Opinião

Tutela provisória no incidente de desconsideração da personalidade jurídica no TJ-RJ

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25 de novembro de 2019, 6h27

A desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional cuja aplicação é relegada a caso extremos em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos por aqueles que a idealizaram, valendo-se dela para encobrir ilícitos que propugnaram seus sócios ou administradores.

Com a entrada em vigor Código de Processo Civil de 2015 (Lei n° 13.105/2015), o instituto da desconsideração da personalidade jurídica ganhou regramento próprio, mais especificamente nos arts. 133 a 137.

A rigor, uma vez suscitado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o procedimento autoriza que um terceiro venha a ingressar na relação processual. Nesse momento, o sujeito até aqui estranho ao processo perderá a qualidade de terceiro e tecnicamente passará a ser qualificado como parte do processo.

No incidente, o terceiro estranho à relação processual é titular de relação jurídica conexa àquela discutida em juízo. Com efeito, o patrimônio do terceiro está potencialmente sujeito aos meios executivos pretendidos, em razão de débito ostentado por uma outra pessoa.

Com o objetivo de evitar que o patrimônio de terceiro seja atingido sem que lhe seja concedida a oportunidade de exercer o contraditório, o legislador tratou de protege-lo, por meio de um procedimento específico, no qual será decidida a efetiva responsabilidade patrimonial, autorizando, consequentemente, sejam adotados os meios executivos sobre o patrimônio pessoal daquele que não figura como devedor na relação processual.

De um lado, a lógica por trás da criação do incidente é remediar situações abusivas e fraudulentas. Afinal, o mero inadimplemento de obrigações contratuais não autoriza investidas temerárias contra o patrimônio de sócios ou sociedades supostamente ligadas ao débito discutido em determinada relação jurídica.

Na outra ponta, a valorização do contraditório não poderia servir de blindagem ao patrimônio de potencial devedor para que ele frustre eventual execução. Não há dúvidas de que certos casos demandam urgência da prestação jurisdicional, sob pena de não ser possível garantir o resultado útil do processo.

Nesse sentido, em caráter excepcional, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já decidiu que, muito embora seja obrigatória a instauração do incidente, não há óbice à desconsideração da personalidade jurídica de forma liminar:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. REQUERIMENTO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA DE NATUREZA CAUTELAR. INDISPONIBILIDADE DOS BENS DOS SÓCIOS DA PRIMEIRA AGRAVADA. TRANSPORTES SÃO SILVESTRE S/A. INTERRUPÇÃO DO SERVIÇO DE FORMA ABRUPTA. NECESSIDADE DE SE GARANTIR A EFICÁCIA DO PRÓPRIO PROCESSO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM SEDE LIMINAR. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. Não se conhece da preliminar de ilegitimidade ativa do agravante para ajuizar a ação originária, suscitada por vários dos agravados, porque o tema não foi enfrentado, ainda, pelo D. Juízo a quo, sob pena de supressão de instância. 2. Busca a agravante que seja decretada a indisponibilidade dos bens dos agravados, os quais teriam, em sua ótica, encerrado as atividades da primeira agravada de forma irregular, deixando de arcar com os débitos fiscais e trabalhistas. 3. Sustentou, ainda, que na forma prevista no contrato de constituição do consórcio, é seu o dever de arcar, solidariamente, com os débitos de seus participantes, motivo pelo qual o risco de dano seria iminente. 4. De fato, a análise dos documentos que acompanham o presente recurso evidencia a existência de débito milionário em desfavor da primeira agravada, de natureza trabalhista e tributária. 5. Chamada a agravante a arcar com as dívidas apontadas, em razão da sua solidariedade contratual e legal, nascerá o seu direito de regresso, ex vi do artigo 934 do Código Civil. O risco de dano iminente é, pois, cristalino. 5. O resultado útil do processo está ameaçado, na medida em que o decurso do tempo poderá favorecer a dilapidação do patrimônio da sociedade, o que deve ser evitado. 6. A desconsideração da personalidade jurídica, como se sabe, é medida excepcional e somente deve ser determinada pelo Poder Judiciário quando presentes os requisitos do artigo 50 do Código Civil, o qual exige a prova da confusão patrimonial ou desvio de finalidade. 7. Não há óbice à desconsideração da personalidade jurídica de forma liminar, por este Tribunal de Justiça, especialmente quando presentes os requisitos para a concessão de tutela de urgência, sob pena de se fragilizar a própria efetividade da jurisdição. 8. Revela-se suficientemente comprovada a prática de atos irregulares por parte dos agravados, considerado o fato de que as atividades empresariais foram encerradas de forma abrupta, o que ensejou o abandono das linhas de ônibus operadas pela primeira agravada. 9. Além disso, centenas de funcionários foram demitidos e o passivo fiscal e trabalhista se elevou a níveis alarmantes, o que denota a incapacidade, a priori, da primeira agravada de assumir com suas obrigações. 10. Isso tudo faz concluir ser crível a alegação de desvio da finalidade social por abuso de personalidade, já que os serviços prestados pelas agravadas foram finalizados sem prévia notícia e sem observar os procedimentos legais. 11. Indispensável, pois, que os bens dos diretores da sociedade-agravada sejam também atingidos pela ordem cautelar exarada nestes autos, com o fito de garantir a eficácia do próprio processo. 12. Caso fique demonstrado, ao longo da instrução processual, que a referida parte possui bens suficientes, livres e desembaraçados para fazer frente à integralidade da dívida, poderá ser, obviamente, levantada a indisponibilidade dos bens dos sócios-diretores da sociedade. 13. Provimento do recurso” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0002002-11.2018.8.19.0000, 15ª Câmara Cível, Rel. Des. Gilberto Clóvis, j. 27.11.2008 — grifou-se).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DEFERIMENTO DA TUTELA PARA DEFERIR A DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA DO DEVEDOR. CONSOANTE O ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, EMBORA CONSTITUA MEDIDA DE CARÁTER EXCEPCIONAL, É ADMITIDA QUANDO FICAR CARACTERIZADO DESVIO DE FINALIDADE, CONFUSÃO PATRIMONIAL OU DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE. A LEI PROCESSUAL EM VIGOR NÃO IMPEDE O DEFERIMENTO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA, CASO PREENCHIDOS OS REQUISITOS LEGAIS. DESPROVIMENTO DO RECURSO” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0065565-13.2017.8.19.0000, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. César Felipe Cury, j. 21.03.2018 — grifou-se).

