Opinião

Nova causa suspensiva da prescrição: a proposta do presidente do STF

Autores

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

  • Hans Robert

    é Professor de Direito Penal e Processo Penal da Uninove e advogado criminalista.

7 de novembro de 2019, 6h05

1. Considerações iniciais
No último dia 28 de outubro, o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, enviou ao Senado e à Câmara dos Deputados sugestão para introduzir duas novas causas suspensivas da prescrição no artigo 116 do Código Penal: a interposição de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça e de extraordinário ao STF. A inovação é importante e vem em boa hora. Ao inibir recursos protelatórios, atende à exigência constitucional de duração razoável do processo (Constituição Federal, artigo 5º, LXXVIII) e protege a eficácia do sistema penal, sem macular o direito de defesa.

2. O tempo e o Direito
O tempo pode ser o mesmo para todos, mas sua percepção subjetiva diverge bastante de acordo com cada situação, dificultando a definição do que venha a ser “razoável duração do processo”. Albert Einstein demonstrou que diferentes observadores, possuindo relógios idênticos, terão indicações distintas da duração do tempo, na perspectiva da teoria da relatividade[1]. O tempo não é um rótulo para todo o universo, mas perceptível diferentemente pelos mais variados estados mentais[2]: “Quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante uma hora, tem a impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente durante um minuto somente — e esse minuto lhe parecerá mais comprido que uma hora. Isso é relatividade”[3].

No processo penal, o magistrado necessita de tempo para reconstruir o fato pretérito delituoso e resguardar a regularidade dos atos processuais para a tomada da decisão final. A atividade jurisdicional necessita de certo prazo para esclarecer situações e evitar injustiças. A paixão despertada pelo clamor popular leva ao açodamento e erro. Nesse panorama, suprimir o direito ao recurso para garantir celeridade põe em risco o sistema de garantias constitucionais. Por outro lado, a via recursal não deve ter sua finalidade deturpada para frustrar a efetividade do sistema e provocar a prescrição.

O professor espanhol Jesús-María Silva Sánchez, ao tratar do fenômeno da expansão do Direito Penal[4], emprestou ao Direito Penal duas velocidades de atuação, com dois sistemas sancionatórios no sistema penal. Faz ainda referência a uma terceira velocidade[5]. No ordenamento jurídico brasileiro é possível encontrar as duas primeiras.

A primeira velocidade do Direito Penal é caracterizada pelo respeito aos princípios constitucionais e prevalência da pena privativa de liberdade, com o processo penal resguardando todas as garantias do acusado. A privação da liberdade sem contraditório e a ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, não se compadece com a nossa Constituição.

Na segunda velocidade, prevalecem as penas restritivas de direito e multa com flexibilização das garantias individuais. Tal sistema pode ser encontrado no procedimento dos Juizados Especiais Criminais, conforme as disposições da Lei 9.099/1995 (artigos 74, 76 e 89). Nessa hipótese, a inexistência de risco à liberdade permite um processo mais célere e menos garantista.

A terceira velocidade se manifesta pelo famigerado Direito Penal do Inimigo de Günter Jakobs[6]. Trata-se da combinação de penas rigorosas com supressão de garantias[7]. Há ainda, autores que se referem a uma quarta velocidade no Direito Internacional Penal[8]. Quanto maior for a velocidade do Direito Penal, menor será o tempo de duração do processo e menos ampla será a defesa.

O processo penal deve durar um tempo razoável (Constituição, artigo 5.º, LXXVIII). Trata-se de direito humano fundamental previsto em inúmeros tratados internacionais[9]. No Brasil, no entanto, não foi definido que se entende por duração razoável, nem existe sanção para sua não observância[10]. A única punição ao Estado desidioso é a extinção da punibilidade pela prescrição. Ante a impossibilidade de alargamento das hipóteses de imprescritibilidade, a solução é inibir a prescrição, sem aviltar o direito de defesa[11]. Nisso reside o mérito da sugestão de evitar que as cortes superiores sejam foco permanente de extinção de punibilidade sem exame do mérito.

