Opinião

Presunção de inocência e prisão preventiva: duas faces de duas moedas diferentes

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5 de novembro de 2019, 6h26

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra em seu texto o direito à liberdade (artigo 5°, caput, da CR/88). Direito esse que transcende a própria realidade humana.

A Constituição da República proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII CRFB).[1]

Ninguém, absolutamente ninguém, será considerado culpado enquanto não houver esgotado todos – absolutamente todos – os recursos. Gostemos ou não, a Constituição da República Federativa do Brasil consagrou o princípio da “presunção de inocência” ou, como preferem alguns, “presunção de não culpabilidade”. De qualquer modo, qualquer outra interpretação que se possa pretender, equivale a rasgar a Constituição. No dizer de Ulysses Guimarães, “o documento da liberdade, da democracia e da justiça social do Brasil”.

Notadamente, em razão do princípio constitucional da presunção de inocência é que se verifica a excepcionalidade da prisão cautelar/provisória – em qualquer das suas modalidades – conforme o STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu:

A prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade somente se justifica em hipóteses restritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos à sua decretação pelo Poder Judiciário (STF – 2ª T. HC 80.379-2 – Rel. Celso de Mello).

É importante salientar que, em nosso sistema processual, o status libertatis (estado de liberdade) é a regra, e a prisão provisória, a exceção.

Assim sendo, a prisão em flagrante, preventiva, temporária, em razão de sentença penal recorrível (ainda que de 2º grau) ou qualquer outra espécie de prisão provisória, só deve ser mantida ou decretada em casos excepcionais, extremados e absolutamente necessários, quando presentes os requisitos mínimos e indispensáveis para sua manutenção ou decretação. Mesmo assim, quando não houver a possibilidade de sua substituição por outra medida cautelar menos gravosa. De tal modo, a conservação da liberdade deve prevalecer até a condenação definitiva, ou seja, transitada em julgado.

Em tese de doutoramento, Antonio Magalhães Gomes Filho assevera que:

À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de encarceramento ordenadas como antecipação da punição, ou que constituam corolário automático da imputação, como sucede nas hipóteses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do periculum libertartis.[2]

É certo que a presunção de inocência, mesmo sendo uma clausula pétrea da Constituição, não tem impedido que prisões cautelares, notadamente preventivas, sejam decretadas à rodo. Dos mais de 800 mil presos no país – terceira maior população carcerária do planeta -, cerca de 40% são de presos provisórios e que, portanto, não foram condenados em definitivo.

Assim, associar o princípio da presunção de inocência ao discurso oco da impunidade é, com todas as vênias, ignorar a realidade que se evidencia nos números do encarceramento em massa.

A presunção de inocência jamais se transformou em óbice para decretações de prisões preventivas, muitas delas com nítido abuso e totalmente desprovida de amparo legal. Os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal são mais do que suficientes para satisfazer a fúria punitivista daqueles que entendem – sem razão – que o acusado deve responder ao processo preso, para satisfação, por exemplo, de uma questionável “ordem pública”.

O princípio da presunção de inocência é correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli, “se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”. Mais adiante o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.[3]

Por fim e por tudo, espera-se que o STF declare constitucional o art. 283 do Código de Processo Penal conforme requerido nas ADCs. 43, 44 e 54.


[1] Segundo Gustavo Badaró, “Certamente, a fonte inspiradora tal dispositivo foi a Constituição italiana de 1948: L’imputato non è considerato colpevole sina Allá condanna definitiva”. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.60.

[2] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

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