Opinião

Suspender prescrição em RE e REsp desrespeita garantia da duração razoável da ação

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23 de novembro de 2019, 6h03

Na longa e já cansativa celeuma em torno da execução da pena sem condenação definitiva, denominada de forma mais suave de “prisão em segunda instância”, cuja inconstitucionalidade mobilizou argumentos alinhados e realinhados em um sem número de matérias, artigos científicos e decisões judiciais, entra em cena, agora, uma sugestão feita pelo ministro Dias Tóffoli, do Supremo Tribunal Federal, predisposta a agradar gregos e troianos. Em outras palavras: se não se pode executar a pena na pendência de recursos extraordinário e especial, que também não corra o prazo prescricional. O leitor apressado pensaria ser esta a solução perfeita: cidadão e persecução saem igualmente contemplados. Demora, mas não se perde o direito de punir. A justiça da solução é meramente aparente se bem examinada.

Uma das razões da existência da prescrição é estabilizar relações sociais sujeitas ao Direito. Dentro de um determinado prazo, os titulares podem exercer seus direitos. Após esse prazo, em prol da segurança jurídica, não poderão mais exercê-lo. Esse efeito de estabilização é particularmente grave no Direito Penal, pois a mera pendência de um processo penal contra uma pessoa implica consequências graves, explícitas (não poder se beneficiar da suspensão condicional em um segundo processo,por exemplo, artigo 89, caput, da Lei 9.099/95) e implícitas (não conseguir emprego, ser demitido, não ser aprovado para direção de instituições financeiras etc.). Essa gravidade impõe que se estabeleça um termo para a estabilização dessa relação. Esse termo é dado pelo prazo prescricional, que vai de três a 20 anos, a depender da pena prevista para o crime. Como as penas, no Brasil, são extremamente severas, clara “manifestação de desprezo pelo valor da vida do brasileiro”, como advertiu Luís Greco[1] diante de outra reforma proposta, os prazos prescricionais para deduzir em juízo e julgar uma pretensão punitiva são, consequentemente, bastante estendidos.

No caso de um furto, por exemplo, o Estado tem oito anos (!) só para investigar. Depois esse prazo vai se renovando, primeiramente com o recebimento da denúncia e depois com a sentença condenatória,em se tratando de procedimento comum. É certo que os prazos prescricionais que correm durante a instrução processual e na fase dos recursos geralmente serão menores, pois recalculados em razão da pena efetivamente aplicada (prescrição retroativa e prescrição intercorrente). O prazo da investigação, contudo, não varia conforme a “pena justa”, mas segue definido em função da máxima reprimenda prevista na lei (artigo 110, parágrafo 1º, do Código Penal).

De qualquer forma, imaginemos um suspeito de prática de furto, que o teria cometido com 21 anos de idade: essa pessoa pode muito bem, em um cálculo bem grosseiro, chegar aos seus 37 anos de idade (21+8+4+4) para, só então, ter a solução definitiva do seu caso (seja para a absolvição, seja para a condenação). Não é preciso explicitar as consequências socialmente devastadoras que a pendência de um processo por furto pode causar na vida de um cidadão, especialmente, se movido contra um inocente. Porque, lembremos, se a pena é aplicada ao condenado, o processo penal se volta indistintamente contra culpados e inocentes!

Mais uma manifestação do desprezo pelo valor da vida do brasileiro alcança as penas dos crimes ditos “do colarinho branco”, como a corrupção e a lavagem de capitais. Os patamares destas, por exemplo, levam a um prazo máximo prescricional de 16 anos. O Estado tem 16 anos para investigar esses crimes e, depois, entre quatro e 16 anos para processar e julgar, mais quatro a 16 anos para apreciar os recursos. Em suma, no mínimo, o Estado tem 20 anos para processar e julgar esses casos. Um cidadão brasileiro pode ter de conviver, então, dos seus 30 aos seus 50 anos, com a pecha de suspeito da prática de corrupção ou lavagem, sujeito a aguardar por todo esses tempo uma resposta definitiva do Estado sobre a sua acusação, a qual, de novo, pode ser a absolvição. Quanto se tratar de crime tributário, a situação é ainda mais grave, pois a combinação da Súmula Vinculante 24 com a postergação do início do prazo prescricional para a conclusão do procedimento administrativo tornou praticamente vitalícia a pendência da ameaça de pena.

