Opinião

Nos tempos da "câmara de gás" do TJ de Santa Catarina

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1 de outubro de 2019, 20h29

Durante muitos anos, a 1ª Câmara Criminal do TJ-SC era pejorativamente designada pelos advogados como “câmara de gás”, tamanha a severidade de suas decisões.

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Em alguns casos, era flagrante o descompasso na aplicação do direito não só quando comparadas as decisões proferidas pelos demais desembargadores integrantes de outras Câmaras de nosso tribunal, mas sobretudo com o resto do país.

Sou testemunha de casos em que dois presos em situações similares dividiam a mesma cela e, enquanto um tinha auferido determinado direito em sua progressão de regime, outro recebia a glosa, pois tinha sido julgado pelo 1ª Câmara Criminal, o que, além de fomentar injusta insegurança jurídica, era extremamente frustrante para o condenado e para o advogado, que passava por inepto.

Afinal, como explicar tamanho descompasso na aplicação do direito? Na mente do condenado, geralmente pessoas simples, a explicação era simplista: competência ou incompetência do advogado.

Desde meus tempos de criança sempre fui fascinado por julgamentos, e, rotineiramente, enquanto meus colegas preferiam jogar bola, para mim a diversão era acompanhar meu pai nos atendimentos nos mais variados presídios de nosso estado, e posteriormente nos julgamentos de nosso tribunal, que na época em diversas ocasiões tinha suas decisões reverberadas em precedentes do Supremo Tribunal Federal.

Lembro-me de um caso no qual meu pai defendeu um homem que teve o filho vítima de um acidente fatal e, legitimamente, inconformado com a pena aplicada, num ato de santo desespero, acabou publicando uma nota convidando para o enterro da Justiça.

Intimado para se explicar, não se fez de rogado. Nova publicação em jornal de prestígio, desta feita convidando para a Missa de Sétimo Dia.

Paradoxalmente esse sofrido cidadão de bem acabou condenado pela Justiça por suas publicações, e faço questão de registrar a inicial com letra minúscula, a uma pena que por incrível que pareça foi similar à do algoz de seu pequeno anjo.

Nada mais injusto. Agregou-se à subversão da ordem natural, pois nunca um pai deveria enterrar um filho, a violência e insensibilidade da decisão judicial que, mesmo diante de um fato que poderia ser ajustado a determinado figurino legal e culminar na aplicação de uma pena, deveria ter sido olhada pelo magistrado de forma misericordiosa pelas lentes da clemência, farol que deve iluminar os corações dos homens de bem, pois, afinal, como nos ensina São Bernardo de Claraval: “O Deus justo, que não pode nem há de permitir que seja ofendida sua bondade, justissimamente te retorquirá com uma pena; mas temperará de tal modo a sentença, que, se quiseres emendar-te, não deixará de dar-te o perdão”.

Durante o julgamento desse sofrido pai, o desembargador relator, Ayres Gama Ferreira de Mello, ao votar pela absolvição, não se conteve e chorou. O voto foi acompanhado pelos demais desembargadores com os olhos marejados, pois todos seguravam as lágrimas.

O advogado é forjado na prática, nos embates e duelos travados durante as audiências no fórum e nos tribunais. Quando me formei, montei meu próprio escritório pois, como dizia meu pai, “dois reis não cabem num mesmo castelo”, mas nunca esqueci as lições que dele aprendi, e conto ligeiramente um caso.

Tive a sorte e a honra de ser apadrinhado por um dos maiores advogados do país: René Ariel Dotti.

Recém-formado, em todos os processos em que o referido causídico atuava em Santa Catarina, eu era convocado para auxiliar, entregando memoriais, despachando com magistrados, etc.

Num desses casos, ao ler os memoriais, sugeri uma tese. No dia do julgamento, enquanto entrava no tribunal, encontrei meu pai. “Oi, Claudinho, aonde vai?”. “Vou na sessão, estou acompanhando o professor René num “trial”, brinquei me exibindo falando em inglês, tamanha minha empolgação. “Que legal, vou junto.”

