Opinião

A nova interpretação do termo inicial da prescrição da pretensão executória

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20 de novembro de 2019, 6h31

A prescrição da pretensão executória ocorre após o trânsito em julgado da sentença condenatória, impedindo a execução da pena e a consequente realização do título executivo estatal já concretizado. Operando sobre a pena, extinguindo a punibilidade quanto a esta, não impede que a sentença condenatória transitada em julgado produza os seus demais efeitos penais e extrapenais.

O termo a quo da prescrição da pretensão executória estatal é determinado pelo artigo 112, I, primeira parte, do Código Penal, nos seguintes termos: “Do dia em que transita em julgado a sentença condenatória para acusação” Apesar da constitucional previsão da presunção de inocência e das determinações da Lei de Execução Penal da necessidade do trânsito em julgado para a execução da pena, o legislador de 1984 fixou o início do prazo prescricional da pretensão executória não no final do processo, mas no momento em que a sentença não pode mais ser modificada em desfavor do réu (término in albis do prazo recursal da acusação).

Ocorre que o entendimento anterior, que era dominante à época de entrada em vigor da parte geral do Código Penal, era de que a interposição de recurso especial e extraordinário não impedia a imediata expedição do mandado de prisão (artigo 637 do Código de Processo Penal). Neste sentido, portanto, havia lógica na previsão de que a prescrição poderia iniciar-se antes do trânsito em julgado.

Entretanto, a jurisprudência recente do STF modificou esse entendimento e, resolvendo a questão em Plenário, estabeleceu que a execução da pena somente pode se iniciar após o trânsito em julgado da sentença condenatória, seja em relação às penas privativas de liberdade, seja em relação às penas restritivas de direito ou de multa, possuindo natureza cautelar qualquer restrição de liberdade antes do término do processo, que deve ser devidamente fundamentada, ante a presunção de não-culpabilidade (artigo 5º, LVII, da Constituição).

A priori, asseverava-se que, após a confirmação da condenação em segunda instância, os recursos que ainda restavam pendentes não eram dotados de efeito suspensivo, o que viabilizava a execução provisória da pena confirmada pelo colegiado de segunda instância.

Com isso, por se tratar de decisão com efeito erga omnes, demanda-se a imediata suspensão da execução provisórias em curso. Não obstante, também resta necessária a suspensão da prescrição da pretensão executória, haja vista que esta pressupõe a inércia do titular do direito de punir, situação que não se mais se verifica, enquanto não encerrado o processo.

Até o julgamento das referidas ADCs 43, 44 e 54, era autorizada a execução provisória da pena. Portanto, se agora o titular do direito de punir se encontra impossibilitado de exercê-lo, não resta configurada qualquer tipo de desídia ou inércia, inerentes ao instituto da prescrição.

Portanto, descabe admitir o início da contagem do prazo da prescrição executória enquanto não puder ser exercida a pretensão estatal, ou seja, o simples trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação não pode ter o automático efeito de iniciar o curso da prescrição executória, pois, até o trânsito em julgado para ambas as partes inúmeros recursos podem ser manejados pela defesa no intuito de protelar a decisão final, não se tratando de situação de inércia estatal.

A partir de uma interpretação conforme a constituição do artigo 112, I, do Código Penal, o termo inicial da pretensão executória deve se dá com o trânsito em julgado da condenação para ambas as partes. Este entendimento foi adotado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 107.710-AgR, em 9 de junho de 2015, e do HC 115.269, da relatoria da ministra Rosa Weber, sessão de 10 de setembro de 2013, assim ementado:

“[…] 2. Com o julgamento do HC 84.078/MG pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal, Rel. Ministro Eros Grau, DJe 26.2.2010, foi reputada inconstitucional a execução provisória da pena e condicionado o início da fase executiva ao trânsito em julgado da condenação criminal. 3. Diante da amplitude conferida pela Suprema Corte ao princípio da presunção de inocência, ou da não culpabilidade, consagrado na Constituição Federal de 1988, que inviabiliza a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não enseja a concessão da ordem de ofício decisão fundada em releitura do artigo 112, inciso I, do Código Penal, com exegese, consentânea com aquele entendimento, no sentido de que o prazo prescricional da pretensão executória somente passa a fluir após o encerramento definitivo da fase cognitiva do processo penal. 4. Habeas corpus extinto sem resolução do mérito.”

