Embargos culturais

Alice no País das Maravilhas e o realismo jurídico

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de novembro de 2019, 8h00

Spacca
Quem se importa com vocês? (…) vocês não passam de um baralho de cartas!, é o que diz Alice aos juízes e jurados, no fim de seu depoimento, no julgamento do roubo das tortas, episódio do enigmático livro de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas.

A observação de Alice pode ser tomada como uma crítica ao sistema judiciário inglês do século XIX, a exemplo de tantas outras críticas que há, em textos literários, a propósito dos vários modelos judiciários que há no mundo.

Alice é um pequeno grande livro aberto a todos os tipos de interpretações, de jogos, de truques, de fraudes, de insinuações, e de duvidosas lições, como esta que o leitor tem pela frente. Alice é um livro que explora ao limite esquemas de comunicação, com variáveis de referentes que embaraçam o receptor; é uma crítica à suposta (e eventualmente inexistente) crise da razão. A estória da pequena heroína é rica em imagens, metáforas, símbolos e mitos.

Alice inicia sua aventura curiosa aborrecendo-se com um livro que sua irmã lia, e que de nada serviria. Não havia desenhos ou diálogos. A ação ganhou mais vida com a chegada do coelho branco de olhos cor-de-rosa. Um jogo interminável de palavras surpreende ao leitor, com importâncias de significado que transcendem à dimensão de equivalência das próprias palavras. É o caso, por exemplo, do prazer que Alice encontrou ao falar as palavras longitude e latitude. Não tinha ideia do que eram, mas achava que eram muito importantes para dizer.

Alice aconselhava-se consigo mesma, embora raramente seguisse aos próprios conselhos. A imaginação é desmesurada quando Alice, de tanto chorar, derramando galões de lágrimas, vê surgir ao seu redor uma imensa poça d´água. Sentindo-se confusa, errando na tabuada e na geografia (Paris tornou-se capital de Roma, e Londres capital de Paris), Alice denuncia a fragilidade de nossas lembranças.

O mundo imaginário de Alice é um espaço no qual reina certa falta de sentido. A corrida-caucus é disto um exemplo. Corria-se num círculo, ainda que a forma exata da pista não tivesse importância. Podia até não ser um círculo. Embora fosse um círculo. Não se falava um, dois, três e já; a corrida começava quando cada um dos corredores bem o desejasse e terminava quando qualquer um dos corredores também o quisesse. Por isso, não era fácil saber se a corrida havia se encerrado. E também não havia como se saber (com segurança) quem fora o vencedor da corrida. Assim, todos ganhavam; e todos recebiam prêmios.

No mundo idílico de Alice havia muitos personagens: Diná (uma gata), Ada, Mabel, o Grifo, a Tartaruga Falsa (da qual se faz uma sopa de tartaruga falsa), o Arganaz, a Lebre de Março, o Chapeleiro (para quem não se poderia falar em desperdício de tempo, o tempo é senhor). Havia também a Duquesa, para quem tudo tem uma moral; e tudo é apenas uma questão de se encontrar esta moral. E também havia a Rainha (que a todos queria decapitar, por qualquer motivo, e a qualquer hora).

Irreverente, refratária às instituições, Alice discutia com a Tartaruga Falsa. Esta última, orgulhosa, porque teve a melhor das educações, com aulas todos os dias. Porém, Alice afirmava que tal notícia não era motivo para orgulho, porque também já frequentara uma escola diária. O currículo da escola mencionada pela Tartaruga Falsa era indicativo de que só havia estudado coisas inúteis. A Tartaruga Falsa estudara Mistério (antigo e moderno, que era também estudado com oceanografia). O currículo da escola da Tartaruga Falsa também contava com Desenrolo, Bracejamento e Tontura em Coleios. O horário da escola da Tartaruga Falsa era também pouco ortodoxo: dez horas no primeiro dia, com uma hora a menos em todos os que passassem; Alice concluiu assim que no décimo dia haveria feriado…

Foi o Grifo quem anunciou a Alice que o julgamento iria começar. Mas, que julgamento?, perguntava Alice. Tortas foram roubadas. O Rei e a Rainha de Copas estavam sentados no trono. O réu era o Valete, que Alice via acorrentado. Soldados circunspectos montavam guarda. O pregão era anunciado pelo Coelho Branco, que fazia o papel do escrivão. E o Coelho Branco, com uma trombeta numa das mãos e um rolo de pergaminho na outra, anunciava a sequência de atos, de intensa formalidade. Havia tortas e doces no meio da sala; Alice queria rapidez no julgamento. Pensava em avançar nos doces.

