Opinião

As posições processuais de delatores e delatados em ações de improbidade

Autores

4 de novembro de 2019, 16h55

No dia 2 de outubro de 2019, o Supremo Tribunal Federal concluiu a primeira parte[1] do julgamento do HC 166.373, cujo objeto disse respeito à ordem de oferecimento de alegações finais em processo criminal que contasse, entre seus réus, com colaborador premiado.

Como bastante divulgado pela imprensa, a Corte concluiu, ao final daquela primeira etapa, que o réu colaborador, por ostentar condição especial e distinta no feito, deve se manifestar em alegações finais antes do delatado.

Argumentos importantes foram suscitados durante o julgamento, a começar pelo Ministro Alexandre de Moraes, inaugurador da divergência frente ao voto do relator, Ministro Fachin: “[o] direito de falar por último está contido no exercício pleno da ampla defesa englobando a possibilidade de refutar TODAS, absolutamente TODAS as informações, alegações, depoimentos, insinuações, provas e indícios em geral que possam, direta ou indiretamente, influenciar e fundamentar uma futura condenação penal, entre elas as alegações do delator.

O Ministro Marco Aurélio, encampando a tese divergente (e que se faria maioria), assentou de sua vez que “no processo-crime, ante ação penal de iniciativa pública, duas são as partes propriamente ditas: o Estado acusador, personificado pelo Ministério Público, presente integrante desse Órgão, e o acusado, ou acusados, caso haja ação plúrima sob o ângulo subjetivo, em decorrência de prática delituosa por diversos agentes.

Último a votar, o Ministro Presidente, Dias Toffoli, asseverou estar “convencido de que há constrangimento ilegal na hipótese em apreço, porque as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório asseguram o direito de o acusado delatado se contrapor a todas as cargas acusatórias, inclusive aquelas que emanam dos acusados colaboradores, máxime quanto levado em consideração que eles contribuem com a acusação.”

A leitura atenta dos argumentos que embasaram os votos formadores da maioria permitiu divisar a importância conferida a uma acepção substancial, e não apenas formal, do contraditório e da ampla defesa; mais que meras garantias de bilateralidade de audiência, devem ambas assegurar a possibilidade efetiva de influência sobre a convicção judicial, o que passa necessariamente, antes, pela composição integral do quadro e das balizas a respeito das quais é dado ao réu defender-se, como, aliás, é a tônica de outros dispositivos de nosso ordenamento, como os artigos 403, § 1º, do Código de Processo Penal e 11 da Lei n. 8.038/1990.

O julgado, então, nos provocou reflexão, de modo que passamos a considerar se sua ratio não seria igualmente aplicável ao direito sancionador, que, em larga medida, não raro se aproxima da dinâmica de responsabilização que permeia a esfera criminal. E isso não apenas com relação a razões finais, mas a todo o processo! A bem da clareza, a pergunta que nos intrigou foi se o rito da ação de improbidade deve sofrer alguma adaptação quando, como antecipamos, entre os réus da ação de improbidade se encontra colaborador ou leniente que haja contribuído para a própria instrução probatória em desfavor de corréu não colaborador ou leniente?

A hipótese poderia à primeira vista soar exótica: ora, se se cuida de leniente/colaborador, nem sequer mais deveria ele funcionar como réu na ação, certo? Na verdade, ainda presente uma leitura a nosso ver conservadora do artigo 17, § 1º, da Lei n. 8.429/1992, há membros do Ministério Público e juízes por vezes reticentes em admitir a transação em improbidade, de modo que o colaborador/leniente é incluído no polo passivo, sendo contra ele apenas deduzida a curiosa pretensão de cunho meramente declaratório da improbidade, sem sanções, já precificadas no ajuste celebrado. O problema é ainda maior quando o concerto é feito já em meio ao processo, com a ação em curso. Aquela leitura, por conseguinte, revela um problema grave e gera efeitos colaterais sobre todo o sistema, porque reverbera na própria angularização processual e em todos os direitos e deveres dela decorrentes: há um réu, no polo passivo, que pode não ser, verdadeiramente, réu.

O problema ganha em complexidade quando analisado sob a ótica do artigo 4º, IV, da Lei n. 12.850/2013, que condiciona, para o colaborador, o perdão judicial, a redução de pena ou sua substituição à “recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa”. O artigo 16, § 1º, III, e § 4º, da Lei n. 12.