Excludente de ilicitude

PL viola CF ao proibir prisão em flagrante e colocar AGU para defender militares

Autor

27 de novembro de 2019, 11h02

O projeto de lei do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que cria regras para agentes de segurança em operações de garantia da lei e da ordem (GLO) amplia as hipóteses de legítima defesa. Além de estimular a violência e a impunidade, a proposta viola a Constituição ao proibir a prisão em flagrante de militares e policiais e ao estabelecer que eles serão defendidos pela Advocacia-Geral da União nesses casos.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Michel Temer autorizou operação de GLO no Rio de Janeiro em 2017
Tânia Rêgo/Agência Brasil

O texto, enviado ao Congresso na quinta-feira passada (21/11), cria regras para atuação em operações de GLO de integrantes das Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros Militares.

O projeto proíbe a prisão em flagrante de quem estiver agindo em legítima defesa. Para o jurista Lenio Streck, a prática é inconstitucional. “Policiais não são juízes. É um absurdo. Quem está dando essas ideias ao presidente? Parece que quem elaborou esse projeto não estudou Direito. Deve ser de outra área”.

Além de proteger militares e policiais, a proibição da prisão em flagrante em operações de GLO tem uma função adicional, ressalta o professor de Direito Penal da UFRJ Salo de Carvalho: “Comunicar aos agentes da segurança que suas condutas, mesmo abusivas, estão em sintonia com a política criminal bélica que integra o atual plano dos governos estadual e federal”.

Defesa da AGU
O projeto de Bolsonaro também prevê que os agentes de segurança que responderem a inquérito ou processo em decorrência de atos praticados em operações de GLO serão defendidos pela Advocacia-Geral da União. Porém, isso é função de advogados ou da Defensoria Pública, não da AGU, avaliam Lenio Streck e Salo de Carvalho.

O artigo 131 da Constituição estabelece que a AGU “representa a União, judicial e extrajudicialmente”, cabendo-lhe “as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.

A Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/1993) regulamenta as atividades do órgão. A AGU é composta por advogados da União, que atendem pela administração direta, e procuradores da Fazenda Nacional, que cuidam de assuntos tributários. Vinculam-se ainda à AGU os procuradores federais, membros da Procuradoria-Geral Federal, que atuam junto às autarquias e fundações públicas federais; e os procuradores do Banco Central.

Todos esses advogados públicos atuam em defesa do Estado, não de servidores acusados de irregularidades ou crimes.

Não é a primeira vez que Bolsonaro tenta colocar a AGU para representar servidores acusados de ilicitudes. Apresentada nos primeiros dias de seu governo, a Medida Provisória 870/2019, posteriormente convertida na Lei 13.844/2019, atribuiu ao órgão a função de defender os agentes de segurança pública que venham a responder inquérito policial ou processo judicial em razão da profissão.

A MP alterou a Lei 11.473/2007, que trata da cooperação federativa na segurança pública, e alcança todos os integrantes da Secretaria Nacional de Segurança Pública, incluídos os da Força Nacional, os da Secretaria de Operações Integradas e os do Departamento Penitenciário Nacional.

Ação no STF
A questão foi levada para discussão no Supremo Tribunal Federal em 2003. À época, o Conselho Federal da OAB ingressou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI 2.888) contra o artigo 22 da Lei 9.028/95, que alterou as atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União previstas no Código de Processo Civil.

A OAB apontou que a Constituição Federal prevê que a AGU defende interesses da União e não permite atuação em interesses dos servidores públicos. Inicialmente, a ação foi distribuída ao ministro Gilmar Mendes, mas desde 2011 está na mesa da ministra Rosa Weber, que substituiu a relatoria e admitiu o ingresso, como amicus curiae, do município e estado de São Paulo; da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape).

No mesmo ano, o Rio Grande do Sul pretendia adotar a medida em âmbito estadual, que foi barrada pelos ministros na análise da ADI 3.022.

Outras inconstitucionalidades
A proposta que o presidente enviou ao Congresso ainda amplia as hipóteses de legítima defesa. Repetindo o Código Penal, o texto afirma que “considera-se em legítima defesa o militar ou o agente que repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

O projeto também diz que fica considera-se injusta agressão, hipótese em que estará presumida a legítima defesa, a prática ou a iminência da prática de ato de terrorismo ou conduta capaz de gerar morte ou lesão corporal; restringir a liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; ou portar ou utilizar ostensivamente arma de fogo. Nesses casos, o agente de segurança responderá somente pelo excesso doloso, e o juiz poderá atenuar a pena.

Como a legítima defesa já é prevista pelo Código Penal, não há necessidade de uma regulamentação específica para operações de GLO, opina Salo de Carvalho. Ele também avalia que a medida irá estimular a violência policial e garantir a impunidade dos agentes de segurança que a praticarem.

“Todavia, o que se pretende é operar uma mudança: 1) no conteúdo da excludente, aceitando casos de legítima defesa antecipada, o que é vedado pela lei; 2) na forma dos autos de resistência, reforçando a sua duvidosa legitimidade; e 3) na comunicação com as forças de segurança, garantindo simbolicamente a impunidade nos casos de atuação em GLO, situação que, na atual estrutura do sistema penal brasileiro, aumenta significativamente a letalidade policial nas áreas vulneráveis”, destaca o professor da UFRJ.

“Esse projeto é, além de tudo, irresponsável”, critica Lenio Streck. Provavelmente nenhum país do mundo teve tido coragem de fazer isso. Se for aprovado nesses moldes, o porteiro do STF declara inconstitucional. O projeto parece imaginar um estado de guerra ou estado de sítio. Lamentável”.

Para o jurista, a proposta é repleta de violações à Constituição. Segundo ele, o texto desrespeita os princípios da dignidade humana, da vida e do devido processo legal. Isso porque permite que um policial atire sem que a vítima esteja necessariamente cometendo um delito.

Nessa mesma linha, o criminalista Fernando Augusto Fernandes ressalta que legitima defesa é usar moderadamente os meios necessários na proteção de um bem jurídico. Dessa maneira, quando uma vida estiver em risco, permite-se uma reação que possa culminar na morte do agressor.

“Mas não é possível prever legítima defesa para repelir uma lesão corporal ou para tratar uma simples conduta de porte ilegal de arma sem a ação, ou simples violência ou grave ameaça. É evidente que a proposta fere a proporcionalidade e cria a possibilidade de penas de morte – algo por si só inconstitucional, mais ainda sem o devido processo legal. O texto torna o estado de guerra, que é exceção, em regra”, diz Fernandes.

O projeto de Bolsonaro não só é inconstitucional e ilegítimo do ponto de vista de um Estado Democrático de Direito, como também se trata de “um retrocesso gigante ao autoritarismo de época não tão longínqua, a ditadura civil-militar”, analisa Victória-Amalia de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki, professora de Direito Penal da PUC-Rio.

Ela também entende que a proposta do presidente é uma forma de driblar as dificuldades que o pacote anticrime, do ministro da Justiça, Sergio Moro, está enfrentando no Congresso. Em setembro, o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que analisa as medidas retirou do texto as ampliações de excludentes de ilicitude para policiais.

*Texto alterado às 13h25 do dia 27/11/2019 para correção de informações.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!