Opinião

Reexame necessário em ação de improbidade?

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18 de novembro de 2019, 13h46

O reexame necessário é instituto peculiar. Há quem[3] remonte suas origens à Roma antiga, quando, com a cristianização do direito pagão, surgiu como forma de se evitarem injustiças; outros, tomando-o a partir de fase mais avançada na história, o creditam ao direito processual penal português, como proteção ao réu condenado à morte.[4] Nesse sentido, identificamos lição de Gama Filho, que, em importante obra[5] em que investiga a história da administração pública portuguesa entre os séculos XII e XV, rememora a Lei de 12 de março de 1355, na qual se assentou a apelação por parte da Justiça, aos Ouvidores do Crime, sempre que “algum for acusado por morte de homem ou de mulher, ou que pertença a Fidalgos”.

A curiosa figura da apelação “polla Justiça a El Rei” seria ainda replicada na Ordenações Afonsinas (Livro V, Título LVIII, ns. 9, 15 e 16)[6], merecendo comentário de Alfredo Buzaid: “Em suma, as causas criminais eram ou públicas, ou particulares. As primeiras podiam ser intentadas por qualquer do povo, ou por inquirição devassa. As outras só podiam ser intentadas pelas partes ofendidas. (…) Não tinha lugar a denúncia, nem a devassa nos delitos particulares. Apelava-se ex–officio não só nos casos de devassa, como também nos de querela, desde que o delito fôsse público.[7]

O recurso de ofício se manteria nas Ordenações Manuelinas de 1521, para impedir a execução imediata da pena, sendo posteriormente replicado, em 1603, pelas Ordenações Manuelinas, que se aplicariam por largo período ao Brasil imperial, mas predominantemente no contexto processual penal.

Majoritariamente, a doutrina brasileira de hoje, ao perquirir historicamente sobre o instituto e sobre sua acolhida na ordem brasileira, nele enxergou uma tentativa de reequilíbrio do desbalanceado processo inquisitório. Gisele Welsch o define como tendo o “escopo de funcionar como um contrapeso, a fim de minorar eventuais desvios e desmandos do processo inquisitório, cujas regras não se estenderam ao processo civil, o qual sempre esteve calcado no princípio dispositivo”.[8] Nelson Nery Jr., na mesma linha, aduz que “a justificação histórica para o aparecimento da remessa obrigatória se encontra nos amplos poderes que tinha o magistrado no direito intermédio, quando da vigência do processo inquisitório[9]. Já José Frederico Marques divisou no instrumento objetivos menos nobres, qualificando-o como “centralização monárquica de que se serviram os dinastas portugueses para a instauração paulatina do absolutismo, em detrimento das Justiças locais.”[10]

Seja como for, em 4 de outubro de 1831 sobreviria Lei cujo artigo 90 inaugurou nova feição para a remessa necessária, qualificando-a como mecanismo de proteção do erário: “Fica extincto o actual Erario, e o Conselho da Fazenda. As justificações, que até agora se faziam neste Tribunal, serão feitas perante os Juizes Territoriaes (…); e as sentenças, que nelle se proferirem a favor dos justiticantes, serão sempre appelladas ex-officio para a Relação do districto, sob pena de nullidade.” Novamente, Gisele Welsch, ao analisar o cenário de então, assim percebeu a alteração: “Nesse momento histórico, ao recorrer de ofício, o juiz operava efetivamente na defesa dos interesses da Fazenda Pública, assemelhando-se a uma espécie de causídico desta, mas o que se buscava objetivamente era a reforma do julgado e não a sua simples revisão pelo Tribunal, no sentido de aperfeiçoamento da sentença como é hoje.”

Outro importante relato histórico que permite subsidiar a teleologia por detrás da remessa necessária nos é trazida por Jorge Tosta, que, investigando os Anais do Parlamento brasileiro, identificou, durante as discussões sobre a proposição que culminaria na Lei n. 242 de 1841, interessante abordagem sobre a remessa necessária da Lei de 1831. Em curiosa passagem, ele reproduz discurso de Clemente Ferreira, que defendia o instituto ao argumento de que “a melhor maneira de verificar a responsabilidade dos empregados que não são vitalícios é uma incansável e nunca interrompida vigilância das autoridades superiores sobre sua conduta e sua admissão, logo que há suspeitas veementes de que são prevaricadores. Mas nem por isso o corpo legislativo deve deixar de prevenir os abusos conhecidos, fazendo leis oportunas que fação cessar a sua causa: e é o que faz o artigo em discussão: está conhecido que os procuradores fiscais prevaricão, deixando de appelar de sentenças injustas contra a fazenda nacional: o remédio é obrigar os juízes a appelar de ofício e ficará cessando a ocasião de um tal abuso”.[11]

Em 1871, a Lei do Ventre Livre (n. 2.040) revigoraria a face libertária da remessa necessária, instituindo-a, em seu artigo 7º, § 2º, sempre “quando as decisões forem contrárias à liberdade”. Semelhantemente, a Constituição de 1937 endossaria a remessa necessária como contraponto em defesa do réu, impondo-a nas sentenças denegatórias de ordem de habeas corpus (artigo 101, parágrafo único). Estranhamente, porém, a disposição desapareceria nas Cartas seguintes e, pior que isso, encontraria norma precisamente em sentido contrário, constante do controvertido artigo 574, I, do Código de Processo Penal de 1941.

