Opinião

O governo tem de ser obrigado a cumprir as leis e a Constituição

Autor

  • Renato Janine Ribeiro

    é professor de Ética e Filosofia Política da USP e da UNIFESP. Ex-Ministro de Estado da Educação. Prêmio Jabuti de 2001 com seu livro A sociedade contra o social.

29 de novembro de 2019, 18h00

“Paz é guerra, amor é ódio”, diz o governo de 1984, o romance distópico de George Orwell. Estamos vivendo essa inversão total dos valores. Ministérios e órgãos governamentais adotam políticas — às vezes meras declarações, em outros casos atos e omissões — que contrariam a missão para a qual foram criados. O exemplo mais recente, enquanto escrevo, e que já estará superado amanhã, é o da nomeação, para dirigir o órgão oficial incumbido de promover a cultura negra, de alguém que desqualifica a militância contra o racismo.

A questão é: isso é legal? É constitucional?
O ministro da Economia, Paulo Guedes, fez seu baile de debutantes ridicularizando o Mercosul. Mas a Constituição Federal, no parágrafo único do artigo 4º, diz que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Evidentemente, pode haver divergências sobre o modus faciendi dessa busca, mas não se pode ir na direção oposta. Qualquer recuo imotivado nessa integração agride o texto constitucional.

O governo não pode adotar políticas que nos afastem da integração latino-americana. Não pode retroceder no já conquistado. Evidentemente, tem o poder politico, conferido pelo voto, de alterar compromissos, de renegociá-los, incluindo reagir a medidas agressivas de qualquer ordem, mas não pode tomar a iniciativa de recuar na integração, sem justificativas convincentes ou sem provocação de outra parte.

No começo de nossa Constituição, o Brasil diz o que ele quer ser. Por exemplo, prometeu erradicar a pobreza (artigo 3º). É óbvio que essa intenção pode ser cumprida de formas diferentes. Uns países o fizeram, como o Brasil na era petista, mediante uma intervenção maior do Estado. Países asiáticos avançaram nesse rumo liberalizando suas economias. Mas o que não se pode é recuar. A destruição de direitos sociais entra perigosamente na seara anticonstitucional. A reforma trabalhista de Temer, reduzindo vários direitos trabalhistas, foi justificada porque assim se criariam milhões de empregos. Ninguém os viu! É argumentável que a reforma foi inconstitucional, porque ofendeu o dispositivo da Constituição que manda reduzir a pobreza. Se os remédios ditos liberais a aumentaram, como se sustentam ante o mandamento superior, constitucional?

Tomemos o artigo 3º. O Brasil quer “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I). Promover o armamento indiscriminado fortalece a solidariedade? Propagandear o uso privado da violência como forma de solução de conflitos — como quis o atual ministro do Meio Ambiente, quando concorreu pelo Partido Novo a deputado pregando o uso de armas de fogo para resolver conflitos agrários — contraria o espirito solidário que deve prevalecer entre nós.

Vejam o recente veto presidencial, derrubado pelo Congresso, a projeto de lei (agora, portanto, lei) que mandava os hospitais avisarem em 24 horas o Poder Público no caso de violências cometidas contra mulheres. Podia o presidente vetar o projeto? De um ponto de vista rasteiro, sim. Mas, desde a lei Maria da Penha e, mais que isso, desde o propósito do constituinte de construir uma sociedade “livre, justa e solidária”, a comunicação de um crime cometido contra pessoa vulnerável é consequência lógica. Quer dizer, o presidente até pode vetar, mas o Supremo Tribunal poderia decidir vicariamente e por analogia com muitos dispositivos legais que é obrigatório o sistema de saúde comunicar, a quem de direito, a comissão de um crime. É o mesmo que ele fez com a homofobia, considerando-a crime de racismo enquanto o legislador não cumprir sua obrigação.

Também é nossa meta “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, para citar por inteiro o inciso III. Ora, estes anos as desigualdades aumentaram, isso depois de anos seguidos em que diminuíram. Era inevitável piorar a desigualdade? Não.

Poderíamos ter elevado os impostos em que cabe a progressividade e que assim reduzem a desigualdade. Poderiam ter sido criadas novas alíquotas do imposto de renda de pessoa física, como o Chile está fazendo, como a França e a Alemanha fazem (chegando a mais de 40% nas faixas de renda mais elevadas, contra nossos ridículos 27,5%), poderíamos ter introduzido ou reforçado o caráter progressivo do IPTU, sobre imóveis, e do IPVA, que por sinal deveria também ser cobrado de aviões particulares e de iates. Nenhuma destas medidas prejudicaria o desenvolvimento econômico. O imposto de renda a aumentar seria o das pessoas físicas, não o das pessoas jurídicas, ou empresas. É possível promover justiça social sem que isso prejudique o crescimento do PIB.

