Consultor Tributário

Ives Gandra propõe questões desafiadoras sobre Direito Penal Tributário

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

13 de novembro de 2019, 8h00

A coluna de hoje assume formato inusitado por uma razão especialíssima. Trata-se de celebrar o Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU, há 44 anos suscitando debates sobre as mais candentes questões tributárias de cada momento, e disso deixando registro numa valiosa série de obras coletivas. Trata-se também de homenagear o seu criador e incansável animador, o Mestre Ives Gandra da Silva Martins, que há seis décadas encanta os mundos jurídico e das artes com o seu talento e a sua fidalguia.

Spacca
Reproduziremos, então, com exceção de uma – relativa à apropriação indébita tributária, tema que temos explorado com frequência neste e em outros espaços –, as questões submetidas a todos os autores e as respostas que lhes demos.

1. A teoria de que a carga tributária é desmedida, em todos os espaços geográficos e períodos históricos, porque destinada a fazer face não só à prestação de serviços públicos, mas também às benesses que se auto-outorgam os detentores do poder, desautoriza a utilização da sanção penal como instrumento fiscal para obrigar o sujeito passivo ao pagamento de tributos e multas?

O mau uso dos recursos arrecadados enseja contestações políticas contra os excessos da carga tributária e, no limite, movimentos de desobediência civil ou mesmo revoluções.

Mas, do ponto de vista puramente jurídico, não deslegitima o tributo ou o destitui das garantias legítimas de que o legislador o cercou. A criminalização da conduta do sujeito passivo que usa de meios fraudulentos para furtar-se ao pagamento de tributo devido é, a nosso sentir, uma dessas garantias legítimas, embora seja certo que os diferentes sistemas jurídicos adotam posições diversas a respeito: da total irrelevância criminal (aplicação apenas de multas) à criminalização de qualquer valor sonegado, passando pela adoção de pisos quantitativos para a configuração do crime.

Dito isso, observamos que o quesito alude ao uso da sanção penal para obrigar o sujeito passivo ao pagamento de tributos ou multas, o que é coisa muito diversa da punição da fraude e esbarra na vedação da prisão por dívida.

2. Sendo o excesso de exação crime previsto no artigo 316, parágrafos 1º e 2º do Código Penal, e a lesão ao patrimônio privado praticada por agente público suscetível de reparação pelo Estado, assegurado o direito de regresso em ação imprescritível, nos termos dos parágrafos 5º e 6º do artigo 37 da CF, como se justifica a inexistência de ações dessa natureza, diante da multiplicidade de ações fiscais e penais contra os contribuintes consideradas improcedentes pela Justiça?

O excesso de exação, na modalidade cobrança indevida, exige a consciência do funcionário de que o valor era indevido (dolo) ou a sua desídia em certificar-se da juridicidade do débito (culpa) – Código Penal, artigo 316, parágrafo 1º, primeira parte.

A imprevisibilidade e a pouca sistematicidade das decisões judiciais no Brasil – decorrente, entre outros fatores graves, do abandono da Dogmática Jurídica em favor de interpretações voluntaristas de feitio neoconstitucional – tornam muito difícil para o sujeito passivo vencedor da ação antiexacional provar:

i) que o fiscal e o procurador estavam ou deveriam estar certos ex ante do insucesso de sua pretensão; e

ii) que, ante o caráter vinculado de muitas de suas ações, poderiam ter deixado de cobrar (≠ inexigibilidade de conduta diversa).

Não se quer com isso condenar o crime à dessuetude, pois a lei está em vigor e tem boas razões para existir. Mas apenas alertar que a sua comprovação impõe um ônus argumentativo extremamente agravado ao autor da ação penal, para evitar que o excesso de exação se converta em crime de opinião (opinião jurídica aceitável, ainda que no fim repelida, sobre a procedência do débito).

Ao cabo, o tipo penal está fadado a colher apenas os casos extremos, e parece bom que seja assim. Se nem esses são punidos — e os há —, isso talvez se deva ao temor de retaliações, a inibir as representações, associados à leniência de uma parte do Ministério Público e do Judiciário para com os servidores públicos em geral, e os agentes fazendários em particular — a impedir as denúncias e as condenações.

Já a falta de ações civis de reparação é mais difícil de compreender, sobretudo diante da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos decorrentes de atos comissivos de seus agentes (CF, artigo 37, parágrafo 6º). Em tal quadro, basta ao sujeito passivo demonstrar o dano e o nexo de causalidade, que são evidentes em uma multiplicidade de situações:

● perda de contrato decorrente da negativa de certidão de regularidade em razão de débito depois anulado;

● custos de manutenção de carta de fiança ou seguro-garantia para a oposição de embargos à execução fiscal ao fim acolhidos;

● revogação de parcelamento em razão da inadimplência quanto a tributo depois declarado indevido;

● inviabilização econômica da empresa em virtude do bloqueio de bens (cautelar fiscal, penhora online, etc.) vinculado a tributo depois anulado.

Talvez a advocacia tributária deva fazer um mea culpa, passando a recomendar mais amiúde o ajuizamento de ações cíveis de indenização nessas e nas muitas outras situações absurdas com que quase diariamente se depara.

3. Sendo o lançamento um procedimento que, uma vez impugnado pelo contribuinte, só se torna definitivo quando exaurida a esfera administrativa, justifica-se que o Ministério Público inicie a ação penal, enquanto suspensa a exigibilidade do crédito tributário pela tramitação do processo administrativo (artigo 151 do CTN)? Poderá a autoridade lançadora ser responsabilizada penalmente, se julgada improcedente pela Administração ou pelo Judiciário a ação fiscal que deu causa à ação penal?

