Opinião

O processo, do escritor tcheco Franz Kafka, e a delação premiada

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

5 de novembro de 2019, 6h03

Spacca
O processo, do famoso escritor tcheco Franz Kafka, é, com certeza, o mais controvertido [e mais atual] romance do século XX. A obra trata sobre as angustias dos homens contemporâneos, destacando o sentimento de estranheza da sociedade, da solidão do individuo, da ausência do significado das coisas e, sobretudo, a opressão gerada pela “burocratização” fria e impessoal da maquina estatal, que torna os homens engrenagem de um único e grande mecanismo, capaz de esmagar qualquer existência[1].

Por Kafka, somos chamados a responder a culpas que nem sabemos que temos que pagar. No centro da análise kafkiana é possível enxergar a continua limitação [ou melhor, opressão] das liberdades do individuo como método de controle. O pobre Josef K. — protagonista da infeliz historia do romance — é oprimido pela organização judiciária por que se sente completamente impotente e incapaz de agir, não conhecendo nem os motivos da culpa contestada. Inicialmente, a confiança o leva a ser positivo e acreditar na rápida explicação do que acha ser um simples mal-entendido, mas logo — oprimido pelas exigências e pelas racionalidades do processo — entende que é de fato isolado e impotente, não unicamente para as inexoráveis autoridades da Justiça, mas também para a sociedade, que o olha como criminal e condenado. Completamente impotente, incapaz de continuar a viver e se defender, reconhece injustamente a própria culpa e aceita a condenação, pagando com a própria vida.

Em O processo, a lei é Direito positivo que se, de um lado, tutela o homem, o vulnerável, a vitima da sociedade, de outro, mostra todo o seu poder e a sua força em procurar e perseguir e condenar o culpado. Quando a maquina da Justiça é colocada em movimento (em âmbito penal, usualmente, por uma denuncia), persegue, procura e julga enquanto autoridade de Justiça, entidade publica que age em nome e por conta da lei, e não pelos privados interesses das partes.

Como a figura do wapentake inglês, magistralmente descrito pelo Vitor Hugo em O homem que ri[2], o terrível oficial da centúria(ou hundred courts), acompanhado pelo inseparável iron weapon, intima fisicamente o investigado, convocando-lo para obrigatoriamente segui-lo, sob pena de enforcamento, hoje a intimação/notificação é feita pelo oficial judiciário que aciona a “maquina da Justiça”,os seus mecanismos investigativos e o iter processual que chegará ao julgamento e a eventual aplicação da pena.

A evolução do Direito, principalmente através das cartas constitucionais e as convenções internacionais, mas também por leis especiais sempre mais garantidoras, melhorou a condição, mas — evidentemente — não mitigou as preocupações de quem há a enfrentar qualquer processo — principalmente de natureza criminal — justamente pelo fato de o individuo ter que ser investigado e julgado pela “maquina da Justiça”.

Preocupações percebidas não unicamente pelas pessoas físicas que, ao longo da própria vida, se encontram a enfrentar este desafio, mas pelos próprios legisladores e juízes que transformam estas preocupações em regras para garantir a tutela do individuo através da criação de vários mecanismos jurídicos (princípios e normas), a tutela de todos os indivíduos, incluindo o investigado, o réu, o colaborador de Justiça, e o próprio condenado.

Antes de tudo, vislumbra-se o principio do justo processo assim como estabelecido no artigo 5o, LIV, da Constituição Federal, que estabelece que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, processo este que será exercido pelo Poder Judiciário, sendo que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo 5o, XXXV), ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (artigo 5o, LII), aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5o, LII), e a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da sua tramitação (artigo 5o, LXXVII); assim como a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (artigo 5o, XXXVI), não ha crime sem a lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal (artigo 5o, XXXIX), a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (artigo 5o, XL),e enfim, a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais(artigo 5o, XLI), nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (artigo 5o, XLV).

