tempo para perceber as terríveis funções que os sistemas penais passaram a desempenhar nessa etapa da luta de classes, garroteando os desclassificados pela criminalização das economias populares ou diretamente os exterminando pela necropolítica do confronto, do “tiro na cabeça”. 

A ascensão de um fascismo brasileiro que, de um lado reivindica subjugar os poderes da república ao mando — sem trocadilho —messiânico do Duce verde e amarelo, e, de outro, quer suprimir a liberdade de cátedra e entoar, como na Espanha franquista, vivas à morte, esta ascensão deveria preocupar-nos muito. 

A defesa da Constituição da República de 1988 representa para nós uma legítima defesa da própria profissão. Não nos esqueçamos que o Conselho Federal aprovou o golpe de 1964 logo após desfechado, e teve mais tarde que penitenciar-se pelo covarde vacilo. 

Não fossem bastantes os efeitos dessa crise estrutural, nossa profissão enfrenta ainda duas outras. A primeira, a ser observada na longa duração, decorre do contínuo aminguamento de nossos espaços de atuação. Na antiguidade dispúnhamos do privilégio daquilo que podemos chamar de retórica aplicada. As raízes políticas de nossa profissão derivam daí, de nossa participação em assembleias e comícios perante os quais, em pessoa desde que os logógrafos puderam sair do armário ou na pele de arcontes, tribunos ou senadores, contribuíamos para as decisões mais importantes da cidade, do império ou do reino, aqui acusando um conspirador, ali defendendo um herói  insensato.

Este privilégio da retórica aplicada nos acompanhou até recentemente, e, para demonstrá-lo, basta observar os bacharéis brasileiros no segundo Império: se é verdade que o primeiro regimento do Instituto dos Advogados do Brasil exigia de todo membro um juramento de fidelidade ao Imperador, também é certo que os mais altos cargos da administração imperial foram exercidos por aqueles advogados. Mas a assim chamada “sociedade da informação” alteraria radicalmente esse quadro. 

Uma agência de publicidade dispõe de uma capacidade de convencimento maior do que a de mil escritórios de advocacia, valendo-se de uma linguagem livre para o bem e para o mal, linguagem capaz de acobertar o argumento como numa emboscada, de convencer o jurado-consumidor sem que ele se dê conta de que está sendo convencido.

E não nos iludamos: como já foi dito, o essencial na propaganda não é fazer o sujeito pensar que gosta de coca-cola, e sim pensar que é feliz por gostar de coca-cola. A exaltação do produto é um lugar retórico da exaltação do sistema. 

A interferência da mídia sobre processos criminais afeta em doses letais a presunção de inocência e o direito a um julgamento justo, jamais admissíveis na União europeia ou nos Estados Unidos. Mas quantos ministros de nossa Corte Suprema teriam a coragem de controlar tal interferência? Tão nefasta quanto a interferência é a vulgarização.

Noções elementares de direito e processo penal são explicadas da televisão: prisão preventiva, ouvimos do âncora, “é aquela que não tem prazo para terminar”. Parece mais uma definição de prisão perpétua, aliás, vedada pela Constituição. 

As redes sociais, com ou sem ajuda dos dispositivos multiplicadores, semeiam e consolidam asneiras e preconceitos acerca da questão criminal, e elegem folgadamente vistosa bancada de beleguins legisladores. Sobrou-nos, e não é pouco, o debate forense, apenas o debate forense. Para Rui seria inaceitavelmente pouco. Se não nos guiarmos por uma visão estratégica, poderemos vir a perder mais. 

Cada direito suprimido aos cidadãos é um campo a menos para lavrarmos. Olhem para nossos colegas do ramo trabalhista e previdenciário. Olhem para o debate parlamentar recente: os recursos do fundo partidário podem pagar quase tudo, menos honorários de advogados. Quem deseja que os partidos políticos e os quadros partidários não possam contratar advogados para defender-se? Expliquem-nos essa curiosa mens legis: os partidos devem observar estritamente a lei eleitoral, vedado contudo a consulta a advogados. Que estranha cabra-cega será esta?

A terceira crise que enfrentamos provém do descrédito da representação política, implacavelmente levado a cabo por certos meios de comunicação em contraponto à consagração da probidade e sabedoria do "mercado", o vago termo que está para a economia como "sistema" está para a política. O Estado como antro de corruptos e incompetentes em face do mercado virtuoso e eficiente; o que estamos esperando para privatizar até a soberania? O descrédito da classe política nos atinge em cheio porque dividimos com ela o fenômeno da representação. 

O advogado se dirige à autoridade administrativa ou ao juiz não em nome próprio, não em favor de um interesse dele mesmo, mas sim representando outro(s) cidadão(s). O descrédito da política, que só um inocente ou um idiota atribuiria à “luta contra a corrupção”, o descrédito da política atinge em cheio o casco de nossa embarcação, implica inevitavelmente o descrédito da advocacia. E, efetivamente, nossos escritórios passaram a ser vasculhados pela polícia com autorização de juízes, nossas conversas passaram a ser vigiadas. Eu mesmo tive conversas gravadas pela gente de Curitiba (a quem, aliás, autorizo a publicação de todas elas; são muito diferente das suas). 

Em se tratando de nossa profissão, um curso de pós-graduação lato sensu com ênfase na prática não poderia ser mais adequado. Nunca houve tentativa de organização de um campo de conhecimento tão dependente da praxis quanto o direito processual; praxistas foram chamados aqueles que recitavam de cor o livro III das Afonsinas. A divisão material equitativa dos frutos é que começou a instalar o conceito de justiça na cabeça do homem, e não o contrário.

Na legislação penal o conteúdo do que hoje chamamos de Parte Especial, ou seja, o catálogo organizado dos tipos legais, existiu na antiguidade e na idade média; já os princípios (muitos deles generalizações de certas soluções restritas: assim, a benevolência do direito canônico para com o furto de alimentos ou roupas é uma das pré-histórias do estado de necessidade) que hoje se reúnem na Parte Geral só do século XVI, só de Deciano para cá começaram a entrelaçar-se. Por isto se diz que a Parte Geral é a “irmã mais nova” da Parte Especial: toda pretensão universalizante é sempre de alguma forma encobrimento do histórico-concreto. A legítima defesa brotou do velho e fecundo tronco do homicídio.

O advogado criminal é, portanto, um co-construtor da jurisprudência e da dogmática jurídico-penal. Vejam como um colega nosso, Alberto Toron, acaba de dilargar o espectro da ampla defesa para que também entre nós, e pela voz da Corte Suprema, prevaleça o direito de falar por último como efeito imprescindível da garantia de ampla defesa.

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  • é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Candido Mendes. É presidente do Instituto Carioca de Criminologia.

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