Opinião

A reforma tributária que o Brasil precisa - parte III

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10 de novembro de 2019, 6h03

Na segunda parte desta série sobre a reforma tributária, apresentamos um modelo de tributação do consumo alternativo àqueles previstos nas PECs 45 (da Câmara) e 110 (do Senado), que, por violarem a isonomia, a capacidade contributiva e o pacto federativo, não parecem adequados.

Como os problemas do sistema tributário vigentes não se resumem à tributação do consumo, cumpre agora responder à seguinte questão: que outros problemas a reforma tributária deve enfrentar? Vejamos.

Eliminação do acúmulo de créditos de ICMS nas exportações
A EC 42/03 eliminou o ICMS da exportação de bens e serviços e assegurou crédito do imposto cobrado na aquisição de itens empregados em seu processo produtivo. Em contrapartida, atribuiu-se à União o dever de compensar os estados e o Distrito Federal pelas perdas arrecadatórias daí decorrentes (ADCT, artigo 91). Entretanto, os repasses federais a esse título sempre foram insuficientes e, em 2019, sequer houve pagamento. Isso tem levado as autoridades estaduais a simplesmente não devolverem os créditos a que os exportadores fazem jus. O acúmulo de saldos credores daí resultante tem prejudicado empresas dos mais variados setores (automotivo, metais não ferrosos, papel e celulose, automação etc.).

Ainda que o ICMS seja substituído pelo IBS estadual, devem ser criados mecanismos para eliminar os saldos acumulados. Uma alternativa seria desonerar a cadeia circulatória prévia à exportação e responsabilizar a União por ressarcir os eventuais créditos que não possam ser compensados com débitos do próprio ICMS, devidamente atualizados. Afinal, é da União o dever de estimular exportações e obter balança comercial favorável (Constituição, artigo 22, VIII). Ademais, tal medida aumentaria a confiança e reduziria disputas entre os estados e a União quanto à defasagem da compensação financeira que não lhes tem sido paga a tempo e modo.

Limites ao instituto da substituição tributária “para frente” (fato gerador presumido)
A substituição tributária “para frente” é meio pelo qual se concentra a tributação no início de determinada cadeia produtiva, como método de facilitação da arrecadação e fiscalização do tributo. Além disso, presta-se a evitar sonegação. Como isso pressupõe bases de cálculo presumidas pelo Estado, garante-se ao contribuinte a restituição do excesso no caso de operações realizadas em dimensão menor que a prevista, para protegê-lo de investidas fiscais ilegítimas (Constituição, artigo 150, parágrafo 7º, e Recurso Extraordinário 593.849). Porém, as Fazendas Públicas têm exigido recolhimento complementar, caso o valor da operação final exceda o presumido. Além de subverter a lógica interna desse sistema, tais exigências tornam a substituição tributária algo similar ao regime de estimativa.

Assim, para acabar com as disputas, justifica-se limitar o instituto. Deve-se explicitar que há direito à restituição do excesso em favor do contribuinte e que são proibidas exigências complementares pelo Fisco, pois o regime é instituído no seu próprio interesse, daí competir-lhe o ônus de arcar com prejuízos resultantes de pautas mal calculadas. Ademais, a substituição tributária deve restringir-se aos setores indicados em lei complementar, para haver uniformidade a nível nacional.

Proibição à incidência de tributo sobre tributo
Para aumentar a arrecadação, tem-se exigido a inclusão de tributo em sua própria base de cálculo ou nas bases de outros tributos. Essa ampliação indireta e artificial da base imponível acentua a complexidade e falta de transparência do sistema tributário.

Com o objetivo de assegurar ao cidadão o direito de saber a real dimensão da carga tributária incidente sobre os produtos e serviços (Lei 12.741/12), deve ser inserida no texto constitucional proibição a que um tributo seja incluído na sua própria base ou nas de outros tributos com mesmo suporte fático ou jurídico, como, por exemplo, se verifica na importação (II, IPI, ICMS, PIS, Cofins). Essa alteração está conforme aos princípios da publicidade e razoabilidade, permitindo o controle social quanto à carga tributária efetiva.

Exigência de motivação para majoração de tributos pelo Poder Executivo
A manifestação prévia do Legislativo quanto à criação ou aumento de tributos é direito fundamental do cidadão-contribuinte (Constituição, artigos 5º, II, e 150, I). Entretanto, alguns gravames são extrafiscais, podendo ser utilizados para induzir o particular a comportamentos desejados pelo Estado. Nesses casos, a Constituição admite que o tributo seja graduado pelo Executivo dentro de balizas pré-fixadas e para atender a objetivos indicados em lei, o que pressupõe fundamentação específica quanto aos motivos que autorizam a adoção da medida.