Em outras palavras, a Constituição Federal de 1988, entre os vários princípios a tutela da pessoa, estabelece princípios fundamentais como: (i) o principio da legalidade (o Poder Judiciário deve desenvolver a prerrogativa de garantir a todos o justo e razoavelmente demorado processo, com direito à ampla defesa, e a administração da Justiça, através do juiz natural preestabelecido por lei); (ii) o principio da taxatividade (não ha crime sem que tenha previsão legislativa que o defina); (iii) o principio da irretroatividade (a lei posterior poderá unicamente beneficiar); (iv) o principio do respeito dos direitos fundamentais (respeito da dignidade da pessoa humana); (v) o principio da personalidade da responsabilidade criminal (intransmissibilidade da responsabilidade criminal).

Os princípios constitucionais concretizam o ponto cardeal de todo o sistema normativo e de garantia do ordenamento jurídico como todo. Tais princípios orientam, condicionam e direcionam a interpretação de todas as outras normas jurídicas em geral, que haverá de ser realizada no sentido de criar ratio, sintonia e funcionalização entre elas. Em particular, há de se evidenciar a importância dos direitos fundamentais, que operam como base normativa de todo o sistema jurídico, que privilegia a tutela da pessoa humana e de sua dignidade, sobretudo perante os Poderes do Estado[3].

É difícil identificar a casuística que defina as potenciais situações nas quais seja possível identificar principalmente a violação da dignidade humana, tantas são as variáveis e os direitos envolvidos. Todavia, voltando ao exemplo do processo kafkiano, as provocações são: (i) dentro do nosso sistema constitucionalmente muito avançado, o Josef K. sofreria [ou melhor poderia sofrer] as mesmas violações e abusos que sofreu no contexto do romance? (ii) É possível considerar a “burocratização” da Justiça uma forma de “tortura” (ainda que psicológica)? (iii) Como eventualmente seria punida esta grave violação pela “maquina da Justiça” à dignidade da pessoa?

A citação ao caso do romance kafkiano é evidentemente uma metáfora, que, todavia, não deixa de levantar a legitima duvida: é possível que o eventual abuso ou “burocratização” por parte das autoridades de Justiça se tornem tortura? A prática é evidentemente proibida pela própria Carta Constitucional ao artigo 5°, III, ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

O próprio legislador confirmou faz pouco esta preocupação assim atual: a lei que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente publico, servidor ou não, no exercício das suas funções ou a pretexto de exercê-las, é datada 5 de setembro de 2019!

Mas qual é a relação entre abuso e tortura? O que podemos entender por tortura?

A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU de 1984 (recebida e promulgada pelo Brasil com Decreto 40/1991), nos artigos 1º e 2º, estabelece:

1. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.2. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo (se refere à interpretação mais favorável para vitima).

Sem muito esforço interpretativo, a definição de tortura pode ser sintetizada em: qualquer comportamento por parte de um publico funcionário ou outra pessoa no exercício de funções publicas que infrinja dores físicos e mentais para obter informações e confissões, para castigá-las, para intimidar, ou para discriminá-las, sem que de fato estes comportamentos sejam já por si sanções legitimas. Interpretação conceituada pelo próprio ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes em recente publica declaração em relação à utilização “abusiva” da prisão preventiva[4]!

Sem querer entrar no mérito da declaração do ministro, já objeto de importantes debates jurídicos e políticos, entendemos que não há a se banalizar a questão, considerado que nem o documento jurídico mais importante do Pais, a Carta Constitucional, o faz. A tutela e a garantia da dignidade da pessoa humana devem ser consideradas antes de tudo![5]

Não é por redundância que existem varias disposições de caractere constitucional que regulamentam, de um lado, o exercício do Poder Judiciário e, de outro, a tutela da dignidade da pessoa, em uma lógica e limitante simétrica. O individuo se encontra — de fato — “sozinho” frente a um Poder de Estado, ou seja, a imponente “maquina da Justiça”, a qual, se eventualmente dirigida sem o respeito das oportunas e previstas cautelas constitucionais, pode facilmente “dispor” sobre quaisquer questões e qualquer individuo, independentemente da lei.

