Crime e castigo

A história do Direito Penal não é a história da punição

Autores

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

  • Alexandre Satyro

    é advogado graduado pela UnB (Universidade de Brasília) e mestrando em direito.

10 de novembro de 2019, 14h00

A história do Direito Penal não é a história da punição. Para punir somente era necessário possuir a força, e a construção do direito penal se dá impregnada da ideia de controlar o exercício dessa força. A contrario sensu, a história do direito penal é a história do monopólio da punição pelo Estado-Juiz.

Spacca
É necessário punir, mas a punição não pode ser entregue à vítima ou à sociedade difusamente considerada.

Ao se construir historicamente o seu papel no exercício da punição, o Estado se obriga ao exercício da proporcionalidade. Punição moderna é punição estatal e punição proporcional.

Acaso não fosse assim, a consequência dessa inadequação social do Direito Penal seria a absoluta perda de sua eficácia jurídica.

Se demasiada a punição, o Estado-Juiz se torna ilegítimo tirano. Se muito branda, ilegítimo negligente e perde força. Ou seja, ao mesmo tempo que limita a pretensão punitiva estatal, o Direito Penal também impede a formação de meios de autocomposição penal.

A história do Processo Penal também diverge da sua percepção pelo senso comum teórico dos juristas. Ela não é uma mera evolução epistemológica, cuja aspiração última seria a mais efetiva aferição da “verdade”.

A evolução histórica desta Cenerentola, na verdade, traz consigo: o desenvolvimento de bases epistemológicas socialmente aceitas — e, portanto, adequadas; e a delimitação de meios considerados legítimos para o fim probatório.

Adiantaria o emprego do mais refinado método científico em um julgamento por ordália, cumprindo os “juízos de Deus”?

O Processo Penal depende da confiança da sociedade na capacidade do Estado-Juiz. O que não pode jamais se desfigurar na confiança no “senhor juiz”! Justiça personalista não é exercício de jurisdição moderna, ainda que o intento do magistrado seja bom! Não é de hoje a expressão “Deus me proteja da bondade dos bons, porque na maldade dos maus eu mesmo me protejo”!

De toda sorte, uma das bases que se consolidou na evolução do processo é a necessidade de se garantir a possibilidade de falseabilidade de provas e de evidências. Isto é, a possibilidade da contradita.

“Nulla probatio sine defensione”, já diria Luigi Ferrajoli. Da mesma forma, tal garantia encontra-se devidamente positivada no art. 5º, LV da CF.

Como um todo, a prestação jurisdicional não é genérica, porém adatrita às idiossincrasias do caso concreto. Lex generalis, sententia specialis. O princípio da individualização da pena está positivado no art. 5º, XLVI da CF, um corolário da proporcionalidade da punição, sem o qual não se mantém hígido o sistema.

Pode-se ir além. Se a legitimidade da aplicação da pena, averiguada por meio do processo, é vista como finalidade lógica precípua da “pretensão punitiva”, a materialidade da pena em si não pode ser preterida. Neste mesmo contexto, está a fixação da pena. Mesma disposição e mesma racionalização utilizada quando da formulação do enquadramento típico da conduta, deve ser observado. Dosimetria é parte integrante e indissociável do mérito da ação.

Nos casos de condenação, a fixação do quantum da pena — bem como de seu regime de cumprimento —, na sistemática processual penal, prescinde de manifestação das partes, tanto do acusador, quanto do defensor. Seu momento processual é na prolação da sentença, na qual o Juiz, ungido pela liberalidade do artigo 155 do CPP, deverá definir o destino do réu. Ressalte-se, ainda, que a sentença é decisão terminativa, isto é, resolve o mérito da ação, encerrando o processo. Ademais, é atípica a manifestação das partes acerca da fixação de pena, nem mesmo em sede de alegações finais, que precedem a sentença.

Em suma, a inexistência de contraditório, prévio ou diferido, em relação à fixação da pena não é exceção, mas regra no processo penal, inexistindo momento processual típico em que as partes se manifestem.

Não havendo discussão processual acerca da dosimetria nas alegações finais, como estabelecer a dialeticidade constitucionalmente necessária?

Na prática, hoje a discussão se dá em via recursal. E, em geral, em recursos destinados a outro grau de jurisdição. A via dos embargos de declaração é precária, de modo que as partes acabam debatendo a dosimetria apenas em sede de apelação, o que também vale para os embargos infringentes, quando cabíveis.

Deste modo, não existe contraditório em primeiro grau – via de regra – sobre a fixação da pena.

Assim sendo, o contraditório acaba dependendo da mera liberalidade das partes – so incluírem a argumentação nas alegações finais -, ou apenas é plenamente exercido em segundo grau de jurisdição, o que se revela substancialmente problemático.

Primeiramente, é de se notar que a sistemática atual acaba por promover um protagonismo quiçá indesejável do juiz, recaindo-lhe o ônus de decidir ex officio parte essencial do mérito do processo. Isto poderia trazer óbices ao sistema acusatório consagrado pela Constituição de 1988, preterindo, sem justificativa razoável, a colaboração das partes para a decisão judicial.

Não é no todo aceitável o argumento teorético segundo o qual o juiz conhece o direito e possui plena e total cognição dos autos — e do mundo – tornando desnecessário o posicionamento das partes.

Em segundo lugar, tal sistemática encontra óbices na própria estrutura judiciária concebida pela Constituição. Isto é, em geral, os Tribunais são estruturados como cortes de apelação, incumbidos de revisar as decisões dos juízes.

A devolutividade dos recursos — neste caso o de Apelação, que permite uma cognição extensa — pressupõe que a matéria devolvida tenha sido devidamente exaurida na instância a quo.

Seria substancialmente difícil tratar a matéria como devidamente apreciada, sem que novamente recaía sobre o juiz de primeiro grau um ônus de cognição ao apreciar a matéria sem manifestação das partes. 
E não se deve esquecer que a apreciação da matéria pelos Tribunais também favorece o manejo excessivo de recursos, que por vezes sobrecarregam as instâncias ad quem.

Além do mais, tal sistemática seria absolutamente vedada caso se aplicasse subsidiariamente, ao menos nesta questão, o artigo 10º do CPC, que veda, ainda que de ofício, que o juiz decida sobre matéria com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar.

Há quem entenda, por isso, que no modelo atualmente adotado, não há benefícios, somente prejuízos: i) perdem as partes, tanto o réu quanto a própria acusação, que têm suas pretensões preteridas da sentença; ii) perde o juiz, que arca com o ônus de um protagonismo desnecessário, incumbindo-lhe maior responsabilidade cognitiva e risco de error in judicando; e iii) prejudicam-se o resultado útil e a razoável duração do processo, haja vista o fomento a maior manejo de recursos e a maior dificuldade de apreciação da matéria pelos Tribunais.

Outros entendem que a questão não suscita maiores questionamentos na medida em que cabe ao juiz fixar a pena e argumentação sobre a sua relação com os fatos, e, também, porque as partes podem, a todo tempo, discutir e debater acerca da dosimetria.

Inúmeras seriam as formas de se garantir o contraditório pleno à matéria de fixação da pena ainda na instância originária. A sistemática seria simples: i) a acusação, caso requeira a condenação do réu, já poderia pugnar por uma fixação de pena específica, segundo o modelo trifásico; ii) a defesa, ao se deparar com o pedido acusatório, desde já poderia se manifestar acerca da fixação de pena em caso de eventual condenação; e iii) devidamente atento aos fundamentos das partes, nos termos da Lei, deverá o juiz prolatar a sentença, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa também no que toca a fixação da pena.  
 

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