Opinião

Abusa da autoridade quem quer, cumpre a lei quem tem juízo

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14 de novembro de 2019, 11h07

Em agosto de 1996, cinco jovens invadiram uma choperia na capital paulista para roubar. Duas pessoas foram mortas e em poucos dias a polícia prendeu os supostos criminosos, todos eles pobres e negros. Depois se descobriu que a confissão fora obtida mediante tortura e os culpados eram outros. Ficou conhecido como o caso do Bar Bodega. Nenhuma autoridade pública foi punida.

Em março de 1997, policiais militares foram flagrados extorquindo dinheiro e espancando pessoas num bairro de gente humilde em Diadema. Um trabalhador, pai de família, foi morto. O episódio repercutiu internacionalmente, virou símbolo de abuso de autoridade, restando conhecido como o caso da Favela Naval. Nove policiais foram expulsos da corporação e alguns deles condenados por abuso de autoridade, com penas minúsculas.

Em novembro de 2007, no Pará, uma adolescente ficou trancada em uma cela onde se encontravam trinta homens adultos. Acabou sendo vítima de abusos, maus tratos e tortura, em que pese a manutenção da prisão da menina estivesse em manifesta desconformidade com as regras previstas em lei. Em dezembro de 2014, um juiz de direito chegou atrasado e perdeu o voo. Possesso, mandou prender arbitrariamente três funcionários da empresa aérea. Em ambos os casos, no que tange ao abuso de autoridade, não se tem notícia de qualquer processo criminal e consequente condenação em desfavor dos magistrados.

Por fim, Luiz Carlos Cancellier, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, foi preso pela Polícia Federal na chamada Operação Ouvidos Moucos, em setembro de 2017. Encaminhado a um presídio de segurança máxima, onde permaneceu detido por 30 horas, somente foi liberado após a concessão de um habeas corpus, porém continuou proibido de ingressar na universidade, de modo que a humilhação pública o levaria ao suicídio dezoito dias depois. À época, ministro do STF advertiu: “serve de alerta sobre as consequências de eventual abuso de poder por parte das autoridades”.

Observe-se que não são casos esporádicos, porque no Brasil o abuso de autoridade é rotineiro. No entanto, ocorre com maior frequência nas relações entre funcionários de médio e baixo escalão e o cidadão comum, sendo inapropriado sombrear tal realidade, desnaturando a essência do debate, alegando que a lei teria o condão de proteger acusados do colarinho branco.

Note-se que a problemática referente ao abuso de poder, além de antiga, desafia todo e qualquer país democrático. Há 270 anos, Montesquieu verificou a tendência do poder ao abuso e seus efeitos nocivos sobre as liberdades civis, concluindo pela necessidade de controles. Em suas palavras: “é uma experiência eterna, que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele” (“c'est une expérience éternelle, que tout homme qui a du pouvoir est porte à en abuser” – Montesquieu, De l’Ésprit des lois, 1748, livre XI, chap. IV). Lord Acton, historiador inglês, ainda no século XIX, do mesmo modo alertava: “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. (“Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely”Letter to M. Creighton, April, 1887).

Essa triste realidade não pode passar in albis, devendo-se preservar a aplicação da lei, mediante ações legislativas assegurando a limitação do poder. No Brasil, a tipificação normativa sobreveio com a Lei nº 4.898, de 1965, fruto de projeto apresentado pelo deputado Bilac Pinto, em 1956, cujo propósito seria coibir “abusos que poderiam ser cometidos pelas autoridades encarregadas de velar pela execução das leis e pela manutenção e vigência dos princípios asseguradores dos direitos da pessoa humana”. Com mais de meio século de existência, a lei já se revela anacrônica, obsoleta, não atendendo, definitivamente, as necessidades hodiernas.

Será, enfim, substituída pela Lei nº 13.869 de 2019. Aprovada pelo Congresso Nacional, percorreu as fases do processo legislativo democrático. Originou-se do II Pacto Republicano, baseada no anteprojeto elaborado por ilustre comissão, composta, entre outros, pelo Ministro Teori Zavascki, Rui Stocco e Everardo Maciel. Foi debatida na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, com a realização de audiências públicas. Aprovada, foi sancionada com vetos pelo Presidente da República, sendo alguns deles derrubados pelo Congresso Nacional.

A nova lei não difere da realidade normativa no âmbito do direito comparado. A título de exemplo, o Código Penal português tipifica as condutas, nos artigos 378 a 382 A, previstos no Capítulo IV, Seção III, designado de abuso de autoridade. As punições variam de multas a suspensões e podem chegar a até oito anos de prisão. Na Itália, o art. 323, do Código Penal, versa sobre o abuso d'ufficio em que pune, com prisão de um a quatro anos, o funcionário público que, no desempenho das funções ou do serviço, viole leis ou regulamentos e adquire intencionalmente para si ou para terceiros vantagem injusta de ativos ou traz para outros dano injusto. A penalidade é aumentada nos casos em que a vantagem ou o dano é de natureza severamente grave.

Na França, o Código Penal, no Título III, mais especificamente na Seção II, prevê as hipóteses de abus d'autorité cometidos contra particulares. O artigo 432-4 estipula que se o agente no exercício ou na ocasião do exercício de suas funções ou missão, ordenar ou executar arbitrariamente um ato atentatório à liberdade individual será punido com sete anos de prisão, além de cem mil euros relativos à pena de multa. Na Alemanha, o Código Penal tipifica no §339 a denominada “torsão do direito” (Rechtsbeugung), de modo que um juiz, outro funcionário público ou um árbitro podem ser considerados culpados se adiarem o direito de dirigir ou julgarem um caso a favor ou em detrimento de uma parte, estando, nessas hipóteses, sujeitos à pena privativa de liberdade entre um ano e cinco anos. O mesmo Código prevê, no §344, o crime de “perseguição de inocente” (Verfolgung Unschuldiger), destinado aos agentes responsáveis pela persecução penal que, de forma intencional ou consciente, submetem inocentes ao crivo de um processo criminal. Tal conduta pode levar a uma pena de até dez anos de prisão.

Voltando ao Brasil, sobreleva anotar que a nova legislação nada tem de ilegítima, ou que não encontre amparo no direito comparado, pelo menos para quem atua nos limites de suas competências funcionais. A lei protege os direitos fundamentais individuais previstos na Constituição Federal, tipificando condutas abusivas de agentes públicos dos Três Poderes.

Aliás, não existe preceito filosófico, jurídico ou moral que autorize um agente público solapar a Constituição com o intuito de fazer valer suas certezas ou realizar seus interesses pessoais ou políticos. Rui Barbosa, no final do Século XIX, já pregava: “com a lei, pela lei, dentro da lei; porque fora da lei não há salvação. Eu ouso dizer que este é o programa da República”. Nestes tempos em que o espírito de corpo(ração) parece se sobrepor às noções mais básicas do republicanismo, é preciso ter humildade institucional e considerar ipso facto que atos arbitrários serão realmente suscetíveis de punição. A nova lei, bate à porta, entrando em vigor já no início de 2020. A partir de então, abusa quem quer, cumpre a lei quem tem juízo.

*Artigo publicado originariamente no jornal Estado de São Paulo em 13.11.2019.

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