Consultor Jurídico

Um novo Ato Institucional nº 5, absolutamente impossível

21 de novembro de 2019, 8h00

Por Adilson Abreu Dallari

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Muito se tem especulado, nos últimos tempos, sobre uma hipotética reedição do AI-5, havendo até quem pretenda responsabilizar as pessoas que simplesmente mencionaram esse documento, como se a simples menção ao AI-5 configurasse um atentado ao estado democrático de direito. Tudo não passa de mera especulação política. Falar sobre a volta do AI-5 é o mesmo que falar sobre a volta da ditadura de Getúlio Vargas. Getúlio está morto e os protagonistas do AI-5 também, mas isso não é o principal. Tanto num caso, como no outro, o acontecimento se deu após uma evolução de fatos, criando um ambiente político institucional para tal ocorrência. No Brasil de hoje, na era das comunicações, das redes sociais e principalmente diante das garantias constitucionais à preservação do estado democrático de direito, não há a mais remota possibilidade de um novo AI-5.

O que se pretende examinar neste texto é a evolução dos fatos que levaram ao AI-5 e a indicação dos instrumentos constitucionalmente estabelecidos para evitar qualquer agressão à ordem política institucional no Brasil de hoje. Convém examinar os Atos Institucionais precedentes ao AI-5,  apenas no tocante ao que interessa ao presente artigo (aspectos jurídicos e institucionais), a começar pelo significativo detalhe de que o primeiro Ato Institucional não tinha número.

O Ato Institucional editado em 09/04/64, que é o único assinado pelos Comandantes Militares, modificava a Constituição de 1946 e mantinha o Congresso Nacional, o qual deveria eleger, de imediato (em dois dias), o Presidente e o Vice-Presidente, cujos mandatos terminariam em 31/01/66,  já determinando, também, a realização de eleições em 03/10/65 para os mesmos cargos, cujos eleitos deveriam tomar posse em 31/01/ 66. Fica patente, em sua redação, o caráter único e temporário desse Ato Institucional, que, posteriormente foi designado como Ato Institucional nº 1. Porém, foram suspensas as eleições diretas marcadas para 03/10/65 e o mandato do Presidente Castello Branco foi prorrogado, pelo Congresso Nacional, até 15/03/67, quando foi substituído pelo Presidente Costa e Silva, eleito pelo Congresso Nacional em 03/10/66.

O Ato Institucional nº 2, de 27/10/65, assinado pelo Presidente da República (Castello Branco) e seus Ministros, em sua justificativa dizia que “Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará”. “A revolução está viva e não retrocede”. Logo adiante, aponta a razão de ser de sua edição: “Agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária”. Já ficava assim aberta a possibilidade de edição de novos Atos Institucionais. Esse mesmo Ato instituía o bipartidarismo e tornava indiretas as eleições para Presidente e Vice-Presidente da República.

O Ato Institucional nº 3, de 05/02/66, também assinado pelo Presidente Castello Branco e seus ministros, tornava indiretas as eleições para Governador do Estado (sendo automática a eleição do vice com ele inscrito), determinava que o Prefeito da Capital de cada Estado fosse  nomeado pelo Governador, ficando mantidas as eleições normais para Prefeitos e Vereadores, restringindo-se a disputas entre os dois partidos existentes.

Nessa mesma linha de continuidade e de intervenção nas instituições no mínimo possível, o Ato Institucional nº 4, de 12/12/66, ainda também assinado pelo Presidente Castello Branco, convocava o Congresso Nacional para discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição, apresentado pelo Presidente da República, e viria a ser a Constituição de 1967.

Esse clima de moderação mudou completamente com a edição do Ato Institucional nº 5, de 13/12/68, assinado pelo Presidente Costa e Silva, cuja ementa se transcreve: “Suspende a garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispõe sobre os poderes do Presidente da República de decretar: estado de sítio, nos casos previstos na Constituição Federal de 1967; intervenção federal, sem os limites constitucionais; suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado; cassação de mandatos eletivos; recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes; e dá outras providências”.

