Opinião

Colaboração premiada e improbidade: o tema 1.043 de repercussão geral

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11 de novembro de 2019, 7h49

O Supremo Tribunal Federal tem encontro marcado com tema de absoluto relevo. É que já se encontra incluída no calendário de julgamento da Corte o ARE 1.175.650, afetado como paradigma do Tema 1.043 de repercussão geral, que tem como objeto a “utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, art. 129, § 1º).

A bem da clareza, cuidou-se, no caso concreto, de réu em ação de improbidade que, não sendo leniente, impugnou a utilização de colaborações premiadas como embasamento para dedução da pretensão punitiva, sustentando, para isso, que a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), ao vedar a transação (artigo 17, § 1º), impediria tanto o não ajuizamento de improbidade contra réus colaboradores (a famigerada pretensão de natureza meramente declaratória), como a utilização de suas colaborações como base para apenação de corréus não colaboradores.

Dito de outro modo, houve ação de improbidade ajuizada contra diferentes réus, alguns deles colaboradores (e contra esses somente foi manejado pedido declaratório, sem cominação de sanção), outros não. O fundamento principal da ação foi exatamente o conteúdo das colaborações, que permitiu a construção da narrativa e o embasamento probatório.

Uma vez recebida a ação, um dos réus não colaboradores interpôs agravo de instrumento aduzindo que (i) a LIA veda expressamente a colaboração premiada, espécie do gênero transação, em seu âmbito; (ii) o Ministério Público não estaria autorizado pela Constituição a negociar o patrimônio público; e (iii) no caso em questão, o colaborador premiado não ofereceu qualquer contrapartida econômico-financeira, o que evidenciaria a incompatibilidade do instituto com a ação de improbidade.

Inobstante a interposição do agravo, o tribunal em segundo grau manteve a decisão de primeira instância, desafiando recurso extraordinário que, inadmitido, ensejou o agravo afetado como paradigma.

Sorteado relator no STF, o Ministro Alexandre de Moraes, ao examinar a repercussão geral, ressaltou a pertinência da questão ao afirmar ser “superlativa a relevância dos temas discutidos”, eis que em jogo “(I) a potencial ofensa ao princípio da legalidade, por se admitir a colaboração premiada na ação de improbidade sem expressa autorização legal e com vedação normativa à realização de transação pela LIA (CF, art. 5º, II); (II) os limites à disponibilidade de bens e interesses públicos, face a imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º); (III) os efeitos de eventual colaboração premiada realizada pelo Ministério Público em relação a demais ações de improbidade movidas pelos mesmos fatos, em virtude da existência de legitimidade concorrente (CF, art. 129, §1º).”

Embora mereça registro voto contrário por parte do Ministro Marco Aurélio, suscitando incidência da Súmula 735 do Tribunal e, por conseguinte, imprestabilidade do recurso para funcionar como paradigma, a repercussão geral acabou reconhecida.

Com o recurso pendente de julgamento, a União atravessou petição requerendo ingresso como amicus curiae, creditando a pertinência de sua intervenção ao fato de, além de ser legitimada para o ajuizamento de ações de improbidade, estar “envolvida em inúmeras ações que visam a obter o ressarcimento do erário por danos que lhes (sic) foram causados em virtude de improbidade administrativa.

No mérito de sua manifestação, propriamente dito, a União externou razões muito bem fundamentadas em favor da conciliação do instrumento da colaboração com as ações de improbidade, pontuando, por exemplo, a aplicabilidade do Código de Processo Civil àquele procedimento especial, mais especificamente o artigo 3º, §§ 2º e 3º, que insta o Estado a estimular e a conciliar, sempre que possível.

Indo além, assentou a União que a previsão da colaboração premiada na Lei n. 12.830/2013 inaugurou a possibilidade de transação em sede criminal, de modo que seria um contrassenso negar essa possibilidade na seara sancionadora.

Outro argumento interessante apontado pela União foi o de que o paradigma da indisponibilidade do interesse público tem sofrido uma releitura no sentido de que a transação, não raramente, importa forma precisamente de se atingir o interesse público de forma mais célere e eficaz. Em verdade, essa indisponibilidade, mesmo em idos tempos, nunca foi absoluta, como denuncia o artigo 5º, § 3º, da Lei n. 7.347/1985, a admitir desistência de ação civil pública pelo autor e, fundamentadamente, o não prosseguimento nela por parte do Ministério Público.

