Diário de Classe

Jeremy Waldron e a dignidade da pessoa humana como status jurídico

Autores

  • Emerson de Lima Pinto

    é professor advogado pós-doutorando em Direito doutor em Filosofia e mestre em Direito Público pela Universidade Feevale. Também é membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Frederico Pessoa

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

30 de novembro de 2019, 16h15

Não é possível negar a importância — mesmo que no campo apenas da “retórica jurídica”, para aqueles que enxergam a questão com uma dose de ceticismo — do “instituto jurídico da dignidade da pessoa humana”, ou “princípio da dignidade da pessoa humana” dentro, não apenas do ordenamento jurídico brasileiro, mas do constitucionalismo contemporâneo (ocidental) como um todo. Notórias são, por exemplo, as críticas dirigidas pelo professor Lenio Streck à utilização desse instituto jurídico, associado ao abuso retórico dos princípios na decisão judicial (pamprincipiologismo)[1].

Afinal, embora amplamente utilizada nos preâmbulos e nos dispositivos de tratados internacionais[2], bem como em centenas de decisões judiciais em todo país, com especial relevância na solução de controvérsias acerca da interpretação de direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal (caso das revistas íntimas em presídios[3]; caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo[4]; do direito ao esquecimento na esfera civil[5]; do direito dos cidadãos de serem tratados socialmente como pertencentes a sexo diverso daquele pelo qual são identificadas publicamente[6] etc), raras são as vezes em que o conteúdo normativo (bem como a natureza da relação entre tal, e os direitos fundamentais) é explicitada com clareza (e talvez não seja esse o papel das Cortes Constitucionais, ou daqueles que elaboraram os preâmbulos e dispositivos dos tratados internacionais).

No entanto, é perceptível que, ao menos da interpretação dessas manifestações institucionais, seria possível concluir que parece amplamente aceita a percepção da dignidade da pessoa humana como fundamento (valor fundante) de legitimidade dos direitos fundamentais. Veja-se, nesse sentido, a seguinte manifestação do ministro Luis Roberto Barroso, no debate acerca do direito a uma morte digna:

“A dignidade humana pode ser considerada como o grande consenso sobreposto do[7] constitucionalismo global. Ela é mencionada em inúmeras Constituições, prevista em diversos documentos internacionais sobre direitos humanos, além de figurar em diversas decisões de cortes constitucionais e internacionais. Há forte aceitação, assim, de que a dignidade humana constitui um valor essencial subjacente às democracias constitucionais contemporâneas. No direito brasileiro, a dignidade humana foi estabelecida expressamente como um dos princípios que dão fundamento à República (Constituição, artigo 1º, III). Em nosso constitucionalismo, portanto, a dignidade atua não só como valor fundamental e justificação moral de todo ordenamento jurídico, mas também como princípio constitucional e fundamento jurídico-normativo dos direitos previstos na Constituição.” (MI 6825 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2019, processo eletrônico dje-110 divulg 24-05-2019 public 27-05-2019).

A grande questão que surge é a seguinte: não seria “dignidade humana” um preceito extremamente poroso para que possa ser considerado fundamento de algo? Como evitar que o debate público acerca dessa questão não acabe se tornando uma mera disputa de slogans? Além disso, se dignidade humana é o fundamento dos direitos humanos, qual o fundamento da dignidade humana?

Nesse debate, uniremo-nos ao professor Jeremy Waldron para sugerir e pôr em discussão uma definição de dignidade da pessoa humana diversa desta proposta “fundacionalista” (que possui seus méritos e deméritos que, no entanto, não serão exaustivamente aqui debatidos), acreditando que, embora por mais das vezes a utilização do termo “dignidade da pessoa humana” não passe de agir retórico, ou floreio político, em virtude da dificuldade da conceituação do termo, “the amorphus character of dignity is simply a sign that we are in the early stages of its elaboration: our understanding of its meaning is a work-in-progress”.[8]

Primeiramente, alguns esclarecimentos devem ser feitos a respeito da visão, um tanto quanto hegemônica, de que a dignidade da pessoa humana é um valor que está na base fundante de todos os direitos fundamentais (ou direitos humanos), i.e., uma espécie de fonte de legitimidade política de todos esses direitos (liberdades básicas de toda natureza, de expressão, locomoção, pensamento; inviolabilidade da integridade física, vedação à imposição de penas cruéis e degradantes, etc.).

O que seria um fundamento? Essa é a questão central para essa corrente de pensamento, que é analiticamente exposta por Waldron da seguinte forma:

A) A dignidade como fundamento dos direitos humanos, em um sentido histórico-genealógico, ou seja, o discurso dos direitos humanos, como um desenvolvimento histórico do discurso acerca da dignidade humana;

B) A dignidade como fundamento dos direitos humanos, no sentido de que as proposições legais envolvendo direitos humanos tem como condição de validade proposições legais acerca da dignidade humana;

C) Da dignidade da pessoa humana é possível derivar, logicamente, a existência de direitos humanos; ou

D) A dignidade humana é uma ferramenta interpretativa que ilumina, como nenhuma outra, a interpretação de direitos humanos particulares.

