Opinião

Congresso pode permitir prisão após 2ª instância via emenda constitucional

Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri mestre em Direito Penal pela USP cientista criminal e deputado federal eleito pelo PSB-SP.

12 de novembro de 2019, 6h02

Quando consigo com muito custo alguns minutinhos de resistência corporal, neste meu compulsório recesso leucêmico-hospitalar, tenho podido ler coisas muito interessantes como o artigo “PECs contra presunção da inocência são fraude à Constituição”, de Lenio Luiz Streck e Marcelo Cattoni (publicado na ConJur nesta segunda-feira [11/11]). O Supremo, como sabemos, por seis votos a cinco proibiu a prisão após 2º grau (em 7/11). O ministro Toffoli salientou que essa matéria poderia ser objeto de interpositio legislatoris.

O STF protagonizou vários momentos interpretativos em cima de um mesmo texto constitucional (artigo 5º, LVII, da Constituição), que diz: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Lendo-se o dispositivo citado e outros correlatos sabe-se o seguinte: toda prisão é definitiva após o trânsito em julgado. Antes da coisa julgada, toda prisão é provisória (cautelar). É uma aberração falar em execução definitiva da pena antes do trânsito em julgado final da sentença. Qualquer proposta neste sentido é totalmente inconstitucional (como sublinham os autores citados).

Prisão provisória (flagrante, temporária ou preventiva) jamais pode ser decretada ou mantida sem motivo concreto justificador da privação da liberdade (decisão fundamentada de juiz). Tem que ter motivo concreto comprovado e convincente (por exemplo: réu ameaçando testemunhas, obstruindo a Justiça, destruindo provas etc.).

Não importa o momento da persecução penal: durante a investigação, durante a instrução processual, antes do 2º grau, após 2º grau, não interessa. Havendo motivo concreto o juiz pode sempre mandar prender antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória. A prisão provisória fundamentada e justificada não ofende a presunção de inocência (jurisprudência pacífica nesse sentido).

Qual o problema do dispositivo constitucional acima citado (artigo 5º, LVII): nossa Constituição falou em trânsito em julgado, mas não definiu o que se entende por coisa julgada. Trata-se de uma lacuna constitucional.

Isso vem gerando uma enorme incerteza jurídica. E a verdade é que, apesar das polêmicas, a coisa julgada continua sem definição na nossa Carta Maior, embora já transcorridos 30 anos de sua promulgação.

Enquanto a Constituição nada diz, entende-se que coisa julgada acontece depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias recursais (com este conceito provisório temos trabalhado nessas três décadas pós-constituição).

De acordo com nossa opinião, desde que se respeite a garantia da presunção de inocência (que é intangível), não há nenhum impedimento para que o legislador derivado reformador conceitue o instituto da coisa julgada. Aliás, ao contrário, tudo recomenda que isso seja feito o mais pronto possível, diante da balbúrdia gerada pelas várias interpretações antagônicas do STF.

Está sendo discutida a possibilidade de disciplinar a prisão imediata por lei ordinária (como pretende a reforma Moro, por exemplo) ou por emenda constitucional. Mas é evidente que somente a segunda via confere segurança jurídica e paz social. Qualquer lei ordinária nesse sentido seria prontamente julgada inconstitucional pelo Supremo.

O conceito de coisa julgada só pode ser dado por emenda constitucional pelo seguinte: sempre que o legislador deliberar sobre a conceituação de um direito fundamental previsto na Constituição, a explicitação, por razões lógicas e normativas, só pode ser feita (exclusivamente) por norma de igual hierarquia nomológica (Cézar Peluso). Do contrário são infinitos os questionamentos.

Se a coisa julgada é uma garantia constitucional, uma verdadeira cláusula pétrea, que jamais pode ser abolida, parece muito evidente que a sede adequada para sua definição (ainda inexistente no texto Maior) seja a própria Constituição. Não sendo assim, irão continuar os questionamentos em virtude da dissintonia hierárquica nomológica.

Se a Constituição mencionou, mas não descreveu o que é coisa julgada, há uma lacuna nela que precisa ser aclarada.

De acordo com nossa modesta opinião, não há nenhum impedimento para se aclarar o conteúdo de um direito constitucional, sempre que respeitado seu núcleo essencial (seu núcleo duro) assim como os direitos correlatos envolvidos.

Esse é o entendimento do STF, que vem acolhendo de forma temperada a teoria alemã do limite dos limites (Schranken-Schranken), sob a premissa de que jamais se pode legislar sobre um direito fundamental menosprezando seu núcleo essencial (sua essência existencial).

Na ADC 29 (que discutia a Lei da Ficha Limpa), o tema do limite dos limites foi abordado de forma mais direta e específica:

“O princípio da proporcionalidade constitui um critério de aferição da constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais. Trata-se de um parâmetro de identificação dos denominados limites dos limites (Schranken-Schranken) aos direitos fundamentais; um postulado de proteção de um núcleo essencial do direito, cujo conteúdo o legislador não pode atingir. Assegura-se uma margem de ação ao legislador, cujos limites, porém, não podem ser ultrapassados. O princípio da proporcionalidade permite aferir se tais limites foram transgredidos [ou não] pelo legislador.”.

