Contas à Vista

Extingam-se os municípios, disse Guedes. O que dirão o Congresso e o STF?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de novembro de 2019, 8h00

Spacca
Semana passada foi realmente atípica. Na terça-feira foram editadas as três PECs do Guedes, que dão assunto para esta coluna de Direito Financeiro por mais de um ano; na quarta-feira ocorreu o leilão dos campos de petróleo da cessão onerosa do pré-sal, que se revelou um fiasco, pois foi a Petrobras velha de guerra quem adquiriu 90% do que antes já era dela, em uma operação financeira estranhíssima, que culminou em um processo de venda de bens públicos adquiridos com dinheiro público; e na quinta-feira o STF decidiu pelo apertadíssimo placar de 6×5 que a expressão constitucional trânsito em julgado significa mesmo trânsito em julgado, isto é, só ocorre quando não cabem mais recursos – o que deve ser respeitado, goste-se ou não do texto (art. 5º, LVII).

Embora o pacotaço do Guedes tenha sido precedido de vários balões de ensaio pela imprensa, comentados anteriormente (aqui e aqui), em seu bojo surgiu uma novidade federativa que destaco para análise, que é a incorporação compulsória de Municípios, que consta do art. 6º, da PEC do Pacto Federativo, que propõe incluir o art. 115 no ADCT, com a seguinte redação:

Art. 115. Os Municípios de até cinco mil habitantes deverão comprovar, até o dia 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira.

§1º A sustentabilidade financeira do Município é atestada mediante a comprovação de que o respectivo produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 da Constituição Federal corresponde a, no mínimo, dez por cento da sua receita.

§2º O Município que não comprovar sua sustentabilidade financeira deverá ser incorporado a algum dos Municípios limítrofes, a partir de 1º de janeiro de 2025.

§3º O Município com melhor índice de sustentabilidade financeira será o incorporador.

§4º Poderão ser incorporados até três Municípios por um único Município incorporador.

§5º Não se aplica à incorporação de que trata este artigo o disposto no § 4º do art. 18 da Constituição Federal.

§6º Para efeito de apuração da quantidade de habitantes de que trata o caput, serão considerados exclusivamente os dados do censo populacional do ano de 2020.

Informes da imprensa dão conta que 1.254 Municípios podem ser extintos caso esta norma seja aprovada, ou seja, praticamente um de cada quatro Municípios brasileiros seria incorporado pelo Município vizinho.

Os economistas, por força de sua profissão, têm os olhos voltados para a eficiência e a eficácia dos sistemas que gerenciam; mas os bacharéis em Direito possuem os olhos voltados para outros parâmetros, que dizem respeito ao ordenamento jurídico, iniciando sua análise pela Constituição.

Será constitucional tal proposta? É disto que trataremos a seguir.

Inicialmente observa-se que a norma proposta, em seu §5º, afasta a oitiva das populações locais, como se elas não existissem e não tivessem o direito de opinar sobre seus destinos, uma vez que sua opinião será solenemente ignorada em todo esse processo, pois afasta a exigência hoje vigente de consulta prévia, mediante plebiscito, para a incorporação de Municípios (art. 18, §4º, CF). Por si só esta norma já apontaria para violação do art. 14, CF, que indica o plebiscito como uma forma de exercício da soberania popular. Trata-se de uma medida de força, autoritária, que prevê incorporação compulsória, que certamente não condiz com nossa Constituição.

Por outro lado, existe uma equação financeira imprecisa, que faz com que os indicadores estejam descalibrados. O §1º da norma proposta sugere que sejam receitas próprias apenas aquelas que os entes federados arrecadem diretamente, o que é um erro palmar. No caso dos Municípios, sugere-se que sejam receitas próprias apenas aquelas decorrentes de IPTU e de ISS (art. 156, CF), descartando as receitas transferidas, sendo translúcido que estas também são receitas próprias, por força da equação financeira do federalismo cooperativo.

Nesse sentido, é parte da receita própria dos Municípios, dentre outras: (1º) a quota parte do FPM – Fundo de Participação dos Municípios 23,5% de tudo que é arrecadado pela União a título de IR e IPI (art. 159, I, “b” e “d”, CF); (2º) pelo menos 50% do que é arrecadado pela União a titulo de ITR em seu território (art. 158, II, CF); (3º) metade do que é arrecadado pelos Estados a título de IPVA (art. 158, III, CF); (4º) a quota-parte do ICMS, que corresponde a 25% de tudo que é arrecadado pelos Estados, a título desse imposto (art. 158, IV, CF); (5º) os Municípios recebem também 25% do Fundo do IPI-Exportação (art. 158, §3º, CF) e (6º) 25% do montante de CIDE destinado aos Estados (art. 159, §4º, CF). Isso tudo além de (7º) 60% dos royalties decorrentes da exploração de petróleo, (8º) 75% dos royalties decorrentes da exploração de recursos minerais e (9º) 65% dos royalties decorrentes da exploração de hidroenergia (art. 20, §1º, CF).

