Opinião

O STF, a atribuição do UIF (antigo Coaf) e o direito comparado

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19 de novembro de 2019, 7h35

O Supremo Tribunal Federal julgará nesta quarta-feira (20/11) o RE nº 1.055.941, cuja repercussão geral foi reconhecida para o fim de discutir os limites objetivos da transferência automática de informações obtidas pelos órgãos administrativos de fiscalização e controle — como o Fisco, a UIF (antigo COAF) e o BACEN — com o Ministério Público. Nessa ocasião, será analisada a forma como esses atos devem ser praticados para o fim de que sejam compatíveis aos direitos constitucionais à intimidade e ao sigilo de dados (art. 5º, incisos X e XII, da CR/88).

Spacca

Atualmente todos os procedimentos investigativos instaurados sem a supervisão do Poder Judiciário a partir de informações que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e de seus montantes globais encontram-se suspensos por força de medida liminar do Ministro Dias Toffoli. Considerando os princípios constitucionais que orientam essa temática, assim como o tratamento conferido aos órgãos de controle de informações sigilosas — especialmente a UIF — no âmbito internacional, entende-se que tal posicionamento deve ser confirmado, por ser a coisa certa a fazer, pelo STF.

Importante frisar que essa matéria se diferencia daquela que foi analisada pela Suprema Corte brasileira por ocasião do julgamento das ADI nºs 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, haja vista que estas ações versaram apenas sobre a possibilidade de a Receita Federal receber dados bancários de contribuintes diretamente das instituições financeiras sem prévia autorização judicial. Sob este cenário, o STF decidiu que a Lei Complementar 105/2001 é constitucional pelo fato de que a transferência de informações dos bancos ao Fisco ocorre entre entes integrantes da Administração Pública que estão duplamente obrigados à garantia do sigilo. Veja-se: garantia de sigilo.

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Rodrigo Mudrovitsch, advogado

Ocorre, contudo, que o Ministério Público – por mais relevantes que sejam suas funções – não é um ente pertencente à estrutura da Administração Pública, tampouco detém como atribuição a análise primária dos dados fiscais e financeiros dos indivíduos. Por se tratar de um órgão de persecução penal, a sua atuação emerge apenas em um momento posterior ao recebimento e análise desses dados por aqueles órgãos que têm como finalidade principal a operacionalização dessas informações, oportunidade em que esse, o MP, é comunicado acerca do caráter suspeito de uma operação.

Certo de que os dados acessados pelas autoridades bancárias e fazendárias são resguardados pelo sigilo, a sua disponibilização a entes estranhos à análise imediata dessas informações não pode se dar de forma simplificada. No meio disso e antes, existe uma coisa chamada Constituição, que garante o sigilo, a privacidade e a intimidade do contribuinte e dos dados a ele pertinentes.

Essas garantias não são de fancaria. São garantias classificadas de fundamentais, cuja flexibilização somente pode se dar quando efetivamente necessária e na justa medida para atender aos interesses perseguidos, sob pena de sua descaracterização. Em face disso, conferir ao Ministério Público o acesso indiscriminado de informações dessa natureza criar-lhe-á um subterfúgio para a obtenção de elementos sigilosos e cujo alcance se reveste de excepcionalidade, afastando o controle do Poder Judiciário desses atos. Não olvidemos o recentemente ocorrido envolvendo, inclusive, dados sigilosos de ministros do próprio STF. Diga-se, então: se nem os ministros de uma Suprema Corte têm a garantia de seu sigilo, o que se pode dizer dos cidadãos “comuns”? Daí a palavra chave ser: controle. Em uma democracia, o controle é condição para a transparência dos atos estatais.

Não se trata de obstar a troca de informações entre os órgãos administrativos de fiscalização e controle com as autoridades de persecução penal, mas, sim, de limitar a natureza dos dados possíveis de serem transmitidos sem autorização judicial, uma vez que será a dimensão e qualidade dos elementos transmitidos que levarão a uma ofensa à intimidade do indivíduo. Sendo assim, restringir os relatórios de comunicação espontânea elaborados por esses órgãos à identificação do titular de uma operação bancária e aos montantes considerados suspeitos é uma medida que, a um só tempo, revela a existência de atos que demandam maior apuração, bem como não colide com os direitos que se buscam resguardar com essa medida.

A comunicação espontânea realizada por esses órgãos deve servir, portanto, como instrumento para o início de uma investigação, ou para corroborar as suspeitas já existentes em relação a uma operação. Somente com a identificação de elementos idôneos a justificar a quebra do sigilo bancário ou fiscal do indivíduo é que o acesso à integralidade desses dados deve ser autorizada, dado que é neste momento que o Poder Judiciário fará um juízo de adequação e necessidade da medida, entendendo ser possível flexibilizar um direito constitucional em nome de outro valor que se sobreponha ao interesse na manutenção do sigilo.

O controle judicial existe para coibir abusos e assegurar o respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos. Encará-lo como um óbice para o prosseguimento de investigações é reduzir o papel inerente ao próprio Poder Judiciário e relativizar a importância dos direitos que se buscam resguardar por meio dele, transferindo a um órgão administrativo o poder para interferir na esfera de privacidade assegurada aos indivíduos, competência que não lhe é conferida pela Constituição da República. Encarar a reserva de jurisdição como obstáculo é desconfiar do judiciário.  

