Opinião

Concessionária deve pagar IPTU sobre imóvel que administra? Análise de casos do STF

Autor

  • Vitório Rodrigues Neto

    é advogado em São Paulo graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e com MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Atuariais e Financeiras.

6 de novembro de 2019, 6h31

Fazendas Públicas municipais têm efetuado o lançamento do Imposto Predial Territorial Urbano sobre imóveis públicos administrados por concessionárias de serviços públicos com fundamento em suposto respaldo do Supremo Tribunal Federal. As referidas cobranças foram intensificadas no início de 2019, em função do trânsito em julgado, no final de 2018, das decisões proferidas pelo STF nos Recursos Extraordinários 594.015 e 601.720.

Em 6 de abril de 2017,a Suprema Corte fixou com repercussão geral duas importantes teses acerca da incidência de IPTU sobre imóveis públicos: (i) "A imunidade recíproca, prevista no artigo 150, VI, 'b', da Constituição, não se estende à empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese, é constitucional a cobrança do IPTU pelo município" (RE 594.015); e (ii) "Incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de Direito Público cedido a pessoa jurídica de Direito Privado, devedora do tributo" (RE 601.720).

O efeito vinculante dos precedentes com repercussão geral demanda cuidado do julgador. Isso porque tais precedentes não podem ser aplicados às concessionárias prestadoras de serviços públicos, não submetidas ao regime concorrencial, a exemplo das que administram rodovias (bens públicos por imperativo do artigo 99, I, do Código Civil[1]) e aeroportos (bem público federal por imperativo do artigo 38 da Lei 7.565/86[2]). É o que se passa a expor.

O Código de Processo Civil (artigo 489, parágrafo 1º, V[3]) positivou a necessidade de o Poder Judiciário permanecer sempre atento à fundamentação de suas decisões e à correta aplicação de precedentes judiciais. Em matéria tributária, além da aplicação do código de processo, é necessário que a tributação seja levada a cabo de acordo com as limitações constitucionais ao poder de tributar (artigo 150 e seguintes da Constituição) e de maneira que impossibilite a indevida invasão ao patrimônio do contribuinte.

No julgamento do RE 594.015, o STF afastou a imunidade tributária de imóvel arrendado à Petrobras, decidindo pela incidência de IPTU. No caso, a empresa ocupa um terreno da União cedido à Companhia Docas do Estado de São Paulo, que por sua vez arrendou o imóvel à Transpetro, subsidiária da Petrobras que opera o terminal.

Da análise do inteiro teor do julgamento, destacam-se algumas passagens do voto do ministro relator Marco Aurélio: “Reconhecer a imunidade recíproca significa verdadeira afronta ao princípio da livre concorrência versado no artigo 170 da Constituição Federal, por estar-se conferindo a pessoa jurídica de direito privado vantagem indevida, não existente para os concorrentes.” E “afastar tal ônus de empresa que atua no setor econômico, ombreando com outras, a partir de extensão indevida da imunidade recíproca, implica desrespeito aos ditames da Constituição Federal.”

No mesmo sentido foi o voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso: “Entender que os particulares que utilizam os imóveis públicos para exploração de atividade econômica lucrativa não devem pagar IPTU significa colocá-los em vantagem concorrencial em relação às outras empresas”, disse.

No julgamento do RE 601.720, o STF admitiu a cobrança de IPTU da concessionária Barrafor Veículos, que ocupava um terreno de propriedade da União cedido pela Infraero em contrato de concessão.

Também efetuada a análise de inteiro teor do julgamento, verifica-se semelhante fundamentação. O ministro Marco Aurélio replicou o voto dado no RE 594.015, e o ministro Gilmar Mendes acrescentou: “É claro que todos sabemos que essa ideia da imunidade recíproca é um dos feitos de Marshall, McCulloch vs. Maryland, na ideia de que o poder de tributar envolve, também, o poder de destruir, mas vejo que já estamos muito distantes dessa hipótese quando o bem não é utilizado para a finalidade estrita ou do interesse estrito do poder público, no caso, da União.”

Mais além dos inúmeros argumentos contrários à incidência de IPTU sobre imóvel público cedido [(i) inexistência de transferência de propriedade, havendo mera posse precária, desdobrada; (ii) inexistência de posse com animus domini – STJ, AgRg no AREsp 535.846, Rel. Ministro Sérgio kukina, 1ª Turma, DJe de 24/11/2015; STJ, AgRg no AREsp 691.946/rj, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe de 16/06/2015; (iii) Imunidade tributária do imóvel público], evidente é que os referidos casos dizem respeito a contratos de concessão de uso de bem público, e não de contratos de concessão de serviços públicos.

