Opinião

Criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é a própria liberdade

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

9 de novembro de 2019, 7h04

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz.[1]

A autonomia individual constitui um dos valores mais caros para a dignidade humana. É impossível reconhecer ou conceber a efetivação de qualquer outro valor ou direito desassociado da liberdade, na medida em que, em geral, estes exigem como pressuposto lógico a autodeterminação individual. A própria noção de Estado constitucional surgiu, em sucessão aos Estados absolutistas anteriores, para a salvaguarda da liberdade individual, mediante a proteção dos cidadãos contra o abuso de poder, sendo esta a primeira geração de direitos fundamentais.

Com sua positivação jurídica, os direitos de liberdade constituem uma defesa do indivíduo frente à atuação do Estado. Assegurou-se, portanto, uma esfera livre de ingerências estatais, para que os indivíduos, em suas relações pessoais, pudessem se autorregular. O conceito de liberdade, porém, não se apresenta apenas a partir dessa dimensão negativa, na medida em que, sob um viés positivo, assegura-se a possibilidade de participação e influência no debate político de uma determinada sociedade.

Na Constituição brasileira de 1988, o direito à liberdade restou positivado no artigo 5º, caput, o qual dispõe: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, assegurando-se, ainda, em seu inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O reconhecimento constitucional do direito à liberdade influencia diretamente na conformidade in abstracto do ordenamento jurídico como um todo e, consequentemente, na avaliação de sua legitimidade. Ademais, a complexidade e o pluralismo das sociedades modernas culminam igualmente na proteção constitucional de valores e interesses diversos, razão pela qual, em determinadas situações in concreto, a colisão de direitos fundamentais resultará na ponderação dos valores ali presentes.

Mas não só.

Por certo, ainda que inexista hierarquia jurídica entre as normas constitucionais e, assim, entre direitos, a vida em sociedade exige determinadas restrições à liberdade individual de modo a torná-la compatível com a liberdade dos demais. Nas palavras de Beccaria, ninguém sacrifica gratuitamente uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público:

só a necessidade constrange os homens a ceder parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto.[2]

Não basta, portanto, a liberdade per si; é necessário um arcabouço normativo a permitir o seu efetivo exercício, pois, ainda que o objetivo seja um bem maior à sociedade, ninguém abdica espontaneamente de um direito. Esse o discurso teórico que legitima a atuação repressiva do Estado e a relativização à liberdade, sendo o Direito Penal, em uma perspectiva democrática, um instrumento de controle social limitado e legitimado por meio do consenso alcançado entre os cidadãos de uma determinada sociedade.[3]

Sob essa ótica, o Direito Penal atua para garantir a segurança e estabilidade do juízo ético-social da comunidade, apresentando os limites da liberdade individual na vida comunitária, ao mesmo tempo em que reage, diante do caso concreto, contra a violação ao ordenamento jurídico-social com a imposição de uma sanção.[4]

A pena, nesse âmbito, constrange o indivíduo a atuar conforme os parâmetros estabelecidos por determinada sociedade, devendo, porém, restringir-se, enquanto solução diversa não for encontrada pelo homem, ao mínimo necessário para conservar o controle social. Além disso, ela somente pode ser imposta, em ínfimas situações, após a realização de um processo que observe as garantias jurídico-constitucionais.[5]

É claro que, com o avanço das teorias críticas, o entendimento do fenômeno da criminalização de comportamentos danosos à vida social e a necessidade de controle passaram por reformulações, especialmente ao perceber que a problemática atinente à legitimação do Direito Penal se encontra no processo de elaboração e aplicação da lei penal. Isso porque, ao passo em que se apresenta como um meio necessário para a existência de sociedades organizadas, o controle social através do Direito Penal se apresenta estigmatizante, seletivo e desumano.

Esse descompasso entre o seus fins e sua aplicação, em muito, relaciona-se às expectativas geradas em torno do processo penal, meio necessário à aplicação da sanção legal.Isso porque, em uma dialética punitiva, o processo penal, em vez de garantia à própria liberdade individual (nulla poena sine judicio), transforma-se em um instrumento utilizado apenas para atender às expectativas imediatistas de pacificação social da sociedade. O objeto do processo passa a ser o indivíduo criminoso e não mais o fato danoso, cuja prática pretende-se coibir.

Nesse contexto, a figura do advogado criminal compreende não só a defesa de seu cliente e administração da justiça, mas a defesa do próprio Estado Democrático de Direito. Com a atuação da defesa técnica, assegura-se que o processo penal observará os ditames estabelecidos na Constituição Federal, garantindo ao acusado o respeito à sua dignidade, presunção de inocência e, por conseguinte, liberdade.

Nas palavras de Casara e Melchior:

o defensor atua com o objetivo de proteger o estado de liberdade do imputado. Sua missão democrática, portanto, possui uma dimensão pública, vinculado à defesa de um bem que é protegido em nome de um interesse também público: a liberdade. Aqui reside a força da atuação defensiva.[6]

E não é outro o objetivo de Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que tanto estimo e considero. Sua atuação profissional é um exemplo para todos os criminalistas que pretendem seguir na defesa de um Estado Democrático.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é a própria liberdade.

Em cinquenta anos dedicados à advocacia criminal, Mariz e a liberdade nunca se desgrudaram. Eles caminham, lado a lado, na construção de um mundo melhor do que este que, temporariamente, nos emprestam.

[1] Samba-enredo composto por Niltinho Tristeza, Preto Joia, Jurandir e Vicentinho, que levou a Imperatriz Leopoldinense ao título de campeã do Carnaval no Rio de Janeiro em 1989.

[2] Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 27.

[3] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 42

[4] Ibidem, p. 47.

[5] Idem.

[6] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

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