Posteriormente, hipóteses de remessa necessária protetivas do erário (artigo 898 da CLT e Leis ns. 2.664/1955, 4.717/1965, 6.014/1973, 6.071/1974 e 8.437/1992) conviveriam com situações outras, como a decisão de autorização de termo em favor do reconhecimento de nacionalidade brasileira a filho de brasileiro, embora nascido no exterior (Lei n. 818/1949), a defesa da pessoa com deficiência (Lei n. 7.853/1989) e o resguardo ao casamento e à família (Decreto n. 3.069/1863 e Constituição de 1934). Talvez parte da causa de toda essa ausência de sistematicidade possa ser creditada à difusão de hipóteses elucubradas pelos Códigos de Processo Civil Estaduais que viriam a ser editados por diferentes unidades da Federação na esteira da autonomia legislativa propiciada pela Carta de 1891.

De todo modo, em 1939, nosso primeiro Código de Processo Civil nacional consagrou, em seus artigos 643, § 1º, 814, 822 e 824, § 2º, a remessa necessária, prevendo-a nas decisões relativas a desquite, sem que Francisco Campos tecesse maiores considerações a seu respeito na exposição de motivos que acompanhou o então anteprojeto.[12] O Código de 1973 também traria a previsão, mas a ampliando para contemplar as condenações contra a Fazenda Pública, embora seu principal autor, Alfredo Buzaid, não deixasse de reconhecer a origem “garantista” do instituto: “Com a imensa soma de podêres de que estava investido o juiz, a faculdade de iniciativa, se por um lado era um bem, porque zelava pelos superiores interêsses da sociedade na repressão do crime, por outro lado podia ser, nas mãos de uma judicatura menos imparcial, um perigoso instrumento de perseguição a inocentes. (…) Foi aí então que repontou mais uma vez o gênio lusitano para corrigir o rigor do princípio dominante e os exageros introduzidos no processo inquisitório. Fê-lo criando a figura da apelação ex–officio.”[13]

Pois bem. Toda essa brevíssima incursão na história do instituto da remessa necessária teve um propósito, que é o de respaldar algumas conclusões preliminares que nos funcionam como premissas da posição que sustentaremos: (i) majoritariamente, a compreensão do fundamento da importação da remessa necessária pelo ordenamento brasileiro se pauta pela defesa do réu em processo penal, funcionando como um contrapeso ao processo inquisitivo; (ii) sem prejuízo, ao longo da história o instituto foi sofrendo mudanças (e, em certo sentido, desvirtuações), algumas delas possivelmente originadas (ii.i) de uma centralização em resposta ao receio pela autonomia regional (inclusive judicial), (ii.ii) de um viés fazendário, de declarada proteção do erário, e (ii.iii) de uma desconfiança a respeito da possível corrupção de advogados públicos.

Chegamos, então, ao presente e ao tema propriamente dito. Nos últimos anos, as Turmas integrantes da Primeira Seção divergiram sobre o cabimento ou não da remessa necessária em sede de improbidade. Julgado de 2014, no âmbito da Primeira Turma, ilustra a posição que prevalecia naquele colegiado: “a Ação de Improbidade Administrativa segue um rito próprio e tem objeto específico, (…) e não contempla a aplicação do reexame necessário de sentenças de rejeição a sua inicial ou de sua improcedência, não cabendo, neste caso, analogia, paralelismo ou outra forma de interpretação, para importar instituto criado em lei diversa.”[14] Já na Segunda Turma[15], a posição era em sentido contrário, pelo cabimento da remessa necessária.

A questão seria alçada à Primeira Seção via embargos de divergência[16] opostos, em 2016, precisamente contra aquele primeiro julgado a que se fez referência no parágrafo anterior. Houve, então, cinco adiamentos do julgamento, até que o recurso viesse a ser apreciado para ser, ao final, provido, de modo a fazer perseverar a posição da Segunda Turma.

Os argumentos contidos no voto-condutor foram singelos, aduzindo, apenas e tão somente, que (i) o CPC se aplica subsidiariamente ao rito da ação de improbidade e (ii) o artigo 19 da Lei de Ação Popular se aplica às ações civis públicas. Em nossa visão, não foram enfrentados os argumentos que sustentavam a posição contrária e os sucessivos adiamentos podem ter contribuído para que três Ministros não pudessem participar do julgamento (entre eles o relator do acórdão embargado) e para que não houvesse sustentações orais. Não aventamos que o resultado pudesse ser diferente (os Ministros Benedito Gonçalves e Regina Helena votaram vencidos na Primeira Turma, enquanto a Segunda Turma votava à unanimidade), mas aqueles fatores talvez propiciassem um amadurecimento maior do debate e um ganho de qualidade para o acórdão, conferindo maior segurança jurídica à superação da divergência. Sem embargo, não podemos concordar com o acórdão oriundo da Primeira Seção.