Muito poderia ser dito com relação a cada uma dessas percepções fundacionalistas sobre a relação entre dignidade e direitos humanos. No entanto, o objetivo da presente coluna é, antes de mais nada, apresentar uma discussão do que, necessariamente, apresentar qualquer tipo de conclusão. Nesse sentido, adentremos na tese defendida por Waldron: a dignidade não como fundamento metafísico, histórico, lógico ou interpretativo dos direitos humanos, mas como um status jurídico construído historicamente.

Isso significa dizer que a dignidade humana é um status jurídico? Status jurídico é uma abreviação que o ordenamento jurídico (e a prática forense) fixam para um pacote de direitos, deveres, responsabilidades, restrições e privilégios atribuídos pelo direito às cidadãs e cidadãos (ou grupo específico de cidadãs). Vejamos, por exemplo, o instituto jurídico da menoridade: aquele que tem idade inferior à 18 anos (ou 16, dependendo da situação jurídica específica) tem, diante do ordenamento jurídico brasileiro, um conjunto de deveres e direitos inerentes a essa condição específica da sua pessoa, como por exemplo, a impossibilidade de celebração de determinados contratos, direito de amparo econômico e afetivo dos pais.

Nesse sentido, Waldron explica, a ideia de status, para dignidade, aproxima-a, em certa medida, do antigo conceito de dignitas: “the dignitas of a noble was a diferente status from the dignitas of a priest and the difference consisted simply in the detail of the rights associated, respectively, with the status of nobility or holy order […] to say of a being that it has the status of huan dignity is certainly imply that it has human rights […].”

Esse status jurídico, no entanto, não é apenas uma nomenclatura para um amontoado aleatório e incoerente de direitos e deveres. Pelo contrário, se observarmos o exemplo trazido por Waldron acerca da menoridade, como o próprio autor aponta, perceberemos facilmente que são deveres e direitos conectados por uma “ideia pressuposta”[9], ou seja, juntos, tais direitos e deveres “fazem sentido”, não sendo, portanto, uma junção arbitrária de direitos e deveres sob um mesmo rótulo. O direito da criança menor de 18 anos de receber amparo econômico de seus pais, bem como a impossibilidade de celebração, por parte do jovem incapaz — menor de 16 anos —, de determinados atos da vida civil, são unificadas pela “ideia pressuposta” de que esses indivíduos são mais vulneráveis, merecendo cuidado especial por parte da comunidade em que vivem. Essa mesma ideia é aplicável a outros status jurídicos.

Resta saber, desta forma, qual a ideia que une os direitos englobados dentro do status jurídico “dignidade da pessoa humana”. Para ilustrar essa questão, em palestra apresentada na edição de 2011 da “The Sir David Williams Lecture”, intitulada “The Rule of Law and Human Dignity”, Waldron traz um definição que, como ele próprio admite, não é completa, nem definitiva: dignidade é o status da pessoa, significando que ela é reconhecida como sendo um ser com a capacidade de controlar e regular suas ações com base em suas próprias reflexões acerca das normas que lhe são aplicadas (ou aplicáveis), um status que reconhece à pessoa o poder de autorregulação de suas próprias ações diante do Estado e diante das demais pessoas da comunidade política, reservando a cada indivíduo da comunidade o poder de demandar diante do Estado e, igualmente, dos demais cidadãos e cidadãs, em que a sua presença (física, jurídica, política e moral) seja levada à sério.

Em outras palavras e de forma extremamente simplificada, dignidade da pessoa humana é o status que sintetiza um conjunto de direitos (tidos como fundamentais) que garantem que cada cidadã e cidadão possa “andar com a cabeça erguida diante do império da lei, do Estado e dos seus concidadãos e concidadãs”. Nesse sentido, dignidade engloba uma ideia de autonomia moral e política da pessoa, tanto em uma dimensão individual quanto em uma dimensão coletiva, de relação com o todo.