Contudo, a União tem manipulado o II, IE, IPI e IOF sem justificativa ou com base em razões genéricas que poderiam legitimar qualquer decisão. Isso tem permitido ao Executivo variar alíquotas a seu talante, sem obedecer às condicionantes legais e invadindo a competência normativa reservada ao Congresso Nacional, além de dificultar o controle judicial quanto à adequação entre os respectivos atos (meios) e os fins que autorizam sua prática. Desse modo, em prestígio à segurança jurídica e à harmonia e independência entre os Poderes, deve ser obrigatória a motivação dos atos em questão, para que se evidencie a compatibilidade entre a alteração praticada e sua razão subjacente, sob pena de nulidade.

Limites à instituição de contribuições
Contribuições não são impostos. Estes últimos são tributos desvinculados de qualquer atividade estatal relacionada ao contribuinte (CTN, artigo 16). Daí, inclusive, terem os impostos sido distribuídos entre os entes federativos a título exclusivo, como fontes próprias para custeio de suas despesas gerais. Já as contribuições são tributos finalísticos e, como tal, vinculados a ações estatais voltadas a objetivos específicos, relativos a determinados grupos econômicos, profissionais e/ou sociais constitucionalmente indicados. Disso resulta que somente os integrantes desses segmentos possam ser seus sujeitos passivos, impondo-se, ainda, que haja proporcionalidade entre o quantum cobrado e o custo da atuação estatal que justifique a exigência, proibida sua utilização para outros fins[1]-[2].

Não obstante, o fato de que as contribuições respondem por 58,73% da arrecadação federal[3] (12,95% do PIBl[4]) evidencia que as contribuições têm sido utilizadas como se impostos fossem. A prova cabal disso é que, nos debates quanto à reforma tributária, o PIS e Cofins vêm sendo considerados impostos de fato por: (a) incidirem sobre as mesmas bases do IPI, ICMS e ISS; (b) serem exigidos de todas as empresas (e não de um grupo); e (c) terem suas arrecadações destinadas ao custeio de despesas gerais da União. Dentre outros exemplos, também há o Fust, que teve 98,8% de sua arrecadação desviada, segundo dados do Tribunal de Contas da União[5].

Diante disso, é necessário estabelecer mecanismos que contenham o uso indiscriminado de contribuições pela União e que impeçam que elas venham a figurar como adicionais do IBS que se pretende criar. Para tanto, os contornos gerais das contribuições devem ser melhor explicitados na Constituição, em especial a destinação obrigatória dos recursos arrecadados a órgão, fundo ou despesas específicas, com a definição de sanções ao descumprimento dessa regra. Além disso, deve tornar-se expresso o princípio da referibilidade, proibindo-se contribuições cujos sujeitos passivos não pertençam ao grupo interessado na atividade estatal financiada, bem como cobranças que não sejam proporcionais aos respectivos custos.

Limites à instituição de taxas
As taxas são tributos vinculados e finalísticos, de modo que sua cobrança só é admitida se houver atividade estatal diretamente relacionada ao contribuinte. Deve, ainda, haver equivalência razoável entre o respectivo valor a o custo estimado daquela atividade, proibida a utilização para despesas outras.

Entretanto, tais regras não têm sido observadas. No âmbito federal, auditoria do TCU revela que o Fistel arrecadou “desde 1997… o montante de R$ 85,4 bilhões, mas apenas 5% do valor aplicado foram destinados às atividades originalmente previstas”[6]. No estado do Rio de Janeiro, a Taxa Fiscalização do Petróleo e Gás (TFPG) arrecada 10 vezes o valor das despesas do respectivo órgão[7]. E, em São Paulo, a Taxa Judiciária tem um terço de sua arrecadação retido pela Secretaria de Fazenda, para custear despesas alheias à Justiça paulista[8].

Tais problemas mostram que as taxas também precisam ter seus traços melhor explicitados na Constituição para evitar sua utilização de forma desproporcional e com desvio de finalidade.

Proibição às medidas provisórias em matéria tributária
Medidas provisórias são mecanismos excepcionais cuja adoção requer a ocorrência de fato (caso) que se destaque dos eventos corriqueiros (relevância), exigindo pronta atuação legislativa, de modo que não se possa aguardar sequer o processo legislativo em regime de urgência.