A justificativa para essa sensível mudança de rumo está nos Considerando desse Ato Institucional, bastando, para os fins deste estudo, que se transcrevam dois deles: “CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária”. O que se procurou, com os Atos anteriores era enfrentar a oposição política; este novo ato tinha, claramente, o propósito de vencer a guerra revolucionária. O uso da violência se justificava pelo combate à violência.

A história mostra (especialmente agora que se tem pleno acesso à imprensa da época) que a intervenção militar contava com o apoio da imensa maioria do povo brasileiro, que praticamente solicitou aos militares essa medida, em gigantescas manifestações populares. Não obstante, desde 1964, quando se implantou, a ditadura militar vinha sendo combatida pelas diversas correntes políticas, mas com diferentes propósitos e objetivos: “Instalada a ditadura, o eixo da política de esquerda estabeleceu-se em torno dela, a ser “derrubada” ou “derrotada”: havia grupos e movimentos que pretendiam derrubá-la pela luta armada e os que procuravam outros meios para vencê-la politicamente. Todos propunham a necessidade de opor-se à ditadura, independentemente dos projetos políticos diferenciados que davam base a cada grupo político ou movimento, desde os projetos revolucionários nacionalistas, como o comandado por Leonel Brizola, passando pela proposta do PCB de revolução pacífica, nacional e democrática, até os que propunham uma revolução socialista”. MARCELO RIDENTI, “As oposições à ditadura: resistência e integração”, in “A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964”, Organizadores: DANIEL AARÃO REIS, MARCELO RIDENTI e RODRIGO PATTO SÁ MOTTA, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2014, p. 33.

No início, predominava a oposição política, com manifestações pacíficas, protestos de toda ordem, nos meios estudantis, sindicais artísticos etc. Nessa etapa foram instaurados muitos inquéritos policiais militares, os IPMs, houve muitas prisões e muitos julgamentos pela Justiça Militar. Foram mais de 3.000 processos nos quais se destacaram advogados que, com muita coragem e determinação, defendiam os acusados. Porém, logo surgiram os movimentos revolucionários, entre os quais a ANL (de Carlos Marighella), a VPR, o COLINA, a Var-Palmares, entre outros, que optaram pela guerrilha urbana e rural, a chamada luta armada, com explosões, sequestros, roubos de bancos e assassinatos. A repressão governamental foi-se ampliando paralelamente. Em 1967 havia apenas um segmento da Polícia do Exercito a cuidar dessas situações, mas logo em 1969 foi criada a Operação Bandeirante-OBAN, bem mais violenta, e logo depois os terríveis DOI-CODI, que passaram a prender, torturar, matar e “desaparecer” os guerrilheiros e seus apoiadores. Após o aniquilamento dos guerrilheiros, foi revigorada e amplamente fortificada a oposição política.

Um marco realmente histórico desse período foi a leitura da “Carta aos Brasileiros”, lida pelo Prof. Goffredo da Silva Telles na noite de 08/11/77,  no pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, diante de uma multidão composta de estudantes, jornalistas, autoridades e pessoas comuns. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB participou intensamente da luta pela restauração institucional, promovendo reuniões no Brasil inteiro, nas quais se pregava abertamente o fim da ditadura.

Os historiadores resumem muito bem esse processo evolutivo: “Do ponto de vista da cronologia da ditadura, os 21 anos costumam ser divididos em três fases distintas. O primeiro período vai do golpe de 1964 até a decretação do AI-5, em dezembro de 1968, momento em que houve denúncias de prisões arbitrárias, violências e até torturas e assassinatos. O segundo vai do AI-5 até 1974, época em que a tortura e o assassinato político tornaram-se política de Estado, de maneira metódica, coordenada e generalizada. O terceiro segue de 1975 em diante, quando, em fase do desgaste do regime militar e das pressões crescentes da sociedade civil, o general Ernesto Geisel (1974-1979) iniciou a “distensão”, seguida pela “abertura” do general João Batista Figueiredo (1979-1985)”. MARIANA JOFFILY, “O Aparato Repressivo: da arquitetura ao desmantelamento”, in “A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964”, Organizadores: DANIEL AARÃO REIS, MARCELO RIDENTI e RODRIGO PATTO SÁ MOTTA, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2014, p. 164.

Mas isso tudo é o passado. Com base na dura experiência vivida nesses tempos difíceis, o Congresso Constituinte (integrado por muitas vítimas da repressão) cuidou de estabelecer uma série de instrumentos jurídicos e políticos destinados a evitar a repetição daquela fase trágica da história Brasileira. É o que se passa a demonstrar.

O texto constitucional em vigor, em seu artigo 34, cuida da possibilidade de intervenção federal, cujas hipóteses estão elencadas em seus incisos, mas, para os fins deste estudo, merece destaque o inciso III, que autoriza a intervenção “para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”. Na prática, em alguns casos esporádicos (rebeliões em presídios, fronteira com a Venezuela, por exemplo), atendendo solicitação dos governos estaduais, o governo federal apenas envia um contingente da Força Nacional de Segurança Pública, sem que se decrete a intervenção federal. Nem se cogita de intervenção federal.

Ao dispor sobre as atribuições do Presidente da República a CF, no Artigo 84, inciso X contempla a possibilidade de “decretar e executar a intervenção federal”, mas essa medida extrema, disciplinada pelos Artigos 34 a 36, a começar pela nomeação de um interventor federal, não é mais a única forma de resolver graves problemas governamentais. Sabiamente, nesse mesmo Artigo 84, inciso IX, está consignada a competência do Presidente da República para “decretar o estado de defesa e o estado de sítio”, que são formas de interferência bem mais brandas que a intervenção federal, conforme se verá mais adiante.

No tocante à atuação das Forças Armadas a CF, em seu Artigo 142, além da função primordial de defesa da Pátria, prevê a possibilidade de sua atuação como polícia de segurança pública, em operações de Garantia da Lei e da Ordem-GLO, em casos de grandes aglomerações em eventos especiais (visita do Papa Francisco, em 2012, e Copa do Mundo de Futebol, em 2014). Durante o Governo Michel Temer, as Forças Armadas foram convocadas para ajudar a conter a greve dos caminhoneiros, evitando um problema nacional de enorme gravidade. Em nenhum desses casos houve qualquer problema institucional; ao contrário, apenas garantia de regular atuação de todos os poderes nacionais, em todos os níveis.

Mas problemas institucionais, graves, podem acontecer. Diante dessa possibilidade, a CF criou instrumentos hábeis para resolver tais problemas, sem quebra da ordem constitucional, mas, sim para preservá-la. O estado de defesa e o estado de sítio são instrumentos graduais, dependentes de autorização e devidamente controlados. Podem ser eficientes na solução dos problemas que justificaram sua adoção, sem que as Forças Armadas tenham que, para isso, tomar o poder, como aconteceu em 1964. Vamos examinar cada um deles.

Estado de defesa: “Artigo 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. Como se nota, o estado de defesa depende de autorização de dois Conselhos, não abrange todo o território nacional e, além de situações de instabilidade institucional, abrange também calamidades públicas de grande intensidade, insuscetíveis de serem controladas apenas pelos governos locais.

Estado de sítio: “Artigo 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta”.  O Estado de sítio tem abrangência nacional, está condicionado à ineficácia do estado de defesa previamente decretado, e depende da aprovação da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional.  Essa é a medida extrema autorizada pela CF exatamente para evitar a necessidade de intervenção federal ou, na pior das hipóteses uma desordem institucional.

Resta apenas consignar que, nos termos do artigo 140: “A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio”. Note-se que ambas as medidas não outorgam às autoridades federais poderes ilimitados ou desproporcionais às necessidades do caso concreto, pois está expressamente previsto o acompanhamento e a fiscalização pelo Congresso Nacional.

Pode-se afirmar, com segurança, que com essas medidas jamais se chegará ao estado de coisas que teriam suscitado o clamor popular nacional e a necessidade de intervenção das Forças Armadas. Some-se a isso o próprio desenvolvimento tecnológico, especialmente na área das comunicações, que permite um controle da atuação governamental diretamente pelo povo, de onde emana todo poder no Estado Democrático de Direito.