Veja-se o atual caso das delações premiadas. A delação premiada (ou colaboração premiada) é um importante instrumento de Justiça — previsto e disciplinado por lei — para combater o crime organizado. A lei atribui a possibilidade de “conceder” benefícios (atenuação da pena, não apresentação de denuncia etc.) em troca da colaboração efetiva de quem concretamente pode ajudar a “maquina da Justiça”. A colaboração premiada, evidentemente, concretiza um instrumento indispensável à luta ao crime, mas — evidentemente — como está sendo discutindo, pode se transformar em um instrumento “monstruoso” de coerção, tornando-se ilegítimo ou abusivo contra os próprios colaboradores, se não for oportunamente tutelado conforme a ratio do instituto e, sobretudo, pelos princípios e pelas garantias da própria Carta Constitucional.

Isso, evidentemente, acontece ou aconteceria sobretudo (i) em relação à possibilidade de rescindir não ritualmente uma colaboração ritualmente homologada [veja-se, por exemplo, o caso de quando o colaborador já tenha prestado as preciosas informações, na maioria dos casos, moralmente contestáveis, mas juridicamente indispensáveis]; (ii) quando, durante a vigência da colaboração, o colaborador seja cautelarmente preso e se torne destinatário de varias denúncias formalmente diferentes no conteúdo e feitas por autoridades de Justiça diversas, mas sempre relacionadas a fatos e situações objeto da colaboração; (iii) submetendo e expondo os colaboradores a qualquer indagação ou publico juízo (por exemplo, através das comissões parlamentares de inquérito) independentemente da existência da investigação que deu origem à colaboração homologada pelo tribunal, e quando a própria lei da colaboração premiada prevê mecanismos a tutela da própria proteção do colaborador e da sua família contra eventuais exposição ao furor do povo etc.

É se perguntar se, em relação aos exemplos acima expostos, o colaborador não pareceria o próprio Josef K. do romance kafkiano, que foi submetido a abuso, persecução e tortura. Imagine-se: o acordo feito com o Judiciário, que antes existia e motivou a colaboração, hoje não existe mais; apesar do acordo, o colaborador é denunciado repetidamente pelas mesmas autoridades de Justiça às quais se entregou confiante da lei; o colaborador e qualquer membro da sua família ou amigo, que seja, é preventivamente julgado e condenado antes da própria corte pela sociedade e o ambiente de trabalho etc. Não são talvez também estas formas de tortura?

Justiça há a ser feita, sempre! Evitando, todavia, que o fazer justiça se torne injustiça. Por isso, existe a Constituição e os guardiões dessa!

O colaborador, ainda que tutelado pela Constituição [relembre, principalmente, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo 5o, XXXV), ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (artigo 5o, LII), a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (artigo 5o, XXXVI) etc.], ao assumir o papel de colaborador, se torna imediata e inevitavelmente sujeito vulnerável, porque de qualquer forma exposto à “força” inquisitória do Poder Judiciário, moralmente autorizado pelo “furor do povo” que já o condenou antes de qualquer sentença. Não parece, portanto, exagerado utilizar a expressão tortura (ainda que psicológica) se referendo a praticas que causem dores físicos e mentais para obter informações e confissões, para castigar, para intimidar, ou para discriminar, sem que de fato estes comportamentos sejam já por si sanções legitimas.

É exatamente em relação a situações de graves e potenciais violações à dignidade da pessoa que a sociedade toda espera que o Poder Judiciário exprima toda a “força” que há, para garantir o respeito daqueles princípios fundamentais e, por isso, irrenunciáveis, criados justamente para que qualquer um não se torne um Josef K!

[1] Kafka, Franz. O Processo. Martin Claret, São Paulo, 2011.

[2] Hugo, Victor. O homem que ri. Amarilys Editora,São Paulo, 2016.

[3] PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. São Paulo, Saraiva, 2018.

[4] https://www.conjur.com.br/2019-out-02/lava-jato-usava-prisao-provisoria-elemento-tortura-gilmar

[5] https://www.conjur.com.br/2019-ago-21/marighetto-dignidade-humana-limite-direitos-personalidade

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  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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