Em outra oportunidade, o TJ/RJ também esclareceu que, ainda que a lei processual tenha se quedado inerte quanto à possibilidade do deferimento de tutela provisória de urgência, o capítulo que trata do incidente não implica no afastamento do poder geral de cautela atribuído ao juiz — que permitiria, igualmente, a análise do alegado risco de comprometimento da efetividade da tutela jurisdicional a ser outorgada ao final do processo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INDEFERIMENTO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. Hipótese em que o magistrado de origem indeferiu o pleito do agravante, sem tecer qualquer consideração acerca da existência (ou não) dos requisitos legais do art.300, do NCPC, firme no argumento de que não é cabível a tutela antecipatória de urgência em sede incidente de desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração da personalidade jurídica é medida que se submete ao novo regramento processual, mediante a instauração do respectivo incidente, previsto no artigo 133, em respeito ao contraditório. No entanto, a lei processual em vigor não impede o deferimento de tutela provisória de urgência, caso preenchidos os requisitos legais. Ainda que assim não fosse, o silêncio da lei sobre tal possibilidade, no capítulo que trata do incidente, não implica o afastamento do poder geral de cautela atribuído ao juiz, que permitiria, igualmente, a análise do alegado risco de comprometimento da efetividade da tutela jurisdicional a ser outorgada ao final do processo. Precedente do STJ e desta Câmara Cível. Erro do magistrado na condução do processo. Incidência do enunciado de Súmula 168, do TJRJ, segundo o qual "o relator pode, em decisão monocrática, declarar a nulidade de sentença ou decisão interlocutória. Decisão anulada, de ofício, determinando-se o retorno dos autos à origem, a fim de que sejam analisados os pressupostos legais para a concessão da medida postulada. DESPROVIMENTO DO RECURSO. DECISÃO ANULADA DE OFÍCIO” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0056036-67.2017.8.19.0000, 21ª Câmara Cível, Rel. Des. André Ribeiro, j. 06.10.2017 — grifou-se).

É certo, porém, que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro mantém entendimento de que a tutela antecipada em sede de incidente de desconsideração da personalidade jurídica apenas é cabível em situação de necessidade comprovada e desde que demonstrados os requisitos autorizadores, tanto do art. 300 do CPC/2015 como do art. 1.080 do CC/02, dada a excepcionalidade da medida. Nesse sentido, confira-se:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS E MATERIAIS COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA PARA DESCONSIDERAR A PERSONALIDADE JURÍDICA DAS RÉS, INAUDITA ALTERA PARTE. TUTELA PROVISÓRIA INDEFERIDA. NECESSIDADE DE MAIOR DILAÇÃO PROBATÓRIA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica. 2. Em suas razões, a agravante sustenta o risco das agravadas ocultarem seu patrimônio ou se tornarem insolventes no curso da ação. 3. Aplicação do art. 28, § 5º do CDC, que dispõe sobre a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, in verbis: "Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores." 4. Diante das provas até então apresentadas, não há como se extrair a verossimilhança nas alegações da agravante quanto a efetiva necessidade de desconsideração da personalidade jurídica, haja vista que, no caso, não há como se concluir, a princípio, que as agravadas realmente não possuam bens para a satisfação do crédito ou que estejam ocultando seu patrimônio. 5. Na presente hipótese, o indeferimento da tutela pleiteada não acarretará à parte agravante um dano reverso de difícil ou impossível reparação, valendo acrescentar que a questão em debate é de cunho meramente patrimonial. 6. A desconsideração é medida episódica e excepcional. A medida pleiteada pela parte agravante, em juízo de cognição sumária, é deveras grave para ser deferida sem a devida instrução do feito. 7. Não verifico presentes, neste momento, os requisitos autorizadores da medida, previstos no artigo 300, do Código de Processo Civil, fazendo-se necessário aguardar a oitiva da parte contrária e a dilação probatória, para que se possa apurar com maior precisão, a veracidade dos fatos relatados pela Autora/Agravante. Requisitos que não se presumem. 8. Decisão que não se mostra teratológica, contrária à lei ou à prova dos autos. Inteligência da súmula nº. 59 deste Tribunal. RECURSO DESPROVIDO.” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0039341-67.2019.8.19.0000, 26ª Câmara Cível, Rel. Des. Wilson Do Nascimento Reis, j. 03.10.2019)