Jamais o legislador ordinário reformador poderia abolir a garantia da coisa julgada. Direito fundamental individual não pode ser abolido, por se tratar de cláusula pétrea (Constituição, artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV). Mas ele pode (e deve) ser explicado na própria Constituição, sobretudo quando entra em jogo o princípio da segurança jurídica. Sempre que um conceito se transforme num “significante vazio”, é de toda prudência que esse vazio seja completado, com uma nova norma complementar.

Cabe acrescentar, de outro lado, que enquanto não acontece o trânsito em julgado, o réu continua presumido inocente. Presunção iuris tantum (admite prova em sentido contrário), que desaparece quando fatos e provas evidenciam a culpabilidade (responsabilidade) do agente. Liga-se a coisa julgada com a presunção da inocência.

Presunção de inocência
Há quatro sistemas no mundo para derrubar a presunção de inocência (e gerar a coisa julgada):

(i) basta que o réu se declare culpado (esse é o sistema norte-americano do guilty or not guilty);

(ii) quando o réu se declara culpado e outras provas validadas pelo juiz evidenciam sua culpabilidade;

(iii) quando há decisão de segundo grau (a quase totalidade dos países ocidentais têm essa regra como padrão);

(iv) só depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias.

O sistema anglo-saxônico (da common law), com destaque para os Estados Unidos, segue o primeiro sistema (guilty or not guilty). Os países fora da tradição anglo-saxônica (civil law) que admitem o acordo penal entre as partes (entre autor do fato e Ministério Público – Itália, por exemplo, com o pentitismo) seguem o segundo sistema (declaração de culpa do réu + outras provas validadas pelo juiz = fim da presunção de inocência).

Quando se trata de processo conflitivo (sem acordo entre as partes), a quase totalidade dos países do mundo ocidental segue o que vem escrito nas Convenções Internacionais (no nosso caso, Convenção Americana de Direitos Humanos, que exige dois graus de jurisdição). Ou seja, seguem o terceiro sistema mencionado, tido e reconhecido como civilizado inclusive pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

E a Constituição brasileira? Segue o quarto sistema (talvez o único país do mundo que faça isso). Mas é uma anomalia exigir o esgotamento de todos os recursos para se executar a pena. Esse entendimento não concilia as garantias do réu com os direitos da sociedade (de uma Justiça eficaz).

Mais: fatos e provas somente são analisados por dois graus de jurisdição ou por dois órgãos distintos da Corte Suprema (quando se trata de competência originária). A análise dos fatos de das provas duas vezes derruba a presunção de inocência nos processos sem acordo penal.

Isso está contemplado expressamente na Convenção Americana de Direitos Humanos (repita-se). Ou seja: o terceiro sistema (amplamente majoritário no mundo todo) liga a presunção de inocência à coisa julgada após duplo grau de jurisdição.

Vejamos o texto a Convenção Americana:

Artigo 8. Garantias judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
e

h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.

A presunção de inocência vale até que se comprove a culpa do réu, em dois graus distintos de jurisdição.

Jurisprudência do STF
Até 2009 a jurisprudência do STF permitia a execução provisória da pena antes da coisa julgada final, ou seja, após decisão de segundo grau (isso era, evidentemente, inconstitucional).

De 2010 a 2016 passou a observar rigorosamente o sistema do esgotamento de todos os recursos (quatro graus de jurisdição, portanto, incluindo o STJ e o STF).

Em 2016 o Supremo voltou a permitir a prisão após 2º grau. Em 7 de novembro de 2019 retornou ao sistema do esgotamento integral de todos os recursos.

Claro que os réus com enriquecida assistência jurídica, com frequência prestada pela competente defensoria pública (de modo especial, a que atua nos tribunais), ingressam competentemente com todos os recursos cabíveis, em todas as quatro instâncias, seja para discutir com riqueza de detalhes os seus direitos, seja para paralelamente protelar ao máximo a execução da pena (Pimenta Neves demorou 11 anos para iniciar a execução da sua pena por homicídio; Luiz Estevão ingressou com mais de 30 recursos nos tribunais e por ai vai).

Os tribunais superiores, com certa complacência, aceitam essa anômala situação (de morosidade indefinida) geradora de sensação de impunidade, que possui mais a cara de um privilégio que de um direito. O caso do jogador Edmundo ficou vergonhosamente 10 anos no STJ. E prescreveu. Nem todos os réus contam com uma enriquecida assistência jurídica (pública ou privada).

A decisão do Supremo de fevereiro de 2016 (por iniciativa do ministro Teori Zavascki), que restabeleceu a prisão após 2º grau (HC 126.292), foi um ato de força contra a Constituição. Por emenda constitucional isso já poderia ter sido previsto há muito tempo.

A Constituição diz uma coisa (prisão provisória precisa de fundamento específico) e o STF passou a decidir outra (os tribunais de 2º grau podiam mandar executar a pena provisoriamente, conforme cada caso). Os réus e seus advogados, em geral, nunca aceitaram esse “ativismo” judicial. O embate tornou-se inevitável. A confusão e a insegurança se tornaram a regra. Só em 2019 houve alteração.