Por fim, várias são as ilustrações utilizadas por Waldron para iluminar o seu ponto. Traremos à discussão três delas, uma que carrega o debate para uma zona de discussão acerca da própria natureza do conceito de direito e da sua conexão com a ideia de dignidade humana, e outras duas que representam casos em que a dignidade humana acaba melhor sendo compreendida enquanto um status, não enquanto um valor metafísico e abstrato:

(i) Prospectividade das normas jurídicas
Vejamos, por exemplo, o mandamento, presente em boa parte dos ordenamentos jurídicos no mundo, que impõe ao Estado o dever de avaliar a conduta dos cidadãos e cidadãs apenas com base em padrões normativos previamente estabelecidos, tendo como parâmetro a conduta em julgamento. Esse ponto, defende Waldron, revela algo de fundamental entre a natureza do direito, enquanto instrumento de regulação da conduta social, e a ideia de dignidade humana e sua dimensão de auto avaliação por parte do indivíduo. Poder-se-ia, assim, questionar se um sistema jurídico que não fosse estruturado com base – dentre outros – no princípio da irretroatividade da eficácia dos padrões normativos, como regra geral, poderia, ao menos contemporaneamente, ser denominado de Direito. A discussão que surge nesse ponto, e que não será objeto do presente ensaio é: qual a relação entre dignidade humana e o conceito de Direito?

(ii) Dignidade dos instrumentos de coerção social
Agora pensemos na pena de morte, nos países em que esta é permitida. Poder-se-ia argumentar, assumindo a dignidade humana enquanto valor, que punir alguém com a morte feriria a dignidade da pessoa humana, considerando a vida como algo com um valor imanente. Essa perspectiva pode estar correta, mas, partindo da ideia de dignidade enquanto status jurídico, nos termos propostos por Waldron, podemos perceber que esta se encontra presente mesmo na ocasião da execução de uma pena de morte. Pois, argumenta o Professor, mesmo no momento derradeiro, o Estado garante ao indivíduo o direito de enfrentar a sua punição "de cabeça erguida". Tanto é que a regra geral é que o próprio condenado caminhe em direção a sua pena. Diferentemente da tortura, por exemplo, situação na qual a vítima é reduzida a um estado de infantilidade animalesca, sem a sua presença moral devidamente respeitada.

Ainda, outro exemplo trazido por Waldron é o do cumprimento das penas privativas de liberdade na Inglaterra (fazendo todas as ressalvas necessárias, considerando a diferença entre as realidades brasileira e britânica). Naquele país, quando condenado, o apenado recebe do Estado uma data e hora para apresentar-se ao local onde cumprirá sua pena. Ou seja, tem-se que o Estado, mesmo nas situações mais extremas (na aplicação do direito penal) respeita a autonomia e a "presença" moral (self-presentation) do indivíduo.

(iii) Tribunais
Enfim, a última ilustração: o cidadão, quando apresenta a sua demanda perante um magistrado ou tribunal, possui a convicção de que aquilo que for dito será levado em consideração pelo Estado juiz, no momento da sua decisão. Defende, Jeremy Waldron, que, quando presentes na Corte, não defendemos nossas causas como se estivéssemos diante de um grupo de burocratas, mas com o empenho de quem espera ter a sua presença respeitada e seus argumentos considerados. Essa, diz o autor, é a relação entre o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana, enquanto status jurídico.

Nesse contexto, dignidade humana, como restou evidente, ainda é, nas palavras do rofessor Waldron, afirmada anteriormente na presente coluna, "a work-in-progress". Significado que, para que deixe de ser um instrumento de pura retórica nos Tribunais, é preciso empenho epistêmico para tentar, na medida do possível, delimitar as fronteiras de sentido deste conceito tão caro à prática jurídica e a nossa comunidade política em geral.

[1] Nesse sentido, ver verbete sobre Pamprincipiologismo, em
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 1. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.

[2] A vedação, pela Convenção de Genebra, em seu artigo 3º, 1), c), à tratamentos humilhantes e degradantes que atentem contra a dignidade das pessoas (combatentes e não combatentes); o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que sacraliza “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo […]”; o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, que, em seu preâmbulo, preceitua “Reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana […]”.

[3] SL 1153 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 15-05-2019 PUBLIC 16-05-2019.

[4] ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 e ADI 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-201.

[5] ARE 833248 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 11/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 19-02-2015 PUBLIC 20-02-2015.

[6] RE 845779 RG, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 13/11/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 09-03-2015 PUBLIC 10-03-2015.

[7] Consenso sobreposto, conforme preleciona o ministro Barroso, é um conceito trabalhado por John Rawls (Overlapping consensus: John Rawls. The idea of an overlapping consensus. Oxford Journal of Legal Studies, vol. 7, 1987), para referir-se a um “mínimo-é” compartilhado pelas mais variadas formas culturais, ou mesmo ideais de vida boa diversas existentes em uma mesma comunidade, que compõe o pluralismo valorativo em que o mundo se encontra.

[8]A base para este texto foi um artigo, publicado por Jeremy Waldron em 2013, na New York University Public Law and Legal Theory Working Papers (paper 374).

[9] Tradução livre para “underlying idea”.

Autores

  • é professor, advogado, pós-doutorando em Direito, doutor em Filosofia e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Também é membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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