Logo, o pressuposto financeiro da norma proposta está simplesmente descalibrado para fins da análise pretendida, pois a composição da receita própria dos Municípios não decorre apenas de sua arrecadação tributária direta, mas por um conjunto solidário de transferências obrigatórias dentre a arrecadação de todos os entes federados. Não são esmolas que a União e os Estados concedem aos Municípios, mas direitos destes em decorrência de normas constitucionais. Desse modo, centrar a atenção em apenas uma parte da arrecadação municipal como pressuposto de que tais entes federados não podem se sustentar é desviar a atenção do principal problema, que está na qualidade de suas despesas.

Existem outros aspectos a serem considerados, que se encontram sob análise no STF, aguardando julgamento das ADIs 4.917, 4.916, 4.918, 5.038 e 4.920. Relembrando: esse conjunto de ADIs trata do rateio dos royalties do petróleo. A Ministra Cármen Lúcia em março de 2013 concedeu monocraticamente uma liminar suspendendo os efeitos da Lei 12.734/12 e até hoje não levou sua decisão ao Plenário da Corte, o que está previsto para ocorrer em abril de 2020. A petição inicial da ADI 4.917, interposta pelo Estado do Rio de Janeiro, teve por subscritor o então Procurador daquele Estado Luiz Roberto Barroso, hoje Ministro do STF. Nela foram apresentados dois argumentos, dentre outros: (1) que existiria uma espécie de direito adquirido dos entes federativos ao repasse de recursos da forma da legislação então revogada, e alegou também que (2) a nova norma estava infringindo o Princípio da Confiança Recíproca que deve presidir as relações entre os entes federados [1].

Pois bem, se for reconhecido o direito adquirido dos Estados naquele julgamento, constatar-se-á, de forma muito mais clara e central, sua infringência nesta situação, pois aqui os Municípios estarão sendo absorvidos, desaparecidos do mapa (tal qual se vê no filme Bacurau), sem nenhuma consulta aos seus habitantes. Serão incorporados à cidade vizinha, da qual se apartaram anos antes, cumprindo todos os requisitos constitucionais e legais então existentes. Se existe alguma espécie de direito adquirido para os entes públicos, o núcleo central do conceito estará aqui expressado.

O mesmo sentido se verifica na questão do Princípio da Confiança Legítima, que deve presidir as relações entre os entes federados, consoante decisão do Tribunal Constitucional alemão, já comentado em outra coluna. No caso, haverá mais um motivo para a desconfiança legítima entre os entes da Federação brasileira. Será uma verdadeira traição aos ideais federativos que presidem nosso pacto, já tão violado. O federalismo deve permitir que as pessoas tenham qualidade de vida em qualquer lugar do país em que decidam habitar. A extinção dos Municípios, tal qual proposto, acarretará a necessidade de deslocamento dos habitantes da periferia para o centro, toda vez que for necessário adotar qualquer procedimento referente aos serviços públicos, que certamente serão mais negligenciados pela novel sede municipal. Já imaginaram como isso ocorrerá nas distâncias amazônicas?

Em concreto, os habitantes desses Municípios desaparecidos se tornarão cidadãos de segunda categoria, engolfados pela nova sede municipal, da qual se apartaram anos atrás. Isso diz respeito a aspectos do narcisismo das pequenas diferenças, estudados por Freud, que envolvem identificação de um grupo social em comparação com outros, presumidamente diferentes, como se vê entre “comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, (ao) andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, que não chega a contribuir muito para o seu esclarecimento. Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade” (Sigmund Freud, Mal Estar na Civilização, 1930, p. 81). Quem não conhece uma piada acerca da comunidade vizinha, como ocorre, por exemplo, na caracterização que os paulistas fazem dos cariocas e vice-versa? Projete isso entre comunidades vizinhas, hoje autônomas, que serão obrigadas a viver em conjunto, como ocorreu no passado, e da qual se apartaram obedecendo as normas legais então vigentes. Seguramente as comunidades engolidas serão discriminadas, e seus habitantes se tornarão cidadãos de segunda categoria defronte aos seus novos dirigentes municipais e à população do Município predominante. Lastimável.

Ousando adentrar na economia, penso que, neste assunto, deve-se ler mais Amartya Sen e menos Friedrich Hayek. Menos financeirização e mais humanidade.

Não tratarei dos aspectos políticos dessa decisão, pois refogem à análise jurídica. Deixo-os aos critérios de conveniência e oportunidade do Congresso, a quem cabe decidir a matéria.

Enfim, tentando tornar curta uma longa história, incorporação de Municípios só pode ocorrer na forma do art. 18, §4º, da atual Carta Republicana. A proposta encaminhada, neste aspecto, viola a clausula pétrea do federalismo, inscrita no art. 60, §4º, I da Constituição.

Sugiro não aguardar o ano de 2023, indicado na norma proposta, para discutir esse assunto no STF, caso passe no Congresso tal qual proposto.


[1] Ao raro leitor que se interessar sobre a matéria sugiro a leitura do capítulo 4 de meu livro Royalties do Petróleo, Minério e Energia – Aspectos Constitucionais, Financeiros e Tributários (https://www.saraiva.com.br/royalties-do-petroleo-minerio-e-energia-aspectos-constitucionais-financeiros-e-tributarios-7912731/p).

Autores

  • Brave

    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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