De nossa parte, entendemos que a genealogia da remessa oficial no Brasil milita em favor do réu, não do Estado. Em sede de improbidade, se há desequilíbrio a justificar o reexame, deveria socorrer o potencial apenado.

Além disso, o reexame necessário, na nossa ordem jurídica, sempre representou exceção, não regra. No microssistema de processo coletivo, o legislador, quando quis, o previu expressamente, de sorte que, sendo a Lei de Improbidade (1992) posterior à Lei de Ação Popular (1965), o silêncio mais nos parece deliberado que uma lacuna a demandar analogia ou aplicação subsidiária (o mesmo argumento funciona para a ação civil pública).

Aliás, parte da raiz do entendimento reside justamente na posição anteriormente adotada pelo STJ pelo cabimento da remessa na ação civil pública (do que temos fundada dúvida) e da subversão (igualmente censurável) que passaria a admitir ação civil pública para veiculação de pretensão sancionadora por ato de improbidade, inobstante mantenhamos nossa posição de que os instrumentos não deveriam confundir-se.

Ainda além, não mais se justifica a desconfiança anterior que exigia do juízo a remessa sob a sombra do risco de corrupção pelos advogados públicos. Daí por que estamos com Eduardo Talamini, quando diz que “No cenário atual, instituto da remessa necessária revela-se anacrônico. (…) hoje, os entes da Administração Pública são defendidos por procuradorias organizadas, competentes e idôneas. (…) A previsão da remessa implica uma inexplicável desconfiança na correta atuação desses órgãos e mecanismos. Além disso, como não há mais um legítimo fundamento que justifique esse tratamento diferenciado em favor da Administração Pública, é difícil defender a compatibilidade da remessa necessária como o princípio constitucional da isonomia.”[17] Ou seja, ao revés de se discutir a ampliação judicial das hipóteses de remessa necessária, talvez fosse o caso de se começar a debater se a norma, inicialmente constitucional, não teria transitado para a inconstitucionalidade no que diz respeito à proteção ao erário.

Um último argumento, se superados os anteriores: a ação popular, como sabido, não possui viés essencialmente sancionador (ainda que possa cominar pena de reparação por perdas e danos), já a improbidade, sim. Quando muito, pois, a remessa somente se aplicaria, no que toca à improbidade, à improcedência da pretensão de ressarcimento ao erário, mas não, o que nos soa absurdo, à sentença de não condenação nas demais penas (se no recebimento vigora o in dubio pro societate, no julgamento do mérito deve valer o in dubio pro reo, de modo que, se dúvida ou irregularidade houver inatacada por recurso voluntário, deve o réu ser isento de sanção).

A par de todas essas considerações, o tema, muito felizmente, foi endereçado pela Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Mauro Campbell e responsável por elaborar anteprojeto que culminaria no Projeto de Lei n. 10.887/2018, de cujo artigo 18, § 3º, constou contundentemente que “Não haverá remessa necessária nas sentenças de que trata esta lei”. Por mais que diga o óbvio, a proposta enfrenta a necessidade criada pelo acórdão proferido pela Primeira Seção do STJ e merece todo n

 


[1] Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professor na área de Direito Público. Sócio-fundador do escritório Mudrovitsch Advogados. Integrou a Comissão de Juristas instituída pelo Ato de 22/2/2018 do Presidente da Câmara dos Deputados para elaboração de anteprojeto da nova lei de improbidade administrativa.

[2] Doutorando, mestre e especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Professor na área de Direito Processual Civil. Sócio em Mudrovitsch Advogados.

[3] CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. São Paulo: RT, 1996, p. 71.

[4] BARROS, Ennio Bastos de. Os embargos infringentes e o reexame necessário. In: Revista Forense 254:60, abr./jun., 1976.

[5] http://purl.pt/6787

[6] http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/pagini.htm

[7] BUZAID, Alfredo. Das razões para o aparecimento da remessa ex-officio e sua regulamentação nas Ordenações Afonsinas. In: Revista Jurídica Virtual – Brasília, vol. 4, n. 37, jun. 2002.

[8] WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexame necessário e a efetividade da tutela jurisdicional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

[9] NERY JR., Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. São Paulo: RT, 1993, p. 262.

[10] MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1971, p. 184-185

[11] TOSTA, Jorge. Do reexame necessário. São Paulo: RT, 2005, p. 108-109.

[13] BUZAID, Alfredo. Op. Cit.

[14] REsp 1220667/MG, DJe 20/10/2014.

[15] REsp 1613803/MG, DJe 07/03/2017.

[16] EREsp 1.220.667/MG, DJe 30/06/2017.

[17] TALAMINI, Eduardo. Processo e administração. In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, n. 24, mai./jun., 2016.

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB.

  • Brave

    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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