Direto do Carf

Carf oscila em reconhecer ilegitimidade passiva como matéria de ordem pública

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

6 de novembro de 2019, 9h21

Spacca
As disciplinas jurídicas processuais vivem, contemporaneamente, um momento de reforço de sua natureza instrumental, enquanto meio de adjudicação de soluções normativas para as crises de direito material, na expressão de Bedaque[1]. Entretanto, algumas circunstâncias têm o condão de interromper o iter usual do procedimental, ensejando o encerramento precoce do feito, sem que se tenha um pronunciamento meritório sobre quem faz jus à tutela jurisdicional.

Uma das principais causas de extinção precoce dos processos são as chamadas questões de ordem pública, que abrange uma série de matérias que transcendem os interesses e direitos das partes em cada litígio, em razão da sua estrita vinculação com o interesse público, e que tem o condão de impedir a decisão de mérito no feito. No CPC/2015, essas matérias são arroladas no art. 337 e no art. 485, IV, V, VI e IX, abrangendo, em regra, condições da ação e pressupostos processuais, que têm como principal característica a possibilidade de serem conhecidas de ofício pelo julgador (art. 337, §6º, do CPC), a qualquer tempo ou grau de jurisdição (art. 485, §3º, do CPC).

Em outras palavras, as questões de ordem pública não se sujeitam às regras de preclusão usualmente estabelecidas em qualquer procedimento contencioso.

No âmbito do Carf, em que se desenvolve o processo administrativo fiscal federal, algumas questões são pacificamente reconhecidas como matéria de ordem pública, ensejando a extinção da autuação ou a nulidade do processo, como a ocorrência de decadência, concomitância com processo judicial etc. Entretanto, existem outras matérias que desafiam posicionamentos contraditórios entre as turmas daquele Tribunal, como a questão da ilegitimidade passiva, que será objeto de nossa coluna de hoje.

Essa questão normalmente vem aos debates de duas formas distintas: nos casos em que o responsável tributário comparece ao processo para alegar sua ilegitimidade no recurso voluntário, apesar de regularmente intimado, ou quando se manifesta desde a impugnação, mas sem questionar a sua legitimidade passiva.

Atualmente, pode-se dizer que é majoritária, ainda que não unânime entre todas as turmas, o entendimento da ilegitimidade passiva como uma matéria sujeita à preclusão processual. Esse entendimento fica evidente no Acórdão nº 1301-002.664[2], que invoca o art. 17 do Decreto nº 70.235/72 para sustentar que deve ser considerada não impugnada matéria que não foi contestada pelo impugnante.

Indo além, de forma mais extremada, o Acórdão nº 3402-006.831[3] aduz que o Carf sequer teria competência para julgar toda a matéria envolvida no processo fiscal, senão aquela veiculada em recurso de ofício ou voluntário, conforme disposto no art. 1º do Anexo I da Portaria MF nº 343/2015. Desse modo, conclui o voto vencedor que o Carf não teria competência para analisar nenhuma questão de ofício, mesmo as de ordem pública, deixando consignado, entretanto, que a legitimidade passiva não seria uma dessas questões, razão pela qual estaria sujeita à preclusão.

Em sentido contrário, podemos mencionar o Acórdão nº 2401-003.558[4], que aduz que a formação do crédito tributário passa por diversas fases, incluindo a identificação do sujeito passivo do crédito tributário, matéria sujeita à legalidade, razão pela qual entende que equívoco nesse ponto transcende ao interesse particular do recorrente, alcançando a validade do próprio lançamento, sendo, portanto, competência do Carf proceder esse controle, a qualquer tempo e grau de jurisdição, por se tratar de matéria de ordem pública.

Na declaração de voto apresentada no Acórdão nº 1301-003.943, argumentou-se também pela natureza de questão de ordem pública da legitimidade passiva, argumentando-se que o art. 1005 do CPC/2015 daria guarida para que a defesa apresentada por um responsável solidário aproveitasse a todos os demais que tenham sido responsabilizados pelo mesmo fundamento, afastando-se de ofício a autuação contra eles.

