A afronta à Constituição e a volúpia de prender
23 de novembro de 2019, 10h39
“Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça.”
Montesquieu, em Do espírito das leis.
A volúpia, senão sanha, de aprisionamento que empolga certas autoridades, tradicional e abusivamente lançada no lombo de centenas de milhares de pessoas do povo, agora deu para estender-se a ex-presidentes da República cujo crime é figurar de depoimentos de terceiros (delatores premiados) em inconclusos inquéritos policiais ou outros feitos. Um foi detido recentemente por breve tempo e um segundo agora teve sua detenção pretendida pela Polícia Federal com a impenitente e jamais demonstrada alegação de que poderia obstruir investigações.
O aluvião de prisões cautelares avoluma-se hoje naquilo que Rui Barbosa chamou em 1920 de “praga pública”. O Brasil contava em agosto 812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça. Nada menos que 337 mil desses reclusos são os chamados provisórios, é dizer, aguardam um julgamento em que, afinal, será decidido se ao rigor da lei merecem ou não ficar na cadeia. Pela lei, são presumidamente inocentes. Julgados, muitos serão absolvidos e libertados, ou seja, foram presos indevidamente, entre eles uma grande parcela de pretos e pobres, condições que em geral se conjugam na legião de despossuídos humilhados e ofendidos, vítimas de uma certa polícia que, quando não prende, aleija ou mata – considerando que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, 5.159 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais.
Apesar de escandalosos, os oceânicos números parecem não satisfazer à vontade incontrolável de aprisionamento que tem animado nossas autoridades. Os holofotes não chegam a eles. Maior repercussão tem essa cruzada quando lança sua rede de arrasto em figuras proeminentes da República. Foi por essa modalidade de extração midiática que o ex-presidente Michel Temer acabou detido em plena rua, em maio, em espetáculo cercado de câmeras, com base em delação premiada – aquela modalidade de investigação penal que se sustenta em um castelo de palavras a que falta o alicerce da prova e da verdade.
Talvez animados pelo sucesso dessa ação espetacular, por ordem de um desses juízes “celebridades”, embora instâncias superiores o tenham libertado imediatamente por reconhecer a ilegalidade do ato, nossos insaciáveis carcereiros acabam de dirigir sua sanha de aprisionamento, à ex-presidente Dilma Rousseff. Ao investigar supostos fatos ilícitos da campanha eleitoral de 2014, e novamente com base na verbiagem das delações premiadas, solicitaram ao Supremo Tribunal Federal a decretação da sua prisão processual, novamente recorrendo ao artificioso argumento de que ela, em liberdade, hipoteticamente poderia obstruir as investigações – já documentadas em um volume de 218 páginas. O sofisma processual é tamanho que, decorridos quase 2 mil dias dos fatos, que utilidade social ou mesmo investigativa se teria em a Polícia Federal manter a ex-presidente presa por exíguos cinco dias? A resposta é simples: a prisão humilha, desprestigia, fragiliza a dignidade do ser humano – e quanto mais famoso ele o é, mais empoderados se sentem os algozes. O pormenor esdrúxulo do episódio em si já de todo extravagante é que a ex-presidente sequer fora intimada a prestar esclarecimentos sobre os fatos em apuração, em suma, acerca das suspeitas que os policiais consideram tão comprometedoras a ponto de quererem levá-la odiosa e prematuramente ao cárcere.
Que sentido haveria em se aprisionar uma pessoa por fatos de cinco anos pretéritos, ainda em investigação, se é precisamente esta que deve determinar a existência material de crime e apontar seus autores, que serão devidamente processados e, se culpados e condenados, enfim punidos? O indisfarçável e único propósito dessa prisão é, sem dúvida, a volúpia de aprisionamento, que acomete determinados agentes da autoridade do Estado.
Desta vez, porém, falou mais alto o Direito e a arbitrariedade foi barrada, contando com o raro concurso do Ministério Público, também afeito às penas antecipadas, mas com sensibilidade para detectar e repelir a excrescência. Decisiva, no entanto, foi a ausência na cadeia de arbitrariedades do elemento nuclear desses atentados aos direitos fundamentais vigentes no Estado Democrático de Direito, ou seja, o juiz-justiceiro, que manda prender por dá cá essa palha. Relator da matéria no STF, o ministro Edson Fachin negou o pedido de prisão, com a lúcida observação de que “a pretensão de restrição da liberdade de locomoção dos investigados não se encontra provida da indicação de concretas condutas atentatórias às apurações que evidenciem a necessidade da medida extrema.” Ademais, com a diligência de julgador que deve zelar pela legalidade do processo, determinou que a ex-presidente fosse, apenas e enfim, intimada a depor.
Oxalá o sensato decisório deite raízes e iniba de vez a fúria de encarceramento indevido – espécime maligno da imposição legal da tirania de que falou o grande Montesquieu.
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