Opinião

Se Luiz Flávio Gomes não acredita em nós, pode acreditar em Liebman!

Autor

  • Marcelo Cattoni

    é professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre e doutor em Direito pela UFMG pós-doutorado com bolsa da Capes em Teoria do Direito pela Universidade de Roma III e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D).

12 de novembro de 2019, 14h34

Spacca
Luiz Flávio Gomes, ex-juiz, professor e hoje deputado federal, notabilizou-se nos anos 90 em diante espalhando a “nova” de que o juiz boca da lei morreu e que no lugar dele nascia o juiz dos princípios. É isso, é isso, dizia. “Agora é a era  do juiz dos princípios”. Deu no que deu. Com tantos princípios — o pamprincipiologismo. Passados tantos anos, vê-se que ele não mudou. Depois de ajudar a fragilizar o direito com um neoconstitucionalismo frágil, agora ele também ataca cláusulas pétreas. E ataca o conceito de coisa julgada. Ou seja: pois não é que o “novo juiz dos princípios” ataca a constituição via parlamento?

No dia de hoje, ele escreveu o que de início poderia parecer ser uma resposta ao artigo que publicamos nesta segunda-feira (11/11). Mas em verdade Luiz Flávio Gomes não enfrenta nenhum dos argumentos que desenvolvemos. Usou nosso artigo de gancho. Sua estratégia foi a de não entrar no debate, mas de buscar dar a volta na discussão ao propor o que poderia ser considerado o próprio fim do instituto da coisa julgada enquanto tal. Grave. Muito grave.

Assim, se, para LFG, o problema é a Constituição dizer expressamente, em seu artigo 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, bastaria uma emenda modificar o sentido normativo de o que seja coisa julgada e, pronto, tudo estaria resolvido: ainda que na pendência de recursos para o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, por força dessa nova conceituação, a ser inventada por meio de uma emenda, tudo estaria resolvido.

E, assim, Luiz Flávio Gomes age como o personagem Humpty Dumpty do Direito brasileiro. Como o personagem, assim explicaria a sua proposta: “Sim, Alice. Se o problema é a coisa julgada, pum! Basta dizer que coisa julgada não é coisa julgada! E por quê? Porque eu quero! Dou às palavras o sentido que quero! E se alguém reclamar, eu faço com que essa coisa julgada que eu acabo de inventar não tenha efeito retroativo! E por quê? Porque eu quero!”

Ora, professor e deputado, coisa julgada não é simplesmente mais um mero valor, porque é a própria Constituição que lhe exige respeito. Coisa julgada é um conceito processual, pertencente ao direito público, com caráter constitucional, porque não opera, como diz Liebman, apenas em face de determinadas pessoas,

“mas em face de todos os que no âmbito do ordenamento jurídico tem institucionalmente o mister de estabelecer, de interpretar ou de aplicar a vontade do Estado, não se excluindo o próprio legislador, que não poderá por isso mesmo mudar a normação concreta da relação, a qual vem a ser estabelecida para sempre pela autoridade da coisa julgada”,

sem que isso implique uma ab-rogação, ainda que implícita, da norma constitucional de proteção dessa autoridade.

Que tal lermos um pouco mais de Enrico Tullio Liebman? Coisa julgada, a sua autoridade, é, segundo ele,

“a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato” (em Eficácia e Autoridade da Sentença).

Significa, em decorrência, no mínimo, que a decisão se tornou irrecorrível, não mais passível, portanto, de impugnação no interior do próprio processo em que a sentença foi proferida. E tanto a interpretação, quanto o desenvolvimento legislativo responsável do Direito devem respeitar a história institucional para que o próprio Direito não se torne, exatamente, mero joguinho de preferências e valores que não respeita o caráter normativo do Estado de Direito.

No senso comum, se diz que “tudo na vida, tudo no mundo, tem limites”. E tem mesmo: é o limite da linguagem. O que a proposta de Luiz Flávio Gomes quer é violar esse limite, o limite da linguagem do Direito e dos direitos. E dissemos isso não porque estejamos diante de algo como um direito natural ou porque estejamos advogando uma espécie de ontologia metafísica do jurídico. Não. Pelo contrário. É exatamente porque não há um grau zero de compreensão, que arbitrariamente esteja à vontade e à disposição de quem quer que seja, a linguagem, também a linguagem jurídica, impõe limites internos a si mesma, porque constitutivos dela. O que de forma alguma impede interpretação construtiva ou desenvolvimento consistente do Direito, mas no sentido do Direito. Não contra ele.

Assim é a linguagem jurídica. O mundo do Direito, tal como o conhecemos, é do tamanho da sua linguagem e da abertura de sentido que, todavia, ela mesma possibilita. E qualquer subversão de conceitos normativos basilares, historicamente construídos, pode levar à subversão do próprio sistema jurídico.

A arbitrariedade de pretender fazer com que coisa julgada não seja coisa julgada afeta tudo, todas as garantias, e isso a maioria do STF reconheceu no julgamento das ADCs sobre o sentido do artigo 283, do CPP.

E tudo isso não apenas afeta a garantia fundamental da presunção de inocência, tal como adotada pela Constituição. Afeta o próprio Estado de Direito, cujo sentido não pode estar ao arbítrio de ninguém, nem mesmo do poder reformador: para isso existem condições (d)e possibilidades inscritas no artigo 60 da Constituição, pois é ali, nas cláusulas pétreas e na proibição, sequer, de o Congresso deliberar “tendencialmente” contra elas, que estão os limites do mundo jurídico.

Portanto, não estamos aqui diante apenas de mais um arroubo neo (ou seria anti) constitucionalista. Mas de uma verdadeira fraude à Constituição. A arbitrariedade dessa proposta, apresentada por Luiz Flávio Gomes, subverte o instituto da coisa julgada e coloca em risco todo o edifício das garantias constitucionais, ao pretender subverter-lhe o sentido normativo.

Simples assim. O Direito não pode ser aquilo que o intérprete diz que é. Lewis Carol já nos ensinou isso, por meio de uma dura crítica aos sofistas!

Cláusula pétrea é cláusula pétrea. Nem mais, nem menos. Se está difícil de entender, pensem em Ulysses voltando à Itaca. Ele só se salva porque seus marinheiros obedeceram a uma cláusula pétrea. O Estado de Direito também só se salva se respeitarmos àquilo que não se pode alterar. Mesmo que desejemos, ardentemente, alterar a Constituição.

Um bom jurista suspende seus pré-juízos e obedece à Constituição. Até mesmo contra a sua vontade. Não há democracia sem coisa julgada. Não há democracia sem o respeito à cláusula pétrea.

Uma pergunta final: Será que o deputado LFG assina PEC para acabar com a cláusula pétrea do direito de propriedade, da herança e quejandos? Não? Ah, bom. Mas a cláusula pétrea da presunção da inocência pode?

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