Há medidas de distribuição que podem piorar o desempenho econômico, mas há outras que o melhoram. O caso dos jatinhos particulares, muitos deles comprados com juros subsidiados pelo BNDES, e o dos iates — que trazem conforto aos ricos, mas não riqueza à sociedade — são exemplos de propriedades que devem ser tributadas, para atender ao mandamento constitucional da redução das desigualdades.

No inciso IV, o Brasil se propõe a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Isso está sendo descumprido. Quando se votou o Plano Nacional de Educação, este determinou que a escola combateria toda forma de discriminação. A discriminação mais forte hoje, desde a declaração do então candidato Bolsonaro segundo a qual preferia ter um filho morto a homossexual, diz respeito às orientações de gênero. Há até um grupo, chamado “escola sem partido”, que parece ter por meta defender a discriminação a quem tenha uma vida sexual não canônica. Tudo isso é inconstitucional. Uma simples declaração preconceituosa de um governante já traz resultados (sabemos, desde Austin ou talvez Hobbes, que “palavras são atos”). Pregar a discriminação não é só imoral: viola a Constituição.

Se o artigo 3º diz como o Brasil deve ser internamente, o 4º fala de nossa política externa. Seu primeiro objetivo é defender a “independência nacional”. Dar a base de Alcântara para um poder estrangeiro, no caso norte-americano, impor suas leis e isentar-se das brasileiras não quebra nossa independência? Tem valor constitucional?

Segue-se a “prevalência dos direitos humanos”. Podemos, na ONU, votar contra eles? Passar pano na Arábia Saudita, que crucifica cristãos, coisa que não se faz no resto do mundo desde quase dois milênios? Os governos petistas foram lenientes com Cuba neste quesito, mas não se compara o regime cubano, que gradualmente reduziu a aplicação da pena de morte, e o saudita, recordista mundial em decapitação, apedrejamento, crucifixão. E aqui não se peca só por ação, mas por omissão. Quando nosso governo ignora os crimes contra os direitos humanos praticados por amigos, entre eles o de Netanyahu em Israel, quebra nossa ordem constitucional.

Tomemos em conjunto os cinco incisos seguintes: “autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos”. Meses atrás, o governo insinuou que poderia ajudar os Estados Unidos a invadir a Venezuela. Tenho dúvidas se o governo Maduro emana da vontade de seu povo, dado que foi regularmente eleito em 2013 mas desrespeitou as eleições congressuais posteriores. Não sei onde está a autodeterminação do povo da Venezuela, se com Maduro ou Guaidó ou nenhum dos dois. Contudo, os quatro outros incisos deixam claro que o Brasil não pode aceitar uma intervenção imperial num país menor e que deve procurar soluções pacíficas para conflitos. Esse é um dos traços históricos de nossa diplomacia, que não entrou nas aventuras malfadadas das invasões do Iraque e do Afganistão, ou da intervenção na Líbia e na Síria, todas elas invocando princípios humanitários, todas elas resultando em desastres humanos que fizeram o que era ruim ficar pior.

Passemos da Constituição às leis. O Brasil criou órgãos públicos que visam a atender nossos princípios constitucionais, nossa autodefinição como sociedade democrática e inclusiva. Podem eles ser desviados dessas finalidades? O que significa o Ministério do Meio Ambiente reduzir sua capacidade de defender a natureza, demitindo de fiscais até o presidente do INPE, só porque não aceitaram o descaso com a ecologia? Ou a Cultura ficar em mãos de pessoas que, ao contrário de sua definição universalizante e não autoritária como fator democrático, a concebem como veículo de dominação e de subordinação?

Ou a Educação. Desde a posse do atual governo se falou, como eu mesmo disse quando assumi a direção do MEC, em 2015, que a prioridade deve ser a educação básica. Esse se tornou um consenso brasileiro, indo do PT ao PSDB, que no tocante à educação básica (mas não à universitária) estiveram mais perto um do outro do que em qualquer assunto restante. Mas o que se fez nesta direção? O governo atual passou quase um ano condenando Paulo Freire, elogiando o método de alfabetização fônico talvez porque excluísse o projeto de visão crítica da sociedade que era essencial no método freiriano, mas praticamente ignorou a existência de um plano pronto para a alfabetização.

