Opinião

Artigo 19 do Marco Civil da Internet gera impunidade e viola a Constituição

Autor

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

21 de novembro de 2019, 7h03

No próximo dia 4 de dezembro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal apreciará pedido de declaração da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, através do tema de repercussão geral 987, vinculado ao Recurso Extraordinário 1.037.396, relatado pelo ministro Dias Toffoli.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet, ao criar uma imunidade para o provedor de aplicações de Internet pelos conteúdos publicados por terceiros (safe harbour), traz mais problemas do que soluções.

Com o objetivo de promover a liberdade de expressão e evitar a censura, o mencionado dispositivo legal estabelece que o provedor de aplicações internet somente poderá ser responsabilizado pelos danos causados por publicações de terceiros que usaram sua plataforma após receber notificação judicial e quedar-se inerte a esse respeito.

Nas legislações estrangeiras, notadamente europeia e norte-americana, a notificação (notice and take down) é exclusivamente extrajudicial. Basta à vítima comprovar que deu conhecimento ao provedor internet, por qualquer meio, do fato ensejador da responsabilidade civil, permitindo-lhe agir de modo a coibir tal prática.

O objetivo da norma parece ser paralisar ou ao menos enfraquecer as demandas envolvendo conteúdos ofensivos na internet, já submetidas ao Poder Judiciário, que ficaria agora de mãos atadas para responsabilizar o provedor de uma rede social, caso ausente o requisito da prévia notificação também judicial.

Criar uma nova condição de procedibilidade imposta a empresas conhecidas nacionalmente pelo descumprimento de ordens judiciais sob o sofisma de que o Poder Judiciário seria o único competente para promover tais notificações significa inviabilizar, na prática, a reparação dos danos à pessoa humana, reduzindo a efetividade do princípio constitucional da dignidade, eleito como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, Constituição da República).

A mão que afaga é a mesma que apedreja, já disse o poeta. O aparente elogio pode ser a pior ofensa ou diminuição.

Termina por enfraquecer o Judiciário a visão daqueles que buscam aparentemente enaltecê-lo, enquanto o melhor fórum para se debater a liberdade de expressão, ao passo que caberia apenas aos próprios provedores internet, e mais ninguém, decidir onde, quando e se exercerão seu poder de polícia autorizado pelas condições gerais de contratação.

O juízo de valor sobre a legitimidade ou não da conduta já incumbe ao Judiciário, em homenagem ao princípio da separação dos poderes. O que promove o artigo 19 do Marco Civil, sem precedentes no Direito brasileiro, é a necessidade de uma dupla apreciação pelo Judiciário, que deverá previamente notificar o provedor internet.

Toda a responsabilidade, portanto, termina transferida aos usuários, confrontados com bilionárias organizações empresariais.

Embora o Poder Judiciário seja certamente o mais preparado e constitucionalmente vocacionado a conhecer tais conflitos de interesses, a exigência da ordem judicial como condição de procedibilidade da responsabilidade civil por conteúdos postados por terceiros esvazia ainda o livre acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, da Constituição da República)[1].

A única alternativa seria a criação de um juizado especial ou órgão semelhante apenas direcionado a notificações judiciais de tal natureza, o que implicaria despesas públicas e sobrecarregaria ainda mais a estrutura do Judiciário. Seria a arquitetura de um sistema de responsabilidade civil pronto para não desempenhar o seu papel?

Enquanto a ordem judicial não vem, se propagam, com a velocidade da Internet, ofensas decorrentes das fake news e do discurso do ódio, por motivos políticos, religiosos, sociais, étnicos ou de orientação sexual, ou contra crianças e adolescentes, entre outros, sob o argumento de que detê-las seria promover a censura.

A inconstitucionalidade por excesso de Poder Legislativo se revela pela violação ao princípio da proporcionalidade ou contraditoriedade, incongruência e irrazoabilidade entre meios e fins, aponta a doutrina constitucionalista. [2]

As obrigações de fazer e não fazer, cuja implementação independe de dolo ou culpa, pelo artigo 497, parágrafo único do Código de Processo Civil, merecem reforço em sua efetividade, considerando a importante função desempenhada pela precaução na responsabilidade civil.

Não se pode negar que o provedor internet é um integrante fundamental da comunicação ali realizada, e atribuir força de excludente da responsabilidade civil ao fato de terceiro, como fez o artigo 19 do Marco Civil da Internet, mais do que impedir que determinados danos caiam em determinado local, significa assegurar impunidade, face à assimetria do meio, dominado por robôs e algoritmos.

Embora fortemente inspirado na prevalência dada à liberdade de expressão pela 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, o Marco Civil entra em choque até mesmo com o atual contorno da internet nos EUA, onde, após o episódio Cambridge Analytica, se discute sobre uma nova legislação de proteção de dados pessoais.

As únicas hipóteses de danos à dignidade humana que ficariam fora da exigência de ordem judicial seriam aquelas de divulgação, sem a autorização de seus participantes, de vídeos de nudez ou atos sexuais de caráter privado, caso em que o provedor de aplicações ou de conteúdo seria responsabilizado pelo simples descumprimento de ordem administrativa, conforme o artigo 21 do Marco Civil.

Isso significa, portanto, ao menos dois pesos e duas medidas. Fora a inovação trazida pela Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), que, com indiscutível avanço, enuncia como regra, em seus artigos 42 e seguintes, a responsabilidade objetiva dos controladores e operadores que, em razão do tratamento de dados pessoais, causarem a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação àquela legislação.

Se o provedor de aplicações internet atua ao mesmo tempo como dirigente de um banco de dados, o que ocorrerá em não poucas hipóteses, responderá sempre por fato próprio, independentemente de requisitos como fato de terceiro e ordem judicial.

Cabe escolher entre os valores fundamentais do Estado democrático de Direito: proteger um determinado setor da economia ou a sociedade como um todo, a partir das manifestações da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação? Resta a esperança, a sorte está lançada.

[1] Artigo 5º, XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p.1127-1128.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça, titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte do Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorando em Direito de Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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