Infere-se que a ratio decidendi[4]dos REs julgados se consubstancia na preocupação do STF em não beneficiar determinada empresa, em detrimento de suas concorrentes, através da não cobrança de IPTU. Neste caso, a empresa do mesmo setor de atividade econômica, proprietária de imóvel próprio, não teria tal benefício, o que poderia representar uma quebra do equilíbrio concorrencial.

A livre concorrência, no sentido que o texto constitucional (artigo 170, IV, da Constituição) lhe atribui – “livre jogo das forças do mercado, na disputa de clientela” – supõe desigualdade ao final da competição[5]. Ora, não é o caso das concessionárias de serviço público que administram, por exemplo, rodovias e aeroportos, uma vez que, terminado o processo licitatório[6], a empresa vitoriosa se incube da administração e conservação do bem público fora do mercado concorrencial.

Isso porque tais concessionárias se utilizam de imóvel público para a prestação do próprio serviço público. Eis que, as áreas ocupadas, portanto, são necessárias e indispensáveis à prestação do serviço público previsto no contrato de concessão firmado entre ente público concedente e a concessionária vencedora da licitação.

Nesse sentido, não há que se falar da aplicação dos referidos precedentes judiciais para respaldar a cobrança de IPTU em face de rodovias administradas por concessionárias de serviços públicos ou dos imóveis de aeroportos destinados à consecução do contrato firmado.Necessário, pois, é a realização do distinguishing, de modo que não haja a ilegal cobrança.

Do mesmo modo, não há que se falar em cobrança de IPTU sobre as atividades econômicas exercidas no complexo aeroportuário, tendo em vista que elas existem e estão voltadas preponderantemente à complementação do serviço público concedido. Vale dizer, ninguém vai ao aeroporto com a finalidade precípua de consumir os produtos ou de utilizar os serviços postos à disposição dos passageiros em função de um preço mais em conta, o que afetaria o equilíbrio concorrencial. Ao revés, como é sabido, os produtos e serviços ali fornecidos têm preços superiores ao do mercado e existem para complementar a exploração da navegação aérea, serviço público de competência da União, nos termos do artigo 21, XII, “c”, da Constituição.

Não por outro motivo infere-se que não há incidência de IPTU sobre imóveis públicos administrados por concessionárias e destinados à prestação do serviço público, seja porque a concessionária não é sujeito passivo da relação jurídico-tributária da suposta obrigação, seja em função da impossibilidade de aplicação dos referidos precedentes judiciais (RE 594.015 e RE 601.720)[7] e [8].

Como visto, a ratio decidenti emanada através das decisões proferidas pela Suprema Corte visa resguardar a livre concorrência, conjuntura inaplicável ao caso, uma vez que, iniciada a prestação do contrato firmado entre o ente público concedente e a concessionária de serviço público, não há que se falar em regime concorrencial.

[1] Art. 99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

[2] Art. 38. Os aeroportos constituem universalidades, equiparadas a bens públicos federais, enquanto mantida a sua destinação específica, embora não tenha a União a propriedade de todos os imóveis em que se situam.

[3] Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

(…) § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…)V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

[4] Entendida como os argumentos principais sem os quais a decisão não teria o mesmo resultado, ou seja, os argumentos que podem ser considerados imprescindíveis.In: MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil Moderno. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 711.

[5] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 19a ed. atual. São Paulo, Malheiros 2018, p. 204.

[6] Eventual imunidade tributária quanto ao IPTU sobre o imóvel objeto da licitação, ainda na fase de licitação, também não teria o condão de promover um desequilíbrio concorrencial, uma vez que todas as empresas habilitadas receberiam o mesmo tratamento tributário.

[7] Tal entendimento foi recentemente (27.08.2019) utilizado como fundamentação da sentença, nos autos do processo 0104326-87.2017.8.20.0129, proferida pela 1ª Vara de São Gonçalo do Amarante/RN, para afastar a cobrança de IPTU do Município de São Gonçalo do Amarante/RN em face da Inframérica Concessionária do Aeroporto de São Gonçalo S.A. Em 05.11.2019, os autos ainda não foram remetidos para a apreciação do TJ/RN.

[8] Em maio deste ano, o ministro Luiz Fux, relator da Reclamação Constitucional 32.717, julgou procedente o pedido da ação para casar decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que legitimou a pretensão do município de Santos, sob o argumento de suposto respaldo do RE 601.720 (Tema 437), para cobrar IPTU da Companhia de Docas do Estado de São Paulo. Segundo Fux, “evidencia-se que a situação fática posta nos autos apresenta contornos diversos daquela discutida no leading case utilizado como fundamento pelo tribunal a quo faz realizar juízo de retratação, a despeito de apresentarem conteúdo materialmente similar, razão pela qual merece procedência a presente reclamação”.

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    é advogado em São Paulo, graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e com MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras.

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