Contas à Vista

Preocupações com o plano 3D do ministro Paulo Guedes

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

1 de outubro de 2019, 8h00

Spacca
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem alardeado que está prestes a enviar ao Congresso um Plano batizado de 3D, que significa desvinculação, desindexação e descentralização, esperando poupar R$ 37 bilhões, sobre o qual já havia feito breve comentário, tendo minha colega nesta coluna, Élida Graziane, rebatizado os 3D como desigualdade, desonestidade e destruição constitucional.

De fato, os 3D de Paulo Guedes visam alterar fortemente o sistema orçamentário e o federalismo fiscal brasileiro. Nada foi formalmente divulgado, apenas balões de ensaio são verbalizados a conta-gotas pelo ministro em palestras ou entrevistas veiculadas em jornais ou revistas.

Pelo que consta, o intuito do “primeiro D” do ministro Guedes, que compreende a desvinculação, é retirar o liame jurídico que vincula determinada receita a uma expressa finalidade. Na Constituição existem algumas vinculações, sendo as mais conhecidas aquelas estabelecidas no art. 167, IV, referentes aos gastos com saúde e educação. Existe um aspecto de inconstitucionalidade nessa suposta retirada, pois tais vinculações se caracterizam como cláusulas pétreas por força do art. 60, §4º, IV, conforme expus no item 3.5.5 do livro Orçamento Republicano e Liberdade Igual, publicado em 2018.

Ainda no âmbito das especulações, pode ser que o ministro esteja apontando para algo semelhante, porém não idêntico, que se refere à autonomia dos Poderes, como a do Poder Judiciário (art. 99, CF). A despeito de a Constituição não se referir à autonomia financeira do Ministério Público (art. 127, §2º, CF) e da Defensoria Pública (art. 134, §2º, CF), o STF já admitiu que tais órgãos também a possuem. Basta ler que se verificará que o texto constitucional se refere à autonomia funcional e administrativa. No caso da Defensoria Pública, a interpretação extensiva ocorreu através da ADPF-MC 307, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, que reconheceu a autonomia financeira desse órgão como “preceito fundamental”.

Há também um impasse provocado pela má leitura do art. 168 da Constituição, que estabelece que os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos Poderes Legislativo e Judiciário, e também ao Ministério Público e à Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês. O mau entendimento decorre da distinção entre “dotação orçamentária” e os valores “efetivamente arrecadados”. Dotação decorre de uma previsão orçamentária, que pode ou não se realizar. Caso não se realize, o que deve ser entregue a esses órgãos pelo Poder Executivo é o que foi previsto ou o que foi realizado? Seguramente é o que foi realizado, ou seja, o que efetivamente ingressou nos cofres públicos, e não a estimativa orçamentária estabelecida. Na prática esses órgãos políticos buscam receber o que foi orçado e não o que foi realizado.

Vê-se tal debate, em caráter subnacional, dentre várias outras decisões, na SS – Suspensão de Segurança 5157, na qual o Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Norte buscou suspender liminar concedida pelo Tribunal de Justiça daquele Estado em favor do Ministério Público estadual, que visava receber o que havia sido orçado, não considerando a queda de quase 13% da arrecadação transferida pela União. A ministra Cármen Lúcia concedeu em dezembro de 2016 a suspensão da segurança pleiteada, autorizando transferir o que havia sido apurado, e não o orçado. Debate semelhante, porém não idêntico, ocorreu com referência ao Estado do Rio de Janeiro, no MS 34.483.

Se for essa a trilha do ministro, seguramente haverá chuvas e trovoadas no horizonte, pois estas carreiras jurídicas são muito organizadas através de suas associações de classe. É muito mais fácil apontar a artilharia contra as vinculações para saúde e educação, que possuem defensores difusos e muitas vezes desarticulados. O último bastião da defesa dessas cláusulas pétreas será o STF.

O “segundo D” do ministro Paulo Guedes diz respeito à “desindexação”, que já teve início com a proposta de modificação da regra do salário mínimo, que é, por força da Lei 12.382/11, corrigido pelo INPC acrescido da variação do PIB dos dois últimos anos. Houve recuo nesta proposta, mas a pauta permanece, como no filme O Dia da Marmota, muito bem lembrado por Marta Arretche, que aponta esta política social como a grande política de redistribuição de renda no Brasil, mais ampla que a do Bolsa Família.