Diz-se por aí que os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil serão descumpridos ante a realização de um controle judicial sobre as informações contidas nos relatórios dos órgãos administrativos de fiscalização e controle, particularmente da UIF. Trata-se de uma falácia e de um argumento malicioso, refira-se. A efetividade desse modelo é alcançada, em verdade, com a existência e atuação de um órgão de inteligência que disponha de efetiva autonomia frente ao poder estatal e capacidade para operar de forma célere e com qualidade, ao que se deve somar a existência de instituições de persecução com condições para operacionalizar essas informações.

A legislação comparada permite verificar a forma como essas questões são enfrentadas em outras jurisdições, demonstrando que, também em outros países, há mecanismos de controle sobre as informações compartilhadas a partir dos relatórios das Unidade de Inteligência Financeira internacionais com as autoridades de persecução penal.

Na Espanha, apesar de o Servicio Ejecutivo de la Comisión de Prevención del Blanqueo de Capitales e Infracciones Monetarias (Sepblac) — Unidade de Inteligência Financeira espanhola — ter o dever de encaminhar aos órgãos de persecução o informe de inteligência financeira que revelar a existência de indícios ou certeza de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, esse material não disporá de valor probatório, nem poderá ser incorporado diretamente nas diligências judiciais e corporativas. Em razão disso, a investigação instaurada a partir das operações bancárias deve ser refeita com autorização judicial.

Na Alemanha existe um conjunto de regras regulando a troca de informações pela Zentralstelle für Finanztransaktionsuntersuchungen — Unidade de Inteligência Financeira alemã. Apesar de não haver restrição em relação ao uso dos relatórios de inteligência em processos judiciais, existe uma interpretação mais restrita em relação ao intercâmbio de informações entre órgãos internos por normas daquele país[1].

Oportunizar o acesso a informações bancárias como estratégia para a investigação de crimes econômicos é um instrumento adicional e necessário para o combate a delitos dessa natureza.

Todavia, em um cenário em que a Constituição da República elevou a intimidade e o sigilo de dados à condição de direito fundamental do indivíduo – e isso é fato – , o controle judicial sobre as iniciativas que pretendem a sua flexibilização não pode ser afastado, vez que será nesse momento que a adequação e a necessidade dessa medida serão analisadas.

Daí que os limites trazidos pelo Ministro Dias Toffoli em sua medida liminar asseguram o domínio que deve advir das trocas automáticas de informações dos órgãos administrativos de fiscalização e controle com o Ministério Público, devendo ser confirmados pelo Supremo Tribunal Federal.

E não se diga que, no caso, seja possível fazer uma ponderação (Abwägung), coisa que nem o inventor dessa técnica jamais pensou quando em jogo direitos individuais versus interesses (sic) coletivos. Com efeito, Robert Alexy afirma, categoricamente, que, entre um direito individual e um interesse coletivo, há sempre a prevalência prima facie do direito individual fundamental. Pode até haver, ao final, prevalência de um direito coletivo, mas jamais esta prevalência será prima facie. Por isso, diz Alexy que somente uma teoria política coletivista seria capaz de justificar a prevalência do bem coletivo em relação ao direito individual. E sobre isto o jurista alemão é peremptório (Alexy, Robert. El concepto y la validez del Derecho. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 204-209). 

Por último, ao se dizer que o Brasil, ao proteger garantias fundamentais previstas em sua Constituição enfraquece o combate à corrupção (por todos, veja comentários acerca do que disseram integrantes da OCDE), e também que leis como a do abuso de autoridade igualmente operam essa fragilização, há que lembrar o que se disse acima (Espanha e Alemanha, para falar apenas destes dois países) e agregar que, no caso do abuso de autoridade, países como a própria Alemanha prevê penas de 1 a 5 anos para os casos de parcialidade de juízes e membros do Ministério Público, conforme artigo 339 do Código Penal (Rechtsbeugung), sem considerar o rigor com que países como os EUA tratam da matéria, sem esquecer a obrigatoriedade de o Ministério Público ser obrigado, nesses países, a colocar na mesa provas inclusive a favor da defesa.

Portanto, o STF deve fazer a coisa certa: decidir conforme a Constituição, que é a sua tarefa. Em nome do combate ao delito, seja ele qual for, não se pode reduzir direitos, mormente quando se tem no horizonte próximo passado uma sucessão de transgressões feitas por agentes políticos (juízes, fiscais e membros do MP), os quais, em nome de um fim, utilizaram meios ilícitos. Os fins não justificam os meios. O Estado de Direito é uma via estreita (espécie de narrow corridor). Tem de se passar no entremeio de espinhos e navalhas. E resistir às tentações autoritárias. Resistir aos atalhos. O judiciário é a ponte pela qual a democracia passa. O rio é caudaloso e não dá para arriscar passar à nado.  

Numa palavra: Qual é o problema de depender de uma ordem judicial para quebrar o sigilo fiscal ou bancário? Não confiamos no Poder Judiciário?

Eis a questão.

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