MP no debate

A conferência familiar como estratégia preventiva à violência de gênero

Autor

  • Celeste Leite dos Santos

    é promotora de Justiça idealizadora do Memorial Avarc em memória às Vítimas da Covid-19 coordenadora do grupo de trabalho do projeto de lei do Estatuto da Vítima e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

18 de novembro de 2019, 11h40

1 – Introdução
O marco legal da Lei Maria da Penha, ainda não alcançou sua plena efetividade, ante a ausência de adoção de políticas públicas eficientes voltadas à prevenção, erradicação, bem como à repressão dos casos em que haja a prática de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (art. 7°, incisos I a V da Lei n. 11.340/06).

Dentre os obstáculos, se insere o âmbito restritivo de sua aplicação, ignorando-se a adoção de medidas preventivas que abranjam o risco da vitimização e da delinquência.

2 – Family group conferences (FGC)
A FGC, foi introduzida na Nova Zelândia em função de grave crise familiar ocorrida na década de 80. Foi constatado que o modelo retributivo se revelou ineficaz para o combate à prática de crimes, pois embora a Nova Zelândia ostentasse uma das maiores taxas de encarceramento do mundo, não houve mudança na taxa de criminalidade.[1]

A FGC constitui prática restaurativa que permite a tomada de decisões por meio do encontro entre ofensor, sua família, as vítimas e suas pessoas de apoio e um representante estatal (autoridade policial ou Ministério Público de acordo com a tradição jurídica do local).

O êxito da conferencing tem suscitado a possibilidade de sua utilização nos casos de violência de gênero, em que o homem, por se considerar superior, imprime à mulher maus-tratos físicos, psicológicos, morais, sexuais e patrimoniais.

3 – Experiência de FGC em violência de gênero
No Reino Unido, Nova Zelândia e Estados Unidos, têm sido usadas com êxito práticas restaurativas no âmbito da violência doméstica e familiar. No Reino Unido, foi implementado o projeto Daybreak FCG Dove Project, nos anos de 2001 a 2008com o escopo de apoiar a mulher vítima de violência doméstica e também aqueles que sofreram seus efeitos e fossem vulneráveis, tais como menores e adultos vulneráveis por razão de idade e enfermidade.[2]

A prática da Nova Zelândia tem por finalidade a cura da mulher que sofreu violência machista, bem como dos menores que sentiram os efeitos desses abusos e atos violentos. O procedimento restaurativo permite a expressão ativa dos intervenientes; nele lhes são dadas a palavra e a capacidade de solucionar os conflitos com foco em suas próprias necessidades, obtendo-se, por conseguinte, a paz social.

Nos Estados Unidos foi desenvolvida em Duluth, Minnesota, nos anos oitenta, tendo sido efetuados diversos estudos de modelos de conferências, com o escopo de agir sobre as atitudes psicoeducativas do infrator. A intervenção teve por finalidade modificar a ideologia machista, baseada no controle do poder sobre a mulher. O Programa Duluth Domestic Abuse Intervention Project submeteu os ofensores a diversos programas de intervenção (denominados battered intervention programs) por meio do Poder Judiciário e da polícia. A finalidade dos programas foi criar nos vitimários responsabilidade de fornecer apoio às vítimas:[3]

Assim, são as conferências um instrumento restaurativo com capacidade de resolver as situações derivadas da violência de gênero. O apoio aos membros próximos à vítima possibilita a ruptura do jugo do agressor sobre sua vítima, ajudando-a a se libertar das correntes de opressão física e psicológica, com o auxílio de parte da comunidade.

Da mesma forma, a prática de conferências nesse tipo de delito supõe um amparo aos filhos e filhas, que vão se beneficiar do apoio comunitário para a superação dos efeitos nocivos de uma violência exercida contra sua mãe e sua não utilização como instrumento e “arma” emocional por parte do agressor.

4. Possibilidade de utilização da conferencing em contextos de violência doméstica e familiar
As experiências que aplicam a conferencing a casos de violência de gênero conduzem à reflexão do real sentido e alcance da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006). Ao tratar do procedimento, foi estabelecida a competência cumulativa para o processo, julgamento e execução de causas cíveis e criminais decorrentes de violência doméstica e familiar, inclusive com determinação de aplicação do CPP, do CPC e das Leis ns. 8.060/90 e 10.741/2003, exceto quando sua aplicação estiver em contradição com os objetivos da Lei.

Da análise sistemática da Lei Maria da Penha, a única vedação ao emprego de ferramentas restaurativas consistiria no uso da transação e da suspensão condicional do processo, consoante previsão do artigo 41 da Lei n. 11.340/2006. Na qualidade de dominus litis da ação penal, nada impede a criação de projetos pelo Ministério Público que contemplem a aplicação de conferencing, que deverá abranger a proteção da mulher vítima de violência, seja ela própria vulnerável, da prole (interesse superior da criança e do adolescente) e do idoso.

Tal acepção implica em visão mais abrangente de tratar o fenômeno delitivo e vitimizatório, pois o objetivo da Lei é não apenas erradicar a violência doméstica, mas também a violência familiar, protegendo simultaneamente a vítima direta (mulher – esposa, filha, neta etc.) e as vítimas indiretas do delito (filhos que presenciam diariamente ofensas ou relações de poder desequilibradas entre marido e mulher tendem a reproduzir esse comportamento no futuro; avós que residem com os filhos e são eles próprios objeto de violência familiar ou a presenciam, o que lhes acarreta intenso sofrimento). Portanto, a competência cumulativa para causas penais, cíveis, da infância e do idoso não foram dispostas aleatoriamente no microssistema de proteção à violência doméstica e familiar, devendo ser criadas ferramentas que possibilitem sua integral aplicação.

De lege ferenda às Resoluções 181 e 183 do CNMP, pode ser elaborado plano de restauração da entidade familiar, com previsão de acompanhamento da vítima e ofensor, bem como estabelecimento de obrigações ao ofensor, tal como o dever de reparar os danos causados pela prática delitiva.

A vedação estabelecida pela Lei Maria da Penha, ao revés, se limita a impedir que o Ministério Público, ignorando os interesses e necessidades da vítima, proponha transação penal como forma extintiva da punibilidade. Nada estabelece a respeito da FGC, que além de ampla fase preparatória, terá o resultado do plano restaurador avaliado pelo Parquet, sem prejuízo do acompanhamento do cumprimento dele. Da mesma forma, o ofensor não poderá ter sua responsabilidade sobrestada mediante o preenchimento das condições do parágrafo 1° do artigo 89 da Lei n. 9.099/95.

O legislador procedeu com acerto ao estabelecer ditas vedações, pois nos institutos despenalizadores previstos pela Lei n. 9.099/95, o vitimário não assume a responsabilidade pelos seus atos, o que vai de encontro à própria finalidade da FGC e outros instrumentos restaurativos.

Mutatis mutandis, inexiste óbice ao estabelecimento da FGC antes ou depois do processo penal, até para que se dirimam as questões cíveis pertinentes no caso de divórcio ou ruptura da união estável, bem como haja efetiva proteção e apoio aos vulneráveis, que pode ser a própria mulher, a prole ou idosos que convivam com o casal.

Ao impulso inicial punitivo do Estado com a edição da Lei Maria da Penha, há que obtemperar que o efeito reabilitador da pena sobre a vida do apenado é nulo, nada impedindo a reprodução desse comportamento em outras relações. A esse respeito, o parágrafo 3º do artigo 3º da Resolução CNJ n. 128/2011, com a redação dada pela Resolução n. 225/2016, estabelece:

§ 3º. Na condução de suas atividades, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar deverá adotar, quando cabível, processos restaurativos com o intuito de promover a responsabilização dos ofensores, proteção às vítimas, bem como restauração e estabilização das relações familiares.

São muitos os argumentos que permitem defender a tese expendida: a proteção às vítimas, que têm direito a integral restauração dos efeitos danosos impingidos pela prática delitiva; a luta contra a reincidência; a proteção das vítimas indiretas da violência, tais como as crianças, adolescentes e idosos, cujos interesses são sistematicamente reconduzidos ao ajuizamento de futuras ações cíveis, revitimizando as vítimas diretas e indiretas da prática delitiva; o direito à saúde e a assistência social das vítimas diretas e indiretas; o direto à participação das vítimas; e o direito à informação, proteção e defesa das vítimas.

A revitimização do ofendido e familiares é inevitável, caso a esfera criminal se limite à mera punição do ofensor, pois terão que novamente depor sobre o ocorrido, sem que nenhum auxílio tenha sido fornecido pelo Estado. Assim, inexiste impedimento legal à implementação e desenvolvimento da FGC no âmbito da violência doméstica e familiar, excetuada a prática de delito hediondo, tentado ou consumado (homicídio qualificado; lesão corporal gravíssima ou seguida de morte contra seu cônjuge, companheiro, parente consanguíneo até o terceiro grau, em razão dessa condição; estupro; estupro de vulnerável; favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável; posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito).

O uso da FGC pode romper o ciclo vitimizatório e encontra plena adequação nos casos de ameaça, lesão corporal leve, crimes contra a honra e crimes de dano. Em todos esses casos, por se tratar de crimes de ação penal pública condicionada e ação penal privada, a conferência pode ser desenvolvida em entidades privadas, detendo o Ministério Público e o Poder Judiciário tão somente poder de veto ao plano de restauração obtido, quando manifestamente insuficiente, em especial quando concorram interesses de pessoas vulneráveis atingidas direta ou indiretamente pela prática da infração penal.

Por fim, não cabe objetar-se seu uso com princípios processuais penais dado o caráter voluntário e negocial da FGC.


[1] MIGUEL BARRIO, Rodrigo, Justicia restaurativa y justicia penal: nuevos modelos: mediación penal, conferencing y sentencing circles, p. 121-135.

[2] MIGUEL BARRIO, Rodrigo, cit., p. 156-158.

[3] MIGUEL BARRIO, Rodrigo, cit., p. 156-158.

Autores

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    é promotora de Justiça, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), gerente e coordenadora do Projeto Avarc do MP-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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