Eu me refiro à iniciativa da alfabetização na idade certa, deflagrada em 2007 pelo governo do Ceará, e que tornou o poder estadual protagonista de uma ação que legalmente é municipal — a alfabetização entre os seis e oito anos de idade — mas que os municípios mal conseguem realizar sem apoio do Estado. O sucesso foi tal no Ceará que, em 2013, o projeto foi federalizado, mas nas dimensões do Brasil não teve o mesmo rápido êxito alcançado lá. Mas foi aprimorado.

Em 2018, quando me perguntavam qual deveria ser a prioridade do futuro governo na educação, sempre citei a esse projeto, quase pronto, que promoveria uma revolução social enorme. Imaginem: cerca de metade dos meninos e meninas de oito anos não estão plenamente alfabetizados. Coube-me revelar o tamanho do problema, e o fiz com a satisfação de quem prefere dizer a verdade, ainda que dura, a fingir que não existem problemas, forma segura de jamais os resolver.

Mas o que o governo atual fez, apesar de prometer a ênfase na educação básica? Qual o seu único projeto retumbante — e duvidoso — na área de educação? É o Future-Se, voltado para o ensino superior. Lá onde as coisas pediam para ser resolvidas, onde seria fácil agir, que é a educação básica, ele se calou. Lá onde criaria problemas, ou seja, no ensino superior, criou-os.

Isso é matéria legal, constitucional? Como o Plano Nacional de Educação e outras peças legais colocam a meta de uma educação universalizada, melhor e mais promissora, medidas opostas a esses mandamentos podem ser ilegais. Esta é a novidade e uma das belezas da Constituição de 1988 — uma Carta intensamente programática, que estabeleceu o mandado de injunção: se os poderes eleitos não fizerem o que está mandado nela, o Judiciário pode exigir isso deles e, enquanto não agirem, tomar as decisões necessárias para cumprir o mandamento constitucional.

É o que recentemente aconteceu com a assimilação da homofobia a crime de racismo. O legislador pode adotar outros caminhos para extirpar a homofobia, mas não pode ignorar que é crime. O modo de punir cabe ao legislador definir, o modo de prevenir cabe a ele e ao Executivo, mas fingir que não é problema não é direito de nenhum deles. Um governo que desde a campanha hostiliza os homossexuais trilha uma perigosa senda que pode violar a Constituição e as leis. Repito: o Brasil se comprometeu a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Assim, não só ações discriminatórias, como declarações que as defendam, ou mesmo a omissão no combate à discriminação — especialmente quando a omissão decorre da supressão de mecanismos que existiam para tal combate — violam nosso ordenamento jurídico, mais que isso, constitucional.

Não sou advogado. Minha área é a Filosofia Política. Mas entendo que a soberania popular, que se manifesta de maneira particularmente intensa na construção de uma Constituição, exige respeito. Penso que as profissões jurídicas têm um dever importante agora. Cabe a elas fazer cumprir o que está na Constituição e nas leis.

Advogados, defensores, promotores, procuradores, magistrados deveriam aproveitar o vasto conhecimento técnico que adquiriram sobre os assuntos sociais tratados na Constituição e contestar, em juízo, as medidas dos atuais governos — porque o mesmo sucede nos planos estadual e por vezes municipal — que violam os princípios da República e os direitos humanos. Não se trata de judicializar a política, o que se fez com resultados lamentáveis, como revelaram os dados divulgados pelo The Intercept Brasil. Trata-se de fazer cumprir a Constituição.

O que o Intercept revelou foi uma série de infrações à lei e à Carta pelos que deveriam defende-las. Precisamos exatamente do contrário: que sejam cumpridas. O conteúdo programático da Constituição deve ser aplicado. Não se pode nomear para dirigir o meio ambiente quem não o defende, para coordenar a promoção da cultura e coletividade negras quem é contra seus valores. Não se pode dar à raposa o controle do galinheiro. Evidentemente, essas restrições deixam a quem está no governo latitude para adotar uma política econômica liberal, se assim quiser e souber, bem como para seguir medidas que estejam no programa de sua campanha. Mas o que é determinado pela Constituição e pelas leis não pode ser convertido em mera parolagem. A novidade da Carta de 1988 é que ela, desde o começo, pretendeu ser para valer. Tem que ser mesmo. Isso depende muito de nós, em especial, dos leitores da ConJur, que têm a capacidade técnica e o dever moral de defender a Constituição.

*Texto alterado às 17h54 do dia 30/11/2019 para correção de informações.

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  • é professor de Ética e Filosofia Política da USP e da UNIFESP. Ex-Ministro de Estado da Educação. Prêmio Jabuti de 2001 com seu livro A sociedade contra o social.

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