Pode ser que a proposta do ministro contemple a desindexação da remuneração dos servidores públicos, prevista no âmbito macroeconômico e macrojurídico pelo art. 107, §1º, do ADCT, inserido pela Emenda Constitucional 95, conhecida por Emenda do Teto de Gastos, bem como pelo art. 37, X, CF. O STF julgou dia 26 de setembro que estados e municípios podem deixar de conceder reajuste anual a funcionários públicos, desde que haja uma justificativa para isso, tendo sido fixada a seguinte tese, em repercussão geral: “O não encaminhamento de projeto de lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no inciso 10 do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, não gera direito subjetivo a indenização. Deve o Poder Executivo, no entanto, se pronunciar, de forma fundamentada, acerca das razões pelas quais não propôs a revisão”. Observe-se que a tese não faz referência apenas aos entes subnacionais, o que alcança os servidores públicos da União.

Todos esses movimentos jurídicos podem levar a uma trilha pela qual o governo federal pode se aproveitar da inflação para obter maior espaço orçamentário para alocação das receitas públicas, que permanecem indexadas, em face das despesas públicas obrigatórias, que estão sendo desindexadas.

O “último D” do Plano Guedes, ainda sob esboço, diz respeito à descentralização. Não se sabe ao certo o que pretende o ministro com esse “D”, mas alguns movimentos já estão sendo efetuados.

A regra “do teto” foi alterada pela Emenda Constitucional 102, de 26 de setembro de 2019, que dela afastou as transferências a estados, Distrito Federal e municípios de parte dos valores arrecadados com os leilões dos volumes excedentes de petróleo e a despesa decorrente da revisão do contrato de cessão onerosa. Traduzindo: mais dinheiro para os entes subnacionais, sem alterar o teto de gastos da União.

No mesmo sentido, a Emenda Constitucional 102 retirou a expressão “bem como a órgãos da administração direta da União” do §1º do art. 20, que, de certa forma, carimbava a destinação dos royalties da mineração, do petróleo e os hidroelétricos a órgãos da administração pública federal. Com essa alteração a destinação desses recursos passará a ser determinada pelo orçamento da União, o que pode, por força de lei, ser destinado inclusive às agências reguladoras desses setores da economia.

O curioso é que as propostas de reforma tributária em curso no Congresso apontam para uma centralização da arrecadação dos tributos sobre o consumo. Há um desajuste no discurso, embora nenhuma proposta tenha tido origem no Poder Executivo.

Outro movimento que pode estar inserido nesse contexto é a liberação de verbas de vários Fundos que abastecem órgãos específicos. Isso se insere em “dois dos D” de Guedes, tanto na desvinculação como na descentralização. Um exemplo é o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, que foi objeto de excelente reportagem realizada por Marcos de Vasconcellos, na ConJur, em março de 2017, na qual mostra que “o Fundo recebeu R$ 1,9 bilhão nos últimos sete anos, mas menos de 3% disso foram aplicados nos fins determinados em lei. O dinheiro quase todo foi para os cofres da União, pela porta dos fundos”.

Um exemplo vale mais do que mil palavras: o Ministério Público, através da ADPF 568, pediu ao STF para sustar a destinação de R$ 2,5 bilhões, que seria gerido pelo próprio Ministério Público, fruto do acordo realizado nos Estados Unidos da América acerca da Petrobras, e que acabou sendo destinado para educação e combate a incêndios na Amazônia, por força de um acordo homologado no STF, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Confesso que gostei da solução, porém, olhando de longe e correndo o risco de ser opiniático — pois não li nenhum dos documentos envolvidos , parece-me que tecnicamente tais recursos deveriam ser objeto de análise legislativa, por parte do Congresso Nacional, no âmbito orçamentário.

A lógica descentralizadora da desvinculação desses fundos ocorre no pressuposto de que Estados e Municípios possam melhor usar os recursos, como ocorre com o Fundo Penitenciário (Funpen), cujas verbas poderiam ser usadas por esses entes subnacionais em segurança pública, e não nas penitenciárias. A proposta busca dar mais liberdade orçamentária a esses entes na utilização da verba, porém os detentos seguramente ficarão à míngua ainda maior. Caso implementada essa alternativa, espera-se que na prática isso melhore o serviço público.

Esse é um tema que, por si só, já merecia uma análise acadêmica mais detalhada, pois o Brasil atual se caracteriza financeiramente como o país dos fundos sem controle, com a eterna busca de grupos, públicos e privados, de um orçamento para chamar de seu. Consta de reportagem da Folha de São Paulo “que hoje há 261 fundos, sendo que 93 deles estão ativos. A estimativa é que eles reúnam um valor de R$ 222 bilhões, considerando os números de 2017”. A reportagem indica que tais recursos podem ser usados para melhorar a gestão da dívida pública – seria melhor se fossem destinados para reduzir as desigualdades sociais e regionais, atendendo ao comando do art. 3º, III, da Constituição.

Enfim, não se sabe exatamente qual o Plano 3D do ministro Guedes, que, espera-se, venha a ser exposto em breve, mas se pode afirmar que, de certa forma, ele já está em curso. Aguardemos sua divulgação, para os aplausos e as críticas.

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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