3. A prescrição da pretensão punitiva
A prescrição é a extinção da pretensão do Estado em punir o infrator, devido à sua inércia dentro dos prazos legais. Trata-se de causa extintiva da punibilidade (Código Penal, artigo 107, inciso IV). Praticado o delito, surge para o Estado o jus puniendi, ou seja, o direito de punir seu autor. Esse direito, entretanto, não é eterno. A persecução penal não pode durar indefinidamente, existindo um lapso temporal para sua aplicação. A prescrição é necessária para combater a desídia do Estado[12], compelindo-o a agir sem demora.[13] Com o decurso do tempo, as provas se enfraquecem e prejudicam a busca da verdade real[14]. Por essa razão a prescrição é uma punição pela duração excessiva do processo[15] e, ao evitar a eternização da persecução penal, atua contra a prevaricação e desídia[16]. Trata-se de delimitador da duração do processo.

4. Causas suspensivas e interruptivas da prescrição
O prazo da prescrição da pretensão punitiva é suscetível de suspensão ou de interrupção. Na suspensão, o prazo volta a correr pelo tempo que faltava, ao passo que na interrupção o prazo é zerado e volta a partir de seu primeiro dia. Os casos de suspensão encontram-se no artigo 116 do Código Penal. Suspende-se também a prescrição no caso da sustação parlamentar do processo, na hipótese crime ocorrido após a sua diplomação, mediante deliberação da maioria dos membros da respectiva Casa Legislativa (Constituição. artigo 53, parágrafos 3º e 5º). Do mesmo modo, quando o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado (Código de Processo Penal, artigo 366, caput, e Súmula 415 do STJ) e quando for expedida carta rogatória para sua citação no estrangeiro em lugar sabido (CPP, artigo 368). Também ficará suspensa a prescrição durante a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, artigo 89, parágrafo 6º), entre outras hipóteses.

5. Nova causa suspensiva da prescrição
A proposta do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, visa a impedir o transcurso do prazo prescricional após a interposição de recursos especial ou extraordinário, bem como dos respectivos agravos, até seu julgamento final. Conforme já dito, a proposta leva em conta a problemática referente à execução provisória da pena e o sentimento de impunidade, decorrente da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva no âmbito dos tribunais superiores. Eis o texto da medida:

Artigo 116. Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre:

(…)

III – enquanto pendente de julgamento os recursos especial ou extraordinário ou os respectivos agravos em recurso especial ou extraordinário.

§2º A casa impeditiva prevista no inciso III do caput incide desde a interposição do recurso especial ou extraordinário no tribunal de origem.

A prescrição entre a condenação de segundo grau e o trânsito em julgado é da pretensão punitiva e leva à extinção de todos os efeitos, principais (extinção da pena) e secundários (penais e extrapenais) da condenação. Seu reconhecimento equivale a uma absolvição, pois nada decorrerá da condenação que sofreu a perda da pretensão punitiva.

Essa prescrição da pretensão punitiva recebe diferentes denominações, a depender da fase processual em que ocorre. Quando operada entre o trânsito em julgado para a acusação e o encerramento do processo, recebe o nome de intercorrente ou superveniente. Após a condenação, se a acusação não tiver recorrido, a pena imposta não poderá mais ser elevada tendo em vista a proibição da reformatio in pejus (CPP, artigo 617). Como a sanção penal não pode mais ser aumentada em recurso exclusivo da defesa, o prazo prescricional passará a ser calculado não mais pelo máximo cominado abstratamente, mas pela pena concretamente fixada, a qual passou a ser a maior pena possível (Código Penal, artigo 110, parágrafo 1º, primeira parte, e Súmula 146 do STF). Nesse novo cálculo do lapso prescricional, o prazo tende a diminuir, pois a pena concreta imposta geralmente é menor do que o máximo previsto abstratamente pela lei.

Até que o processo também transite em julgado para a defesa, a interposição do recurso especial e do extraordinário manterá em curso o lapso prescricional. Tal situação estimula o emprego da via recursal com o fito exclusivo de provocar a prescrição.

A abusiva interposição desses recursos, seja para impedir a execução imediata da pena após a decisão de segunda instância, seja para buscar a prescrição mediante o prolongamento artificial da persecução penal, acaba criando o sentimento de que os tribunais superiores são fonte de impunidade e cria pressão da sociedade sobre o STF.