A insegurança jurídica se instalou definitivamente dentro do STF. O tratamento desigual conferido a dois réus na mesma situação é gerador de muita indignação.

Celso de Mello, na linha do que decidem também Marco Aurélio, Lewandowski e Gilmar Mendes, em º de julho de 2016 (HC 135.100), afirmou que o réu não pode cumprir imediatamente a pena depois do 2º grau, porque ele continua presumido inocente. Ele já tinha dito isso no julgamento de fevereiro de 2016 (foi um dos quatro votos contrários à maioria).

A nova posição do Supremo se deu no julgamento das ADCs 43 e 44 no HC 126.292 e no ARE 964.246, repercussão geral Tema 925.

O Direito requer, para ser observado e respeitado pela população, estabilidade e previsibilidade. Nosso Direito (Constituição, leis e entendimento dos juízes) está se tornando cada dia mais instável e imprevisível. A insegurança jurídica no Brasil já atingiu níveis estratosféricos. Daí a queda nos índices de credibilidades das cortes.

Isso constitui um dos motivos do nosso baixo crescimento econômico nas últimas três décadas (menos de 2%, ao ano). A insegurança jurídica afeta os investimentos. A receita fatal para a destruição ou fracasso dos países é composta de instabilidade econômica, política e jurídica.

Até quando vai perdurar essa desgastante situação? Enquanto o legislador ordinário reformador não disciplinar o conceito de coisa julgada, não teremos segurança jurídica nem paz social nesse assunto.

Proposta do ministro da Justiça Sergio Moro (reforma penal de 2019)
O ministro Moro insiste no entendimento controvertido e nebuloso (do ponto de vista formal) do STF de 2016. Trabalha com a ideia de execução provisória da pena após decisão do segundo grau. Ademais: prevê isso por meio de lei ordinária. São duas ideias muito problemáticas.

Execução provisória da pena, sem a fundamentação concreta da sua necessidade, é impossível. Por que trabalhar com a ideia da execução provisória se podemos implantar a pena definitiva após o segundo grau?

E tudo seria feito por meio de lei ordinária. Aí o problema se agrava. A proposta do ministro Moro, assim, não resolve a questão. Não se apaga incêndio jogando gasolina na fogueira. Temos que desenvolver uma alternativa, porque é correta a prisão após o segundo grau (aliás, o mundo todo admite isso como algo civilizado).

Necessitamos definir o que se entende por coisa julgada na Constituição (na linha do que vem sinalizando os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio etc.). Não podemos mais protelar o enfrentamento do tema.

Proposta do deputado Alex Manente – Cidadania-SP (PEC 410/2018)

Art. 1º O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 5º. ……………………………………………………………………..

…………………………………………………………………………………..

LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso. (NR)

A proposta do eminente deputado federal Alex Manente bem enfocou o problema, mas nada diz sobre a natureza, a partir daí, do recurso especial para o STJ e do recurso extraordinário para o STF.

A pergunta evidente que o interprete fará é a seguinte: em qual grau de recurso a sentença penal condenatória deve ser confirmada para se formar a coisa julgada?

Quem cuidou desse angustiante tema foi o ex-presidente do STF, Cezar Peluso, em 2011, dando aos recursos especial e extraordinário a natureza de ações rescisórias constitucionais. Esse é o caminho acertado.

Se o réu tiver seu recurso provido nos tribunais superiores, rescinde-se a coisa julgada e tudo isso sem prejuízo do habeas corpus que sempre pode ser manejado para impedir a execução de uma pena que tenha sido imposta de forma abusiva ou flagrantemente ilegal.

Casos escatológicos devem ser corrigidos imediatamente por habeas corpus. O erro judicial, às vezes acumulado em primeiro e segundo graus, não é tão incomum quanto parece.

Nossa proposta de Emenda Constitucional seria a seguinte:
Como sou favorável à prisão após 2º grau implantada por meio de emenda constitucional, que defina o que é coisa julgada, minha emenda seria a seguinte:

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Altera o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal para prever que ninguém será considerado culpado até que os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. Os recursos cabíveis a partir da coisa julgada contam com natureza de ação rescisória.

Art. 1º O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 5º. ……………………………………………………………………..

…………………………………………………………………………………..

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Dá-se o trânsito em julgado quando os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. No caso de competência originária do Supremo Tribunal Federal, deve-se assegurar a revisão dos fatos e das provas no mesmo tribunal (Turmas e Pleno). O recurso especial para a Superior Tribunal de Justiça bem como o extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, depois de formada a coisa julgada na esfera criminal, sem prejuízo da interposição de eventual habeas corpus para corrigir anomalias flagrantes contra o direito de ir e vir, possuem natureza de ação rescisória. (NR)

…………………………………………………………………………………..

Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação e é irretroativa, por se tratar de matéria processual com evidente caráter penal, posto que cuida da prisão definitiva do condenado.

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