Opinião

PEC que altera artigo 5º e permite prisão após 2º grau é ideia estapafúrdia

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19 de novembro de 2019, 10h44

Um cânone da ortodoxia católica assentava: Roma locuta, causa finita, ou seja, se o poder incontrastável decidiu, o assunto está encerrado. No Direito, a máxima pode ser transposta para “trânsito em julgado”, conceito de uma decisão judicial definitiva, irrecorrível, imutável. Nos países onde vigora o Estado Democrático de Direito, Roma é a Constituição — primeira e última baliza a demarcar todo ordenamento jurídico. Escritas no bojo de rupturas institucionais, as constituições podem ser excepcionalmente emendadas de acordo com a correlação de forças políticas na sociedade representadas no Parlamento, mas certas partes de seu corpo permanente são imutáveis. São conhecidas como cláusulas pétreas, por sua perenidade normativa e resistência a modismos e conveniências de ocasião.

O artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição do Brasil, não permite sequer a apreciação de emenda “tendente a abolir” a “forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.” Neste último elenco enquadra-se o mais eloquente, extenso, generoso e igualmente civilizatório artigo 5º, cabeça do título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Por obviedade semântica e lógica conceitual, todo o título II é uma vasta e intocável cláusula pétrea. Causa espécie, portanto, que viceje no Congresso Nacional a ideia estapafúrdia de apresentação de uma proposta de emenda anuladora do inciso LVII do artigo 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Quem coteja os 78 incisos e quatro parágrafos desse artigo constata que nenhum foi emendado desde 1988, mas apenas quatro regulamentados por exigência da própria Carta Magna. Em contrapartida, outros dispositivos do texto constitucional já sofreram 102 alterações.

A movimentação dos legisladores decorre da recente decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar inconstitucional a prisão antes do trânsito em jugado da condenação, em geral de réus apenados em segunda instância — não só repugnada pela Constituição como também pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que, por ser de 1941, foi alterado pela Lei 12.403, de 2011, para ajustar-se à Carta de 1988, e passou a preceituar que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Notar que a recente decisão do Supremo foi no sentido de reconhecer que este artigo se espelha na própria Constituição.

Para contornar a petrificação jurídica, o expediente legislativo à vista seria a introdução da mudança noutra parte do texto constitucional, ou mesmo a alteração do artigo 283 do CPP. Na primeira hipótese, seria caso acabado de afronta à Constituição, por acrescentar a ela dispositivo contraditório a outro nela contido. No segundo, inócuo, por inconstitucional. Se a cartada virar lei, o tema voltará a dividir o Supremo, pois certamente a corrente mais comprometida com a ordem constitucional arguirá a extravagância do novo dispositivo — que já contaria com apoio de cinco ministros que votaram contra prisão somente após o trânsito em julgado da condenação.

Os envolvidos no debate deveriam ponderar que a questão sobressai acima de pessoas. É caso clássico de causa maior que o santo. Os legisladores que redigiram a Constituição em 1988 e a alteração no CPP em 2011 certamente não planejaram beneficiar nem prejudicar A ou B, mas miraram a garantia dos direitos fundamentais do cidadão como salvaguarda da ampla defesa aos excessos do poder coercitivo — com a elementar conclusão de que o Direito é bem maior que o Poder da ocasião.

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