No dia, o plenário estava cheio, afinal, ocupava a tribuna famoso jurista, autor de várias obras e coautor de inúmeros diplomas legais. Poucos professores contribuíram tanto para nossa legislação como Dotti, homem cuja cultura e talento se somam à bondade, generosidade e compaixão pelos que tem a infelicidade de sofrer um processo criminal.

Ao fazer sua sustentação oral, para minha surpresa o professor cita minha tese, e com a nobreza e simplicidade que lhe é peculiar, agradece minha contribuição, outorgando-me o crédito.

Diante de tamanha honra ao ver um dos maiores advogados do país afirmar na tribuna perante os desembargadores que “agradecia a tese ora apresentada que fora desenvolvida pelo Doutor Gastão”, mal acabara de iniciar meu sorriso, vejo meu pai ao meu lado levantar, agradecer o reconhecimento e sentar.

Diante do olhar e sinais dos desembargadores para meu pai com o dedo para cima parabenizando-o, ele me olha, dá uma piscada e diz: “Isso é para você aprender a ser esperto, para ser mais ligeiro”.

Óbvio que fiquei bravo com a situação, mas o tirocínio do meu pai muito me ajudou posteriormente e jamais esqueci aquela de muitas lições que ele me ensinou.

O advogado aprende analisando as decisões, aprende com os votos proferidos, com a dinâmica dos julgamentos, e principalmente com as derrotas ou como se costuma dizer, “com o pau no lombo”.

Há de se ter humildade, pois, dentre os males da natureza que não têm cura, um deles é a vaidade. Acontece que dificilmente se extrai dos votos de antanho proferidos pela 1ª Câmara Criminal algo de bom, era um show de horror, assistir aquilo era um tormento espiritual indescritível.

Não se trata de uma crítica em face de decisões adversas. Nada disso. Recentemente participei de um julgamento onde o desembargador Fornerolli começou dizendo: “O Doutor Gastão é nosso Pavarotti”, fazendo referência ao famoso tenor já falecido.

“Consegue transformar um funk numa ópera, mas a realidade dos autos mostra que não é bem assim”, e foi desenvolvendo seu voto totalmente contrário à minha tese. No final, após o julgamento, brinquei com ele: “Desembargador, me deu vontade de votar com o senhor”. Ele me venceu e me convenceu. O que aprendi usei em outros casos que foram vitoriosos.

O problema, como disse, era a qualidade do que decidia antigamente a 1ª Câmara Criminal. O tempo, com a graça de Deus, mudou essa triste e fúnebre perspectiva, pois alguns desembargadores se aposentaram, outros morreram e rogo para que eles não sejam julgados pela mesma régua com que julgaram o semelhante.

Os desígnios divinos trouxeram para a alcunhada “câmara de gás” nova composição que considero uma tríade do bem, liderada pelos desembargadores Carlos Alberto Civinski, Ariovaldo Ribeiro da Silva e Hildemar Meneguzzi.

Óbvio que temos outros grandes desembargadores em nosso tribunal, pessoas estudiosas, dedicadas e cito por exemplo o desembargador Getúlio Corrêa, integrante da 3º Câmara Criminal, onde ao votar em processo dificílimo sob o ponto de vista da análise da prova, citou determinando depoimento onde além de mencionar o que a testemunha teria dito, ainda falou da cor da minha gravata, o que realça o grau de perspicácia e detalhes que não passaram desapercebidos.

Vida longa aos novos desembargadores integrantes da 1ª Câmara Criminal, cujas decisões nos lembram conselhos que deu D. Quixote deu a seu fiel escudeiro, Sancho Pança, na imortal obra de Miguel de Cervantes.

“Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo. Se dobrares a vara da Justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia”.

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