Ambiente Jurídico

Danos ao patrimônio cultural obrigam ressarcimento de lucros ilícitos obtidos

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

16 de novembro de 2019, 8h00

Spacca
Os danos causados ao patrimônio cultural (também chamado meio ambiente cultural) são, via de regra, multifacetários e compreendem particularidades relacionadas ao tempo, ao grau e à natureza da lesão, além da repercussão social e reprovabilidade da conduta lesiva, que ofende a coletividade como um todo, considerando que os bens culturais são de natureza indisponível, de fruição difusa e de titularidade intergeracional.

Por isso, para se alcançar a reparação integral do dano ambiental[1], necessário identificar, concretamente, todas as dimensões da lesão, que pode compreender, por exemplo: danos reversíveis (passíveis de reparação mediante o retorno ao status quo ante); danos irreversíveis (compreendem a perda definitiva — total ou parcial — do bem lesado); danos interinos (compreendem o prejuízo que medeia, temporalmente, o instante da ação ou omissão danosa e o pleno restabelecimento ou recomposição do bem); lucros ilícitos obtidos (relacionados à obtenção de valores econômicos a partir do dano causado); danos morais coletivos (violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos) e danos sociais (relacionados à perda da possibilidade de fruição do bem lesado).

Talvez uma das facetas mais esquecidas no âmbito da responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, aí incluído o patrimônio cultural, seja aquela relacionada à busca pelo ressarcimento dos lucros ilícitos obtidos com a lesão causada pelo poluidor, circunstância que, ao ser olvidada, acaba por contribuir para o enfraquecimento do caráter dissuasório da proteção aos bens integrantes do patrimônio cultural, fazendo incidir a advertência do Ministro Herman Benjamin, para quem:

A recusa de aplicação ou aplicação parcial dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arrisca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa. Daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e gerenciável “risco ou custo do negócio”, acarretando o enfraquecimento do caráter dissuasório da proteção legal, verdadeiro estímulo para que outros, inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do infrator premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério. (STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.198.727 – MG RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN –  j. 14 de agosto de 2012).

Nesse cenário, importante realçar que uma das funções da responsabilidade civil ambiental, marcada pelo dever de reparação integral dos danos, deve ser a de propiciar a recuperação, em prol da coletividade, dos proveitos econômicos auferidos indevidamente pelo infrator (uso, fruição, descaracterização, comercialização e qualquer outra mais valia econômica) em razão da lesão causada ao bem de valor cultural.

Com efeito, não se pode admitir que aquele que descumpre o dever legal de preservar o patrimônio cultural e viola o direito difuso e intergeracional relacionado à fruição de um patrimônio cultural hígido (artigo 216, § 1º da CF/88), seja beneficiado com a obtenção de ganhos econômicos.

Trata-se da aplicação do princípio milenar que preconiza que "nemo potest lucupletari, jactura aliena" (ninguém pode se locupletar à custa alheia), incorporado em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do artigo 884 do Código Civil e artigo 91, II, b, do Código Penal.

Segundo lecionam Nelson Rosenvald e Bernard Korman Kuperman[2]:

Para advertir a sociedade sobre o desvalor de determinados comportamentos, a tendência contemporânea caminha no sentido de buscar soluções externas ao direito civil clássico como formas de prevenção geral de condutas antijurídicas. Nesse cenário, entram em cena os institutos de resgate do lucro ilícito e da pena civil. Esta se destaca pela finalidade punitiva primária e a natureza substancialmente penal, não obstante formalmente civil, independendo da constatação da efetiva obtenção do lucro pelo agente no exercício de sua atividade. Nada obstante, os mecanismos restituitórios transcendem uma função compensatória própria da responsabilidade civil clássica sem, ao mesmo tempo, converterem-se em sanções punitivas. Assim, a função preventiva da responsabilidade civil pode materializar-se tanto por penas civis quanto por pretensões restituitórias, como regra de incentivo à reação aos ilícitos, superando o plano intersubjetivo da neutralização de danos para valorizar a função de desestímulo de comportamentos nocivos a toda a sociedade.

Imagine-se a hipótese em que uma empresa construtora, com a finalidade de viabilizar a locação comercial de salas, ergue um prédio no entorno de uma igreja colonial tombada, edificando — sem autorização — dez pavimentos acima da altimetria máxima permitida para a área, violando, desta forma, o artigo 18 do Decreto-Lei 25/37 (Lei do Tombamento), prejudicando gravemente a visibilidade do bem tombado.

Não resta dúvida que a empresa obteve lucro ilícito ao incorporar em seu patrimônio dez andares de salas comerciais, com a construção em área que não lhe permitia tal potencial construtivo, lesando, desta forma, o bem cultural protegido.

Nesse caso, a regra será a propositura de ação demolitória (deve ser sempre buscada a reparação integral e in natura do bem lesado) a fim de suprimir os andares acima da altimetria permitida, cumulada com pedido de indenização pelos danos materiais e, eventualmente, extrapatrimoniais. Além disso, todos os valores eventualmente auferidos pela empresa com a locação dos andares erguidos ilicitamente deverão ser restituídos em benefício da coletividade, nos termos do art. 13 da Lei 7.347/85.

Na mesma toada, suponha-se a hipótese em que determinada empresa efetua a supressão de cavidades naturais subterrâneas (cavernas) em uma serra tombada como patrimônio paisagístico e ali promova, em seguida, a extração de minério de ferro, auferindo grandes somas com as atividades ilícitas.

Além de promover a integral recuperação da área degradada e arcar com as demais dimensões dos danos (irreversíveis, interinos, extrapatrimoniais etc.), a responsável deverá restituir à coletividade todos os recursos por ela obtidos com a venda dos bens extraídos à margem da lei.

Tais medidas de responsabilização são essenciais para a efetivação do princípio da reparação integral, que se concretiza, também, por meio da recaptura dos ganhos auferidos com o descumprimento de um dever legal ou violação de um direito alheio.

O entendimento acima já foi agasalhado por decisão do Superior Tribunal de Justiça[3]:

A responsabilidade civil ambiental deve ser compreendida o mais amplamente possível, de modo que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indenizar – juízos retrospectivo e prospectivo. Também deve ser reembolsado ao patrimônio público e à coletividade o proveito econômico do agente com a atividade ou empreendimento degradador, a mais-valia ecológica ilícita que auferiu (p. ex., madeira ou minério retirados irregularmente da área degradada ou benefício com seu uso espúrio para fim agrossilvopastoril, turístico, comercial).

Vale destacar que, para além da possibilidade de se pleitear o ressarcimento de lucros concretamente já obtidos (caráter restitutório), a vedação de obtenção de lucros ilícitos também pode atuar em relação ao futuro (caráter inibitório ou preventivo).

Caso concreto envolvendo o caráter inibitório da responsabilidade civil em sede de patrimônio cultural foi a condenação, na comarca de São João del-Rei (MG), dos autores da demolição de edificações tombadas situadas nas proximidades da Igreja de São Francisco de Assis, tombada como patrimônio nacional.

O Ministério Público de Minas Gerais propôs ação civil pública em que houve a condenação dos responsáveis ao pagamento de indenização por dano moral coletivo no importe de R$200 mil; à elaboração de Registro Documental dos imóveis demolidos, contendo histórico, informações sobre o construtor e antigos moradores, descrição pormenorizada do bem, plantas, imagens atuais e antigas, depoimentos de antigos moradores e usuários da edificação; bem como à abstenção de construírem no local dos danos qualquer edificação que supere a altimetria, a volumetria e a taxa de ocupação dos bens anteriormente existentes, sob pena de multa de R$ 100 mil e demolição compulsória.

Não houvesse o pedido de obrigação de abstenção, certamente seria vantajoso para os demolidores dos bens culturais o pagamento da indenização pela demolição das casas térreas coloniais para ali construírem um moderno prédio de vários andares, auferindo milhões de reais à custa do desaparecimento de referências culturais importantes para a nossa sociedade.

A decisão monocrática foi confirmada, por unanimidade, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 4 de junho de 2019[4], constituindo importante precedente para se efetivar a vedação de lucros ilícitos a partir da destruição do patrimônio cultural brasileiro.


[1] Vigora em nosso sistema jurídico o princípio da reparação integral ou in integrum do dano ambiental, irmão siamês do princípio do poluidor-pagador, a determinar a responsabilização por todos os efeitos decorrentes da conduta lesiva, incluindo, entre outros aspectos, o prejuízo suportado pela sociedade, até que haja completa e absoluta recuperação in natura do bem lesado (STJ – RESP 1654950-SC – DJ 06.09.2018).

[2] ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement ? Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. p. 29.

[3] STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.198.727 – MG RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN –  j. 14 de agosto de 2012.

[4] TJMG –  Apelação Cível  1.0625.14.010069-8/004, Relator: Des. Amorim Siqueira , 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/06/2019, publicação da súmula em 19/06/2019.

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