Ao arrepio do artigo 62 da Constituição, no entanto, o instituto tem sido manejado pela União para instituir e majorar tributos, com base em simples decisões da Presidência quanto a tratar esta ou aquela matéria como prioritária. De um lado, nunca houve fato (caso) que justificasse medida provisória em matéria fiscal. De outro, 84,6% das leis tributárias federais existentes até dezembro de 2014 decorreram desse veículo normativo, enquanto apenas 15% resultaram de projetos de lei[9].Diante desse mau uso sistemático, deve ser proibida medida provisória em matéria tributária.

Extinção das competências tributárias residuais da União
Além do IBS e do Imposto Seletivo, tanto a PEC 45/2019 quanto a PEC 110/2019 implicam a manutenção dos atuais ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins por determinado período. Diante desse grande número de tributos, não há sentido na manutenção das competências tributárias residuais da União, até porque os novos gravames teriam base ampla, podendo o produto de sua arrecadação ser parcialmente destinado à seguridade. De outro lado, como PIS e Cofins seriam extintos, nada impediria que a União recriasse essas contribuições com base no artigo 195, parágrafo 4º, da Constituição.

Enfim, para evitar a criação de novos impostos e contribuições como desdobramento das reformas promovidas, frustrando seus propósitos de simplificação, redução da onerosidade e aumento da transparência fiscal, devem ser eliminadas as competências residuais da União.

Uniformização das normas sobre processo administrativo tributário
O Brasil é composto pela União, 27 estados e por volta de 5.570 municípios, que possuem regramento próprio para processamento de defesas e recursos administrativos em matéria fiscal. Essa quantidade de normas procedimentais gera insegurança e custos excessivos, especialmente para empresas que operam em diferentes locais e têm que se adaptar aos ritos aplicáveis e cada um deles. Assim, convém uniformizar procedimentos mediante lei nacional. Nesta, deverão ser introduzidas garantias de imparcialidade no controle da atividade dos agentes fiscais, como paridade dos órgãos de julgamento, alternância de juízes nas posições de desempate etc. (Constituição, artigo 37).

Conclusão
São essas, em síntese, as principais questões a serem enfrentadas em sede de reforma ampla do sistema tributário. Todos os setores da atividade econômica e a comunidade jurídica devem estar atentos a cada particularidade dos projetos discutidos, para que o país não incorra no erro de considerar que “qualquer reforma é bem-vinda”. Mudanças erráticas no sistema atual podem ser desastrosas para a economia e levar anos para serem revertidas.

O que se pretende é suscitar debate quanto às sugestões aqui contidas.

[1] Cf. SOUZA, Hamilton Dias de. Contribuições Especiais. In: Curso de Direito Tributário. Coord. Ives Gandra da Silva Martins. Ed. Saraiva. p. 688.

[2] Cf. CARRAZA. Roque Antonio. Curso de Direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 679.

[3] Cf. RFB. Análise da arrecadação das receitas federais, dezembro/2017. P. 40. Disponível em: http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2017/dezembro2017/analise-mensal-dez-2017.pdf.

[4] Cf. RFB. Carga tributária no Brasil, 2017 (dezembro/2018). Disponível em: http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2017.pdf/view

[5] Acordão TCU 008.293/2015-5.

[6] Acórdãos TCU 2127/2017 e 749/2017 (2320/2015 e 28/2016).

[7] Cf. MAZZA, Lessa & MAIA, Marcos. Supremo pode limitar taxa de exploração do petróleo no Rio de Janeiro. In: ConJur, 5/8/2019.

[8] Segundo a Lei 16.788/18, apenas 70% das taxas judiciárias são entregues ao TJ-SP, permanecendo o remanescente sob poder da Secretaria de Fazenda. Na prática, há confissões da Secretaria de Fazenda e do TJ-SP no sentido de que tal excedente é empregado para despesas gerais do tesouro estadual.

[9] Cf. SANTOS, Bruno Carazza. Interesses econômicos, representação política e produção legislativa no Brasil sob a ótica do financiamento de campanhas eleitorais (tese de doutorado). Belo Horizonte: UFMG, 2016. p. 80.

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    é sócio-fundador do Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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    é professor de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo; doutor em Direito Tributário pela Universidade de Munique; advogado e parecerista.

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    é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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