Finalmente, concluiu a União, em linha com o que já defendemos mais de uma vez neste espaço, que o artigo 36, § 4º, da Lei n. 13.140/2015, implicou revogação tácita do artigo 17, § 1º, da LIA.

Em que pesem a justificável intervenção da União e os bem ponderados argumentos que alinhavou, o Ministro relator indeferiu seu ingresso; a manifestação, porém, seja como for, integra os autos e, esperamos, possa fomentar os debates, mercê, como dito, de sua sólida fundamentação.

De nossa parte, só podemos repisar o que já temos repetido à exaustão: a atual conjuntura ressignificou por completo a ideia de indisponibilidade. Parcerias público-privadas são remetidas à seara arbitral; sanções criminais podem ser negociadas; situações de insegurança no âmbito administrativo autorizam termo de compromisso com os interessados. A própria ação civil pública, cuja desfiguração para veiculação de pretensão sancionatória por ato de improbidade acabou lamentavelmente sendo chancelada, já aceita, previamente ao seu aviamento, a ultimação de termo de ajustamento de conduta. Ou seja, não se pode interpretar todo um microssistema à luz de um singelo dispositivo, em larga medida já ultrapassado; o certo, bem a propósito, é exatamente o oposto.

O PL n. 10.887/2018, no mesmo sentido, já busca pôr termo à discussão, não somente eliminando a vedação (a nosso ver já eliminada) constante do artigo 17, § 1º, da LIA, mas passando a prever expressamente a sua possibilidade. Aliás, das audiências públicas de que pudemos participar, em que se discutiu a proposição legislativa, em nenhum momento se colocou em dúvida a referida alteração; bem ao contrário, foi ela enaltecida, ainda que a possibilidade de transação em geral já haja sido tratada como lugar comum.

Outro ponto merecedor de atenção, sob o prisma consequencialista, deve sensibilizar o STF. É que já são muitas as colaborações premiadas celebradas e que lograram contribuir decisivamente para persecuções as mais variadas. Se, por acaso, se reputar ilícita por derivação a prova obtida a partir de colaboração premiada, abre-se brecha para que inúmeros processos tendo como objeto ações de improbidade passem a sofrer com a ameaça de nulidade.

Especificamente sobre o argumento suscitado no caso concreto, no sentido de que o réu colaborador não teria apresentado contrapartida financeira, o que ilustraria a imprestabilidade da colaboração, a alegação não nos seduz. Em primeiro lugar, a homologação judicial da colaboração não toma em consideração a aferição de sua conveniência ou a dosimetria acordada sobre eventual sanção. A chancela judicial é formal, sob o prisma da legalidade. Além disso, a colaboração não prejudica a dedução de pretensão, contra o colaborador, de pretensão ressarcitória, quando cabível. Por último, nem toda conduta ilícita pressupõe dano que lhe seja imputável; é dizer, determinado agente pode cometer ato de improbidade de que não decorra dano ao erário (e, por isso, não atraia ressarcimento), mas sua colaboração pode servir exatamente como meio para que se busque o ressarcimento perante aqueles que efetivamente impingiram desfalque ao patrimônio público.

Sintetizando nossa posição, está mais do que sedimentada a visão de que, mais nefasta que a idolatria a ritos, formalidades e leituras obsoletas de determinados princípios, é a convivência com as consequências de um problema cuja urgência para solução contrasta com o tempo judicial. Conceitos não devem torturar os fatos. Se novos fatos se põem, se estratégias mais efetivas se comprovam mais consentâneas com a realização do interesse público, é o dogma da indisponibilidade que passa a merecer revisita, não o contrário. E, felizmente, assim tem sido, de modo geral.

Seguramente, ajustes hão de ser feitos, como ilustra nosso texto da semana passada, pela necessária adaptação procedimental em ação de improbidade quando conviverem réus colaboradores e não colaboradores, mas é dado de realidade, nos parece, que esse é um caminho sem volta.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

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    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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