Ao Supremo caberá o dilema de optar em respeitar o devido processo legal e criar o risco de prescrição ou restringir princípios constitucionais para assegurar a efetividade do processo. Na busca pela eficiente proteção do bem jurídico, existe o clamor popular para que o STF permita a execução da pena definitiva antes mesmo dela se tornar definitiva, ou seja, a partir da condenação provisória de segunda instância.

Para burlar o texto constitucional expresso, utilizam-se argumentos de política criminal e malabarismos hermenêuticos, sem correspondência jurídico-constitucional. A Constituição Federal é clara ao afirmar que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da condenação (Constituição, artigo 5º, LVII). Não se pode admitir que alguém, ainda em estado de não culpabilidade, inicie o cumprimento de uma pena provisória e seja recolhido ao cárcere mesmo sem a demonstração da urgência representada pelo periculum libertatis. O artigo 283 do CPP, por sua vez, é também cristalino ao afirmar que ninguém poderá ser preso antes do trânsito em julgado da condenação, ressalvadas as hipóteses de prisão processual. Finalmente, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 6º, parágrafo 3º, define o que é coisa julgada de forma tão clara que não dá margem a interpretação diversionista: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado, a decisão judicial de que já não caiba recurso”. Somente desconsiderando a letra expressa da lei seria possível alterar o conceito literal de coisa julgada.

Não há sucedâneo retórico para sentença transitada em julgado: é somente aquela contra a qual não cabe mais qualquer recurso. Não importa o que dispõem outros sistemas. No Brasil, a questão foi definida em nível constitucional por meio de cláusula pétrea. Por essa razão, a proposta é oportuna, tornando desnecessário qualquer contorcionismo interpretativo para tangenciar o princípio constitucional do estado de inocência e violar o tempo processual garantido pela Constituição.

Com a inclusão de duas novas causas suspensivas da prescrição, preserva-se a dignidade do prazo de duração dos recursos nos tribunais superiores sem flertar com a impunidade e sem aviltar o devido processo legal. O verdadeiro foco da prescrição não é o princípio do estado de inocência, mas a ausência de um mecanismo legal de contenção de seu curso após a interposição de recursos aos tribunais superiores.

É imprescindível que o processo penal seja célere, mas também que respeite as garantias pela Constituição. A proposta permitirá conciliar efetividade com devido processo legal. Espera-se agora que o Congresso Nacional também respeite a duração razoável do processo legislativo para rápida aprovação das duas novas causas suspensivas da prescrição em boa hora sugeridas pela nossa mais alta corte.

[1] EINSTEIN, Albert. A Teoria da Relatividade Especial e Geral; Trad. do original alemão Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, 27/28.

[2] EINSTEIN, Albert. Vida e pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 100.

[3] EINSTEIN, Albert. Vida e pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 100.

[4] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 28.

[5] Op. cit, p. 193.

[6] Constituição Federal. JAKOBS, Günther. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Org. e tradução André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

[7] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. op. cit, p. 193-201.

[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 179-184.

[9] Constituição Federal. artigo 8.º, item 1 do Pacto de San José da Costa Rica, bem como do 9º, item 3, e artigo 14, item 3, ambos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU.

[10] LOPES, Aury. Direito Processual Penal. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 80-83.

[11] As únicas hipóteses de imprescritibilidade decorrem do artigo 5º, incisos XLII e XLIV, e parágrafo 4º da Constituição, combinados com a Lei 7.716/89 e Lei 7.170/83, bem como artigo 29 do Decreto 4.388/02, que instituiu o Estatuto de Roma no Brasil.

[12] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 53.

[13] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 517.

[14] MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal: prescrição funcionalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 96.

[15] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 613.

[16] QUEIJO, Maria Elizabeth. Prescrição: exigência de eficiência na investigação e razoável duração do processo. In: Prescrição Penal: Temas Atuais e controvertidos – Doutrina e Jurisprudência Volume 4. Ney Fayet Júnior (Coord.), Maria Elizabeth Queijo…[et al.]. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 30.

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    é Procurador de Justiça do MP paulista, mestre pela USP, doutor pela PUC-SP, coordenador da Uninove, professor da FAM, autor de diversas obras jurídicas, foi deputado estadual por três mandatos e presidente da Assembleia Legislativa de SP. Atualmente, é diretor executivo do Procon-SP.

  • Brave

    é Professor de Direito Penal e Processo Penal da Uninove e advogado criminalista.

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