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. TUTELA DE URGÊNCIA DE NATUREZA CAUTELAR. ARRESTO. REQUISITOS. AUSÊNCIA. DECISÃO QUE SE MANTÉM. 1. In casu, trata-se de agravo contra decisão que indeferiu a tutela de urgência, de natureza cautelar, nos termos do artigo 301 do Código de Processo Civil. 2. Para o deslinde da questão, necessária análise dos pressupostos legais para o deferimento, ou não, da tutela de urgência pretendida pelo autor, nos termos do artigo 300 do Código de Processo Civil. Doutrina. 3. Busca o agravante, em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a concessão de tutela de urgência de natureza cautelar, a fim de que seja realizado o arresto de bens dos sócios da empresa executada. 4. Consoante o artigo 50 do Código Civil de 2002, a desconsideração da personalidade jurídica se caracteriza pela excepcionalidade, não se podendo dela lançar mão em toda e qualquer hipótese, sob pena de seu uso indiscriminado mitigar o instituto da separação entre o patrimônio da sociedade e o de seus sócios. 5. É necessária a prova dos requisitos legais objetivos que autorizam a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam, a fraude ou o abuso de personalidade, caracterizado pela confusão patrimonial. 6. A inércia da parte em indicar bens passíveis de serem penhorados não dá azo à desconsideração pretendida, tampouco a dissolução irregular da sociedade. 7. Analisando-se as peças acostadas aos autos, conclui-se pela ausência de prova do alegado abuso da personalidade jurídica, bem como o desvio da finalidade comercial, a justificar o reconhecimento da desconsideração da personalidade jurídica. 8. Nada há, ainda, que corrobore o sustentado "esvaziamento patrimonial" e "o perigo que a demora no oferecimento da prestação jurisdicional (periculum in mora) representa para a efetividade da jurisdição e a eficaz realização do direito". 9. Assim, mantém-se a decisão proferida. Precedentes. 10. Recurso não provido.” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0024973-53.2019.8.19.0000, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. José Carlos Paes, j. 18.09.2019)

Por fim, cumpre destacar que o Tribunal Fluminense vem deferindo a desconsideração da personalidade jurídica inversa, por meio da qual se retira o véu do devedor principal para atingir bens de sociedades das quais este seja sócio, como se denota do recente julgado abaixo:

“Agravo de Instrumento. Contrato de cessão de créditos. Cumprimento da tutela de urgência. Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Recurso manejado contra decisão que acolheu o pedido de desconsideração inversa da personalidade de SP WORK CONTACT CENTER LTDA., ora agravante, determinando sua inclusão no polo passivo. Recurso que não merece prosperar. Na desconsideração inversa, afasta-se a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação pessoal dos sócios. A desconsideração da personalidade jurídica inversa impõe a necessidade de comprovação da presença dos mesmos requisitos previstos no artigo 50 do cc. Entendimento recente do STJ no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada inclusive nos casos em que não for comprovada a inexistência de bens do devedor, desde que seja confirmado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. A tese da agravante de que apenas prestava serviços para a primeira ré, C & E, não veio acompanhada de prova. Não há nos autos qualquer documento ou relatório, informando à primeira ré quantos e quais créditos foram recuperados pela SP WORK. A falta de transparência nos serviços que a agravante alega prestar para c & e, somada a ausência de impugnação dos créditos que a autora alega terem sido recebidos pela agravante, sugerem que, de fato, há confusão patrimonial entre a SP WORK e a primeira ré. Considerando que a primeira ré e a agravante desenvolvem a mesma atividade empresarial; que durante um período de tempo tiveram os mesmos sócios; e que a agravante, conquanto alegue ser uma mera prestadora de serviços para primeira ré, deixou de produzir qualquer prova neste sentido, impõe-se manter a decisão recorrida. Recurso a que se nega provimento.” (TJ/RJ, Agravo de Instrumento nº 0025477-59.2019.8.19.0000, 24ª Câmara Cível, Rel. Des. Cintia Santarem Cardinali, j. 17.07.2019)

Dessa forma, na hipótese em que se evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, nota-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem autorizando a apreensão de patrimônio penhorável de terceiro supostamente responsável, antes mesmo que se decida a pretensão de desconsideração, sendo certo que o contraditório será garantido àquele terceiro posteriormente.

O caráter excepcional da adoção de medidas constritivas consiste em um tratamento adequado capaz sopesar a efetiva satisfação do débito — e, com isso, minimizar as chances de frustração das medidas executivas —, bem como assegurar a terceiro impactado pela decisão antecipatória da tutela, o exercício do contraditório.

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