Nesse ponto, importa esclarecer que, não obstante o dispositivo legal, previsto no artigo 112, I, do Código Penal, faça menção ao início da prescrição no “dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação”, trata-se de verdadeira atecnia legislativa. Isto porque o conceito de trânsito em julgado deriva do conceito de coisa julgada, cuja definição possui sede legal, prevista na Lei de Introdução das Normas de Direito Brasileiro.

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

(…)

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.

Não se deve confundir o conceito de trânsito em julgado (e, consequentemente, o de coisa julgada), com o de preclusão da faculdade processual de recurso conferida ao parquet. Isto porque, enquanto não houver o trânsito em julgado, ainda é possível ao Ministério Público recorrer, mesmo junto às instâncias superiores, como na hipótese de reforma da sentença condenatória em benefício do réu. Por esse motivo, o trânsito em julgado para a acusação se confunde com o da própria ação, e não com a preclusão recursal de apelar da sentença condenatória.

Nesta linha de raciocínio, está pendente de julgamento no Plenário do STF o ARE 848.107, com repercussão geral admitida (tema 788), que discute o “termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado: a partir do trânsito em julgado para a acusação ou a partir do trânsito em julgado para todas as partes”.

Ocorre que, com fundamento no princípio da presunção de inocência, que milita em favor do réu, até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória só pode haver pretensão punitiva, momento a partir do qual se estabelece o termo a quo da contagem do prazo prescricional de sua pretensão executória.

Assim, em que pesem os precedentes anteriores ao julgamento das ADCs 43, 44 e 54, se o Supremo Tribunal Federal não mais permite a execução após decisão do colegiado, evidentemente o prazo de prescrição não pode começar a correr, sob pena de contradição lógica do sistema constitucional.

Esse foi o posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso em seu voto no RE 696.533, ao não admitir o decurso do prazo prescricional da pretensão executória durante o período em que o STF não permitia a execução provisória da pena, in verbis:

RECURSO ESPECIAL. PRERROGATIVA DE FORO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. TERMO INICIAL. DEMAIS TESES RECURSAIS REJEITADAS. IMEDIATA EXECUÇÃO DA PENA. I. TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA 1. A prescrição da pretensão executória pressupõe a inércia do titular do direito de punir. Se o seu titular se encontrava impossibilitado de exercê-lo em razão do entendimento anterior do Supremo Tribunal Federal que vedava a execução provisória da pena, não há falar-se em inércia do titular da pretensão executória. 2. O entendimento defensivo de que a prescrição da pretensão executória se inicia com o trânsito em julgado para a acusação viola o direito fundamental a inafastabilidade da jurisdição, que pressupõe a existência de uma tutela jurisdicional efetiva, ou melhor, uma justica efetiva. 3. A verificação, em concreto, de manobras procrastinatórias, como sucessiva oposição de embargos de declaração e a renúncia do recorrente ao cargo de prefeito que ocupava, apenas reforça a ideia de que é absolutamente desarrazoada a tese de que o início da contagem do prazo prescricional deve se dar a partir do trânsito em julgado para a acusação. Em verdade, tal entendimento apenas fomenta a interposição de recursos com fim meramente procrastinatório, frustrando a efetividade da jurisdição penal. 4. Desse modo, se não houve ainda o trânsito em julgado para ambas as partes, não ha falar-se em prescrição da pretensão executória…”

Observe-se que os precedentes do STF em outros temas apontam para a mesma solução.

No exame do HC 81.611, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, em que foi estabelecido que os crimes contra a ordem tribuária somente podem ser objeto de persecução penal após o lançamento definitivo pela autoridade fazendária (hoje consolidado na Súmula vinculante 24), o Supremo Tribunal Federal determinou que a prescrição não poderia correr enquanto este evento não se completasse.

EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (Lei 8137/90, artigo 1º) : lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.

(…)

3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa de lançamento definitivo.

O raciocínio da corte, embora aplicado ao processo de conhecimento (e não o de execução, como ora apresentamos) é exatamente igual. Veja-se o trecho destacado do voto do relator:

“ (…) De qualquer modo, aos que a tudo antepõem o temor da prescrição, é preciso observar que ele é menor do que, à primeira vista, pode parecer. Estou em que enquanto dure o processo administrativo fiscal por iniciativa do contribuinte, aceito o decorrente empecilho à instauração do processo penal, a prescrição terá suspenso o seu curso.”

O posicionamento do STF em relação ao antigo sistema de imunidade parlamentar (anterior à EC 35/01 e após a EC 22/82) exigiu da corte a mesma interpretação sistemática:

(…) resolvendo questão de ordem e interpretando o parágrafo 2º do artigo 53 da Constituição Federal, em considerar, como termo inicial da suspensão do curso do prazo prescricional, a data do despacho do relator solicitando autorização à Câmara dos Deputados para o processo-crime contra o parlamentar, e, por unanimidade de votos, em considerar apenas alterado o fundamento da suspensão, se a licença for indeferida pela Câmara. (INQ 457-QO, plenário, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 10 de fevereiro de 1993)

E, além de reconhecer que a suspensão do prazo prescricional se dava desde a solicitação da licença ao parlamento, o STF reafirmou sua exegese anterior à carta de 1988, como se vê no histórico voto do ministro Paulo Brossard:

Muito antes de a Constituição haver enunciado a norma segundo a qual "o indeferimento do pedido ou a ausência da deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato", parágrafo 2º do artigo 53, a doutrina já fixara esse entendimento, que poderia ser assim expresso: não ocorre nem pode correr a prescrição se existe impedimento legal que obste o início ou a continuação do processo penal contra parlamentar, custodiado pela prerrogativa da imunidade.

E concluiu citando Duguit (o maior dos constitucionalistas franceses, segundo Rui Barbosa): “O sábio professor de Bordéus mostra que razões de equidade e de lógica impõem a solução segundo a qual, se há um obstáculo legal do processo, há de ocorrer a suspensão da prescrição, pois seria iníquo que a prescrição atingisse a ação de quem está impedido de agir.”

Mais recentemente, o STF voltou a empregar a mesma técnica: quando aplicada a suspensão dos processos para os casos de reconhecimento de repercussão geral em recursos extraordinários de matéria penal, seu plenário determinou a suspensão do curso do prazo prescricional, mesmo sem previsão expressa legal, por questão de harmonia constitucional.

“1. A repercussão geral que implica o sobrestamento de ações penais, quando determinado este pelo relator com fundamento no artigo 1.035, parágrafo 5º, do CPC, susta o curso da prescrição da pretensão punitiva dos crimes objeto dos processos suspensos, o que perdura até o julgamento definitivo do recurso extraordinário paradigma pelo Supremo Tribunal Federal.

(…)

6. O sobrestamento de processo criminal, sem previsão legal de suspensão do prazo prescricional, impede o exercício da pretensão punitiva pelo Ministério Público e gera desequilíbrio entre as partes, ferindo prerrogativa institucional do parquet e o postulado da paridade de armas, violando os princípios do contraditório e do due process of law.

(…)

11. Questão de ordem acolhida ante a necessidade de manutenção da harmonia e sistematicidade do ordenamento jurídico penal. (STF, Plenário, RE 966.177 RG-QO/RS, rel. ministro Luiz Fux, julgado em 7 de junho de 2017)

Diante de um quadro jurídico penal em que coexistem as garantias da sociedade e do réu, a solução da Suprema Corte, ao impedir a execução das penas antes do trânsito em julgado, obsta a fluência de qualquer prazo prescricional relacionado com a pretensão executória estatal, antes deste momento, devendo ser conferida uma nova interpretação conforme a constituição ao artigo 112, I, do Código Penal.

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