A proposta feita pelo presidente do STF, de suspensão do prazo prescricional a partir da interposição dos recursos extraordinário e especial, agrava esse quadro. Porque ela simplesmente abre um hiato, uma exceção no instituto da prescrição, suspendendo o seu curso (e nesse sentido, em verdade, extinguindo o prazo) a partir da interposição dos recursos especial ou extraordinário, por qualquer das partes, e até que estes ou seus respectivos agravos estejam pendentes de julgamento pelos tribunais superiores (conforme ofício publicado pelo Jota[2]). Interpostos esses recursos não haverá mais prazo para que o Estado decida a questão: STF e Superior Tribunal de Justiça poderão demorar o tempo que desejarem para apreciar e encerrar o caso, 10, 20, 30, 40, 50 anos. Uma pessoa, que pode também ser inocente, que pretendesse exercer seu direito a estes recursos ou que, absolvida, enfrentasse um apelo da acusação aos tribunais superiores,segundo essa proposta poderia se aposentar ou viver o resto dos seus dias sob a ameaça de uma pena, sem qualquer prejuízo ao direito do Estado de aplicá-la por não o fazer em prazo razoável.

A proposta conduz, em verdade, à negativa de uma garantia essencial de uma sociedade que se pretende sã: a garantia da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, Constituição), para que as relações jurídicas se estabilizem. Parariam os relógios dos gabinetes e cartórios das cortes superiores. O tempo do Estado correria apenas para os seus agentes “ordinários”: investigadores, delegados, promotores, juízes, desembargadores, mas não para ministros. Se o problema fosse apenas de isonomia funcional, poderia ser superado pelo argumento piramidal: todos os casos, de todos os rincões do Brasil, estão sujeitos a desaguar no Planalto Central e mesmo na Praça dos Três Poderes. Insuperável é o fato de que o relógio do cidadão acusado não para junto, nem se arrefecem para ele as misérias do processo penal, de que fala Carnelutti. O tempo não pode ser devolvido a ninguém. Ora, não é justo que sobre os ombros dos cidadãos recaia com exclusividade o ônus da ineficiência do sistema de justiça criminal. Não é aceitável que os cidadãos paguem individualmente, com suas vidas, por um serviço público mal dimensionado e carente de estrutura adequada, especialmente considerando que já o suportam com o pagamento de elevados tributos.

Em matéria publicada há pouco pela Folha de S.Paulo[3], baseada em dados colhidos de aproximadamente 40 mil recursos, demonstrou-se que a fase de maior duração do processo é a primeira instância. Isso é natural, pois é nessa fase que deverão ser produzidas todas as provas (oitiva de testemunhas, laudos, interrogatório dos acusados etc.). Segundo a matéria, a maioria dos recursos após segunda instância é julgada em até um ano no STJ e no STF. Ademais, tanto o Ministério Público como a defesa têm prazos para recorrer que são inexoráveis, ou seja, não podem ser prorrogados. Esses prazos não superam o patamar de 15 dias (a não ser em caso de acusado representado por defensor público, quando o prazo é em dobro). O Judiciário, por sua vez, não se submete a prazos, exceção feita justamente ao da prescrição, variável de 3 a 20 anos, como dito. O gargalo, então, está no Poder Judiciário, que tem e merece se aparelhar (em estrutura e pessoal) melhor para entregar prestação jurisdicional aos jurisdicionados de qualidade e em tempo razoável. Se somos um país com alta taxa de criminalidade, que, consequentemente, demanda um Poder Judiciário de grandeza proporcional, e se isso é indesejado, ataquem-se logo as causas dos crimes e, assim, em algum momento poderemos ter um Judiciário menor.

A proposta de suspensão dos prazos prescricionais na pendência de recurso especial ou extraordinário nega a essência da prescrição, que no curso do processo é justamente o prazo dado ao Estado para que julgue a pretensão punitiva. Uma proposta assim tão grave e dissonante é uma tentativa, a nosso sentir infeliz, de solucionar um problema sistêmico. O instituto da prescrição, em sua conformação legal, ainda não foi adaptado à garantia do estado de inocência, tal como consagrada no artigo 5º, LVII, da Constituição de 1988. Ele foi concebido no bojo de um regime processual penal que vedava ao condenado o direito de recorrer em liberdade[4], no qual a execução (ainda que provisória) da pena deveria ter início logo após a primeira condenação, ou, no mais tardar, após o julgamento da apelacão[5]. Por isso é que, após a sentença ou acórdão condenatório, a próxima causa interruptiva do prazo prescricional é o início da execução da pena (artigo 117, incisos IV e V, do Código Penal).

Então, quando vem a lume e se reconhece a proibição constitucional de que a execução da pena tenha início antes do trânsito em julgado da condenação, salvo nos casos de prisão cautelar, regra concretizada na atual redação do artigo 283 do Código Penal, o sistema acolhe um feixe largo de obstáculos ao exercício da pretensão do Estado de executar a pena imposta numa condenação criminal — a apelação, o recurso especial, extraordinário e seus respectivos embargos e agravos — sem, contudo, alterar em nada o prazo para iniciar a execução da pena.

Há um descompasso aqui, que coloca em pernicioso conflito o princípio do estado de inocência e o exercício da ampla defesa, de um lado, com o poder do Estado de punir os culpados por crimes, de outro. Um conflito que muitas vezes redunda em prescrição; o que não deveria ser uma finalidade da defesa, nem o efeito do direito de recorrer em liberdade. Este conflito precisa ser superado, sob pena dessas garantias se enfraquecerem ou serem desvirtuadas da sua finalidade constitucional.

Essa superação, a nosso sentir, passa por uma alteração legislativa que preveja a interrupção do prazo prescricional também pelo julgamento dos recursos defensivos.[6] Se o trânsito em julgado é condição do direito de punir, a superação de um obstáculo recursal deve importar em renovação do prazo para o seu exercício[7]. Embora isto venha dilatar ainda mais os prazos prescricionais, pensamos ser um ajuste necessário, a bem da coerência do sistema. Uma injustiça não se resolve com outra. A solução devida, ainda que custosa, evitaria outras mais gravosas, como a sugerida suspensão da prescrição nas instâncias superiores, ou alguma investida legislativa para adiantar a execução da pena na pendência dos recursos especial ou extraordinário.

A renovação do prazo prescricional pelo julgamento dos recursos da defesa impede que o Estado seja penalizado por não exercer um direito antes mesmo dele existir, mas o socorre apenas na medida da sua diligência em promover a condição necessária do direito de punir: o trânsito em julgado da condenação. Essa interrupção também parece um preço justo para o cidadão já condenado, pelo exercício do direito ao recurso. Justamente por isso não deve haver interrupção da prescrição pelo julgamento de um recurso da acusação. O recurso do Estado ou do acusador privado não deve implicar em ônus para o cidadão acusado, mas apenas para o próprio poder punitivo.

Como tampouco é justo que o exercício da ampla defesa onere o réu com prorrogações desproporcionais e desnecessárias do prazo prescricional, o ideal seria que eles fossem reduzidos em relação aos anteriores, uma vez que não há instrução processual nesta sede. De todas essas preocupações, afinal, pode-se extrair como síntese, que o regime da prescrição precisa ser revisto em dois aspectos ou dimensões, complementares ou compensatórias. Primeiramente, nos prazos previstos no artigo 109 do Código Penal (aqueles, que vão de 3 a 20 anos), que devem ser reduzidos levando em conta menos a gravidade do suposto crime, e mais o tempo razoável de duração dos processos. Depois, coerentemente com a redução dos prazos em geral, pela inclusão de novas causas interruptivas da prescrição, ali onde elas injustamente faltam: na fase dos recursos opostos à condenação.

[1] Greco. Quanto vale a vida de um brasileiro? Um apelo à Comissão de Reforma do Código Penal. Boletim IBCCrim, ano 20, n. 236, p. 3 e ss. 2012.

[2] https://www.jota.info/wp-content/uploads/2019/10/52154c59b26f757e82a4ed46d318c103.pdf

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/maioria-dos-recursos-apos-2a-instancia-e-julgada-em-ate-1-ano-no-stj-e-no-supremo.shtml

[4] Conforme a última redação do artigo 594 do Código Penal (dada pela Lei 5.941, de 22.11.1973 e revogada pela lei ), segundo o qual “O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto. (Redação dada pela Lei 5.941, de 22.11.1973 e revogada pela Lei 11.719/2008)

[5] Nos termos do artigo 637 do Código Penal e do revogado artigo 27, parágrafo 2º, da Lei 8.038/90, que negam efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário.

[6] Há quem defenda, com consistentes argumentos, a interrupção da prescrição pelo acórdão confirmatório da condenação, já de lege lata. Neste sentido, PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de direito penal: Parte Geral. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 626. Esta tese tem sido acolhida pela 1ª Turma do STF, por maioria, em diversos recentes acórdãos, como no RE 1.226.719 AgR, ARE 1.219.087 AgR. A doutrina e a jurisprudência dominante, contudo, seguem interpretando restritivamente a causa de interrupção prevista no artigo 117, IV, do Código Penal, como sendo apenas a primeira condenação, por um juiz ou tribunal, e não sua confirmação. Por todos, MARTINELLI, João Paulo Orsini; DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal: Parte Geral. 2 ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 1004. Esta é a orientação da 2ª Turma do STF (conforme RE 1.209.729 AgR; RE 1.181.372 AgR e RE 1.202.790 AgR), consolidada na jurisprudência das duas turmas especializadas do STJ (conforme HC 525.183 e AgRg no REsp 1.831.662). Estamos de acordo com a posição dominante, “de lege lata”, pois quando a lei atribuiu à confirmação de uma decisão judicial, no caso a confirmação da sentença de pronúncia, efeito interruptivo da prescrição, fê-lo expressamente (artigo 117, III, do Código Penal).

[7] Proposta defendida por um dos autores em GRECO, Luis et al. Parte Geral do Código Penal: uma proposta alternativa para debate. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 114-115

Autores

  • é advogada, professora da FGV Direito SP, doutora em Direito Penal pela USP e pós-doutoranda nas Faculdades de Direito da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e de Augsburg, com financiamento da Fundação Alexander von Humboldt e Capes.

  • é professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

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