Contas à Vista

A estranha proposta de transação federativa envolvendo a Lei Kandir e os royalties

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

26 de novembro de 2019, 9h21

Spacca
Tem certos assuntos que, confesso, me parecem tão estranhos que me levam a querer pedir ajuda aos universitários. Me deparei com um desses ao ler uma das PEC do Ministro Guedes, que propõe uma estranha transação entre a União e os Estados. Vou tentar expor a questão.

É sabido que desde a promulgação da Constituição em 1988: (1º) a União é “dona” do petróleo, minério e potenciais de energia hidrelétrica, conforme o art. 20, incisos I, V, VIII e IX; (2º) toda receita obtida pela União com a venda desse “patrimônio” deve ser repartida com Estados, Distrito Federal e Municípios, na forma da lei, por força do §1º do art. 20; e (3º) obedecendo a tal norma constitucional, diversas leis foram elaboradas pelo Congresso Nacional regulando o que denomino de federalismo patrimonial, sendo que, uma delas, a que trata da divisão dos royalties do petróleo marítimo, está pautada para ser julgada dia 22 de abril de 2020, sob relatoria da Ministra Cármen Lúcia (ADI 4.917).

A denominada PEC do Pacto Republicano (PEC 188) propõe alterar o art. 20, introduzindo um §3º, que não muda nada do que acima descrevi[1].

Prosseguindo na leitura do quebra-cabeças que são as PECs, me deparei com o art. 6º da PEC 188, que busca alterar o ADCT, introduzindo, dentre outros, o art. 91-A, assim redigido:

A transferência obrigatória de que trata o §3º do art. 20 da Constituição Federal, somente será implementada em favor dos entes federativos que renunciem a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem ações judiciais, inclusive coletivas, ou recursos que tenham por objeto tema relacionado ao art. 91 deste ADCT[2]

Ora, desde 1988 este rateio federativo é uma transferência que a União é obrigada a fazer aos Estados, Municípios e DF – observe-se que isso é reconhecido na primeira frase da proposta de art. 91-A.

Todavia, a proposta de art. 91-A condiciona a realização de tal transferência obrigatória à renúncia de quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem ações judiciais movidas pelos Estados contra a União sobre os repasses da Lei Kandir (art. 91, ADCT), cuja decisão terminativa já foi proferida pelo STF em favor dos Estados (ADO 25), relatada pelo Ministro Gilmar Mendes.

Aqui surge minha estupefação, pois a União está propondo que os Estados renunciem os créditos que possuem por decisão do STF, estabelecendo reposição das perdas com os repasses da Lei Kandir, a fim de que possam receber o que já é seu desde 1988, que são as transferências obrigatórias dos royalties de petróleo, minérios e hidro energia.

Minha primeira surpresa é que a União não pode estabelecer condições para transferência obrigatórias – pode até o fazer para transferências voluntárias, mas não para as obrigatórias.

A segunda surpresa é que, segundo consegui entender, a União quer transacionar sua obrigação de pagar (transferir a receita de royalties) estabelecida pela Constituição, com sua obrigação de pagar, estabelecida por decisão do STF na ADO 25 (reposição de perdas nos repasses da Lei Kandir).

Será que entendi bem? Usualmente transação envolve compensação, que se faz entre créditos e débitos, e não entre débitos e débitos. A União deve aos Estados nas duas situações!

É verdade que ainda são ilíquidos os valores que os Estados têm a receber fruto da ADO 25, pois dependem da “liquidação da sentença”, que não foi feito pelo TCU, em face da omissão do Congresso, desobedecendo o que havia sido determinado pelo STF naquela ação. A liquidação dos valores prossegue no bojo da ADO 25, ainda em trâmite no STF.

Ocorre que, se bem entendi, a transação proposta inapelavelmente contém uma compensação de créditos dos Estados contra a União, nas duas situações. Onde estarão os débitos dos Estados a serem compensados neste caso?

Ou não se trata de transação, mas de uma declaração na qual a União diz, alto e em bom som, que não pagará nada aos Estados, que devem se contentar em receber aquilo que já é seu? Talvez esse trecho da Exposição de Motivos que acompanha a PEC 188 dê uma pista para melhor entender a questão:

A lógica das contrapartidas segue o fato de que os recursos transferidos pela União precisam substituir pleitos de Estados e Municípios por mais recursos, uma vez que esses novos recursos já estão sendo transferidos dentro do novo pacto federativo. Não há recursos para fazer a transferência mais de uma vez.

Pode até ser que os Estados aceitem essa situação, pois estão com o pires na mão, tantos são os desvios de receita federativa que foram feitos desde 1988, descumprindo o pacto federativo. Quem se interessar sobre o tema, sugiro a leitura do livro que coordenei em conjunto com os professores Misabel Derzi, Heleno Taveira Torres e Onofre Batista denominado Federalismo (s)em Juízo, no qual são debatidas diversas lides perante o Poder Judiciário entre os entes da federação brasileira. Porém, sob a ótica jurídica, a proposta não parece fazer sentido.

Aqui surge a seguinte questão: Ou não entendi nada, e devo pedir ajuda aos universitários, ou é isso mesmo, e minha estupefação tem fundamento.

Qual sua opinião, caro leitor?


[1] Texto da proposta de §3º do art. 20: “Para assegurar o fortalecimento da Federação, a União transferirá parte dos recursos de que trata o §1º que sejam de sua titularidade a todos (os) Estados, Municípios e ao Distrito Federal, cabendo à lei estabelecer percentuais, base de cálculo e condições, bem como disciplinar critérios de distribuição que contemplem, entre outros indicadores de resultado” (parêntesis acrescido).

[2] A estrutura do texto desta proposta de norma me recorda o da MP 899 (art. 3º, IV, art. 14, §2º, I e III), que criou a transação tributária no âmbito da União, que é aplicável para situações muito distintas, envolvendo a credora União e devedores privados (ou assemelhados).

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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