A Súmula Vinculante 24 do STF limita a sua própria aplicação aos incisos I a IV do artigo 1º da Lei 8.137/90. Não vemos razão para a exclusão do inciso V, pois – nos termos do caput – a falta ou a falha na emissão de nota fiscal será irrelevante para fins penais se a operação ou a prestação nela refletida não ensejar o dever de pagar tributo (isenção, imunidade, acúmulo de créditos pelo sujeito passivo em patamar superior ao débito gerado, etc.)[1].

Anote-se en passant, por não entrar no escopo do presente quesito, a manifesta inconstitucionalidade do parágrafo único, que criminaliza o direito de não fazer prova contra si mesmo, ao qual o CTN dá resposta muito mais efetiva por meio do arbitramento (artigo 148).

Voltando ao tema, anotamos ser completamente injustificável o oferecimento de denúncia por qualquer dos crimes do artigo 1º da Lei 8.137/90 (e especialmente por aqueles contemplados na súmula vinculante) antes do término do processo administrativo de revisão do lançamento tributário, caso impugnado pelo sujeito passivo.

Quanto à segunda pergunta, a responsabilização penal da autoridade lançadora depende unicamente de seus próprios atos, quando configuradores de excesso de exação, haja ou não ação penal contra o sujeito passivo (ver quesito 2 supra).

Por outro lado, não se podem imputar ao auditor fiscal as consequências da decisão precipitada do Ministério Público de oferecer denúncia pela sonegação de tributo ainda em revisão administrativa. Sanção disciplinar ou criminal, se houver, será aplicável apenas a este último.

Assim, a nossa resposta à segunda parte do quesito é negativa.

4. Caso reconhecida a prescrição do crédito tributário, poderá o contribuinte ser condenado na esfera penal, quando diferentes os prazos prescricionais (apropriação indébito, por exemplo)? Ou a prescrição da ação penal fica adstrita à prescrição tributária?

Para a configuração dos crimes do artigo 1º da Lei 8.137/90 é preciso haver tributo devido. No que toca à apropriação indébita, é preciso que haja tributo devido por terceiro e efetivamente descontado ou recebido pelo sujeito passivo.

Poder-se-á objetar com razão que, conquanto extinga o tributo, a prescrição não anula a conduta dolosa do agente de furtar-se ao seu pagamento quanto ainda era exigível — ou, mais tecnicamente, que não atinge nenhum dos três elementos do crime: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

Inclinamo-nos, porém, pela resposta negativa à primeira pergunta (e positiva à segunda), por duas ordens de considerações.

Primeiro porque não é razoável ou proporcional aplicar-se a sanção mais severa do ordenamento (a pena criminal) àquele que, embora maliciosamente, evita tributo que não tinha como pagar, ou que o Estado não se empenhou em cobrar. Vale lembrar que a prescrição só começa a correr após o lançamento (e a sua confirmação administrativa) ou a confissão da dívida, pressupondo sempre o pleno conhecimento do Fisco quanto ao seu crédito. Se este último é extinto por prescrição intercorrente dada a inexistência de bens a penhorar, tem-se absoluto descabimento da sanção penal, sob pena de grave ofensa à isonomia: o sonegador que paga o tributo goza da extinção da punibilidade, enquanto o que não tem meios para tanto submete-se ao encarceramento. Se a prescrição inicial ou intercorrente decorre de qualquer outro motivo, o que se constata é a desídia do credor, que por isso mesmo não merece ter os seus interesses (ou o seu desinteresse) tutelados por norma penal.

E segundo porque a manutenção da punibilidade equivaleria a uma forma de burlar a prescrição tributária, pois o pagamento continuaria a ser necessário para a elisão da pena. Não parece coerente que o débito que não pode mais ser exigido na esfera tributária continue a sê-lo no campo penal.

5. Sendo o contribuinte credor do Estado por valor superior ao valor de seu débito para com o erário, diante do inadimplemento oficial poderá ser penalmente condenado? Se afirmativa a resposta, tal comportamento não feriria o princípio da moralidade do artigo 37 da CF?

Andou mal o CTN ao relegar a compensação tributária ao status subalterno de mera faculdade dos entes políticos (artigo 170). O primado da propriedade privada, do não confisco, da isonomia e da moralidade inverte a equação: é o particular quem tem o direito constitucional de compensar os créditos de qualquer natureza que tem contra um Fisco com os tributos que se dispõe a lhe pagar.

A escolha entre compensar ou não é do sujeito passivo, e nunca do Estado. Isso já declarou o STF ao invalidar a chamada compensação de ofício: dedução pelo Poder Público, no momento de entregar ao particular o que reconhece lhe dever, dos créditos que unilateralmente afirma ter contra este (Pleno, ADI 4.357/DF, Relator para o acórdão Ministro Luiz Fux, DJe 25.09.2014).

Falta ainda reconhecer a imediatidade do direito do contribuinte à compensação, mesmo sem lei do ente político credor/devedor, e a amplitude desse direito, que alcança quaisquer créditos do sujeito passivo, e não somente aqueles de origem tributária.

Esse o tema de fundo do quesito, pois quem tem créditos contra o Estado deve poder utilizá-los para satisfazer os tributos que sonegou ou de que se apropriou indevidamente (para não falar daqueles destituídos de relevância penal), e com isso extinguir a punibilidade desses crimes, na forma da lei.

Em suma, a nossa resposta é: sendo líquidos e certos os créditos do réu contra o ente cujos tributos sonegou, e manifestando aquele a vontade de compensar, pode o juiz criminal, aplicando diretamente a Constituição, reconhecer-lhe esse direito nos moldes acima delineados, declarando extinta a punibilidade.

 


[1] Segue, para facilitar a compreensão, a íntegra do dispositivo:

“Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.”

Autores

  • é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!