O Rei ordenou que a acusação fosse lida. O Coelho Branco informou que o Valete de Copas teria roubado as tortas que a Rainha de Copas assou num dia de verão. Ouviu-se o Chapeleiro, a primeira testemunha. O Rei ordenou que o Chapeleiro tirasse o chapéu. O Chapeleiro respondeu que usava chapéus porque os tinha para vender. Era seu negócio. Era como ganhava a vida. O Rei anunciou que o chapéu era roubado. Ameaçou o Chapeleiro, dizendo que se não depusesse seria executado imediatamente. E porque o Chapeleiro não se lembrava exatamente dos fatos, o Rei fez uma nova ameaça. O Chapeleiro deveria de se lembrar de tudo; se não o conseguisse, seria imediatamente executado! Nervoso e humilhado, o Chapeleiro disse ao Rei que era um homem pobre.

O Rei determinou que os jurados voltassem para seus lugares. Era chegada a hora do depoimento de Alice. Quando todos retomaram seus postos o Rei perguntou a Alice o que ela sabia sobre o roubo das tortas. Nada, disse ela. E como Alice insistia que não sabia absolutamente de nada, o Rei hesitou em determinar que o escrivão anotasse que a informação seria muito importante ou desimportante. Perturbado, o Rei disse que a Regra nº 42 dispunha que todas as pessoas com mais de 1 km de altura deveriam deixar a Corte. Alice insistiu que não tinha tal altura. O Rei observou que Alice era muito alta. A Rainha então observou que Alice teria quase 2 km de altura. Alice desafiou o Rei. Disse que a Regra não era válida, porque não era um precedente. O Rei a teria inventado naquele exato momento. O Rei insistia com Alice que se tratava da regra mais antiga do reino. Em relação ao que, inteligentemente, Alice disse que então não poderia ser a Regra nº 42; deveria ser a Regra nº 1…

Discutiu-se, em seguida, sobre uma carta, de suposta autoria do Valete, e que deveria ter sido endereçada a alguém. Um animado debate dividiu opiniões. Poderia uma carta ser endereçada a ninguém? O Valete teria escrito a carta. Porém, porque não estava assinada, o Rei intuiu que a falta de assinatura só poderia piorar a situação do acusado. Rei e Rainha então concluíram que a ausência de assinatura na carta comprovava a culpa do Valete. Alice o defendeu. Argumentou que nada provava a culpa do réu. A carta foi então lida em plenário. O Coelho Branco perguntou ao Rei como deveria ler o importante documento. O Rei então determinou que a carta deveria ser lida a partir do começo, e que o escrivão deveria continuar a leitura, até o fim, e então deveria parar. A revelação do conteúdo da carta indicava um texto que não fazia nenhum sentido — nenhum átomo de sentido — segundo Alice. E justamente porque não havia sentido nenhum na carta é que o Rei, mais uma vez, concluiu pela culpa do Valete. Todas as provas, boas ou más, razoáveis ou não, verídicas ou não, eram contra o réu. A condenação era uma decisão que antecedia ao próprio julgamento.

O tribunal era um jogo de cartas de baralho. Frágil; era composto por pedaços de papel. Aleatório; porque nada mais do que um jogo. Desencontrado; era formado por peças com funções múltiplas. Dependente; porque nas mãos dos jogadores. Frívolo; equivalia a um passatempo. Subjugado; era centrado numa hierarquia imaginária. Esta, talvez, a justiça que Alice conheceu: frágil, aleatória, desencontrada, dependente, frívola e subjugada. O realismo jurídico, em toda sua extensão, no sentido de que o direito seria apenas o que definido por quem tivesse o poder de julgar, parece ser, com um pequeno esforço de juízo analógico, o modelo de jurisprudência do País das Maravilhas. Denuncia-nos a justiça como um jogo, a exemplo de passagem de célebre canção que um Nobel norte-americano de literatura compôs em homenagem a Rubin “Hurricane” Carter, um injustiçado boxeador, preso injustamente pelo suposto assassinato de três pessoas, em 1966.

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