No Acórdão nº 1301-003.779[5] tratou-se do julgamento de um recurso interposto após uma impugnação intempestiva, que discutia a cobrança de multa por descumprimento de obrigação acessória autônoma, contra órgão integrante da Administração Pública direta. Nesse caso, o relator pontuou, com razão, que nos casos de multa em razão de atraso do órgão público, o sujeito passivo da relação obrigacional é a própria pessoa jurídica de direito público interno a que ele está vinculado, em razão da ausência de personalidade jurídica daquele. Em razão disso, reconheceu de ofício a ilegitimidade passiva da autuada, invocando precedentes do próprio Carf (Acórdão 2201-01.562 e 1402-00.513) e judiciais, para anular a autuação. Nos exatos termos desse acórdão, em caso análogo, o Acórdão nº 1002-000.744[6] também afastou a preclusão em matéria de ilegitimidade passiva.

Por fim, mencione-se também os fundamentos esgrimidos no Acórdão nº 3402-006.609[7], que argumenta a ilegitimidade passiva é condição da ação e, por conseguinte, matéria de ordem pública, invocando o art. 485, VI, e §3º do CPC/2015, que determina que o juiz não decida o mérito quando verifique ausência de legitimidade processual de uma das partes. Aduz a relatora que como as questões de ordem pública não foram objeto de tratamento específico na disciplina do processo administrativo, caberia a aplicação subsidiária das regras do CPC, por força do art. 15 daquele código, afastando assim a preclusão temporal de alegação de ilegitimidade passiva.

Por fim, a 1ª CSRF já se manifestou sobre a matéria por meio do Acórdão nº 9101-003.589[8], no qual analisava recurso especial contra acórdão que deu provimento aos recursos voluntários interpostos por dois responsáveis (que não apresentaram suas impugnações).

O voto do relator, nesse caso, é bem interessante: por um lado, reconhece expressamente que a finalidade de controle da legalidade do lançamento tem o condão de ampliar o rol das questões de ordem pública, quando comparado ao processo civil, inclusive ressaltando que a correta identificação do sujeito passivo configura elemento fundamental na atividade de lançamento; por outro lado, ressalta que se o sujeito passivo foi intimado do lançamento e não apresentou impugnação, ele não pode ingressar no processo apenas na fase do recurso voluntário, com base no art. 14 do Decreto nº 70.235/72.

Ele deixa claro o caminho de seu argumento ao pontuar que “O que está em questão é a possibilidade de apreciação de recurso voluntário apresentado por sujeito passivo que não tinha impugnado o lançamento no momento oportuno.”. Nesse ponto, a leitura que faço é a de que o relator entende que a legitimidade passiva é uma questão de ordem pública, mas rejeita a apreciação dela nos casos em que a fase litigiosa não foi sequer instaurada pelo responsável. Tanto é assim, que o resultado final foi pelo reestabelecimento da responsabilidade do sujeito passivo revel, ao passo que se manteve a ilegitimidade quanto ao sujeito passivo que compareceu espontaneamente ao processo, em razão de vício na sua notificação do lançamento.

Portanto, parece-me que, apesar do resultado do julgamento da CSRF, a leitura atenta dos argumentos indica o reconhecimento da legitimidade passiva como uma questão de ordem pública, por estar relacionada à constituição do crédito tributário.

Como se vê nos acórdãos mencionados acima, há uma grande insegurança no Carf sobre a cognoscibilidade de ofício de questões envolvendo sujeição passiva, que impliquem a ilegitimidade passiva das partes. Há não apenas a oscilação de entendimentos entre as turmas, que demanda uma pacificação no âmbito das Câmaras Superiores, como também há uma mudança de entendimento dentro dos colegiados, em curtos períodos.

Desse modo, é papel da jurisprudência do Carf consolidar quais seriam as questões de ordem pública no âmbito do processo administrativo fiscal, bem como consolidar as condições para o seu conhecimento e julgamento, aumentando a segurança jurídica dos litigantes e ampliando a previsibilidade e uniformidade no tratamento dos diversos sujeitos passivos que lá discutem seus débitos tributários.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas sim uma análise dos seus precedentes publicados no sítio virtual do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p.43

[2] Voto vencedor Cons. Fernando Brasil, julgado em 18/10/2017.

[3] Voto vencedor Maria Aparecida Martins, julgado em 21/08/2019.

[4] Relatora Cons. Elaine Cristina Monteiro, julgado em 17/07/2014.

[5] Relator Cons. Nelso Kichel, julgado em 21/03/2019.

[6] Relator Cons. Breno do Carmo Vieira, julgado em 09/07/2019.

[7] Relatora Cons. Thais de Laurentiis, julgado em 21/05/2019.

[8] Relator Cons. Rafael Vidal, julgado em 08/05/2018.

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    é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação."

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