Crime e castigo

O fio da Moira: um constitucionalmente adequado Código de Processo Penal

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

17 de novembro de 2019, 11h35

Spacca
O Código de Processo Penal deveria ser o fio condutor de todas as atividades que envolvessem a pretensão última do Estado de aplicar uma pena. Mas não é!

Há outros fatores conduzindo o dia a dia da jurisdição penal, ao revés de uma lei instrumental positivamente válida e obedecida.

O subjetivismo do juiz ganha força e importância, e permite a construção de um código de conduta e processamento todo ele pessoal. Isso toma forma no juízo criminal com muita facilidade, levando a indefinições e a insegurança.

E nos tempos em que o conhecimento tende a ser substituído em certos momentos pela ignorância, e o senso comum invade as decisões judiciais, isso é particularmente relevante.

Objetivos morais, compreensões pessoais, valores do julgador e regionalismos institucionais estão bem presentes no cotidiano das varas criminais. 

É verdade que parcelas significativas das normas – quer de natureza instrumental, quer de natureza material – estarão sempre abertas à interpretação e serão concretizadas através da atividade jurisdicional. Porém, no dia a dia da jurisdição penal, o que deveria ser pontual tornou-se essencial.

E por qual razão? 

A ancianidade do Código de Processo Penal, que é de 1941, parece ser a resposta correta.

Óbvio que existem leis novas que o modificam e o transformam em colcha de retalhos, mas o seu papel de leito natural do processo fica irremediavelmente perdido e caímos todos, queiramos ou não, no subjetivismo, no moralismo e no jurisprudencialismo.

O STJ, Superior Tribunal de Justiça, tem a função de unificar procedimentos, de consolidar interpretações, mas nem sempre é possível, ou conveniente, substituir o legislador. Sem contar que é grave e abjeto o desconhecimento de 1ª e 2ª instâncias da jurisprudência firmada pela 3ª Seção daquela Corte. Em nome de uma falsa independência, continua-se a julgar em descompasso com o Tribunal Superior.

O juiz criminal que decreta busca e apreensão de ofício (CPP art. 242) é tido como arrojado e “combatente da corrupção” em alguns casos, ou em diversos lugares. Em outros, a prática é tida como inconstitucional e abusiva.

Quando se está diante de juízo criminal que decreta o sequestro de bens do investigado/réu de ofício (CPP art. 127), sem aguardar ou acolher interesse do acusador, absorvendo uma postura pró-ativa da jurisdição penal, estamos diante de uma inversão da imparcialidade necessária ou defronte de um magistrado dos tempos modernos?

E quando se cuida de juiz criminal que decreta prisão preventiva de ofício (CPP art. 311)? É caso de ver o magistrado como sócio da acusação ou é papel do juiz tutelar de ofício a segurança da sociedade, a partir de sua própria visão de mundo?

Ainda há o magistrado de competência penal que produz prova de ofício, seja no curso da investigação criminal (CPP art. 156,I), seja no curso da ação penal (CPP art. 156, II), fazendo coro à tese da acusação que é da alçada do Ministério Público. É permitido? 

Ainda é possível encontrar juizes criminais que requisitam instauração de inquérito policial (CPP art. 5) e eles próprios dão origem a procedimentos penais que o Judiciário decidirá. Ao menos nessa pequena parcela eles são ativos e tomam posição de parte processual. Isto é compatível com a Constituição?  

Para alguns processualistas penais, todos esses juízes têm em comum o fato de agirem nos estritos limites da Lei Processual Penal; para outros, a qualidade que ressona é a de analfabetos constitucionais.

Como ter segurança processual com esse grau de incerteza acerca de “onde está o direito” e sobre “qual direito processual possuímos”?

É necessário um processo preciso. Viver não é preciso, mas a lei que rege a possibilidade de perda da sua liberdade – alterando-lhe a vida – deve ser precisa.

Há Moiras a tecer o fio da existência, e estas três irmãs fiandeiras da mitologia grega estão acima dos Deuses. Não podem ter seu trabalho interrompido nem mesmo por Zeus, ou por um juiz que se considere perto do Olimpo.

Assim me parece que deva ser o processo penal: um fio condutor de todas as atividades; um fio tecido sem interpretações grandiloquentes, sem interferências de mortais ou imortais e fatalmente respeitado, até que Cloto, Láquesis e Átropos terminem de fiar, enrolar e cortar!

Está na ordem do dia um Código de Processo Penal moderno, constitucionalmente adequado, que nos permita viver a previsibilidade que não possuímos, a segurança jurídica procedimental que não temos.

Enquanto isso, havemos de abrir os jornais, ou a internet, todas as manhãs, ler notícias que nos parecem esdrúxulas e ter a sensação de Eduardo Dusek.

Aí nos sobrará sempre gritar:
– “Levanta e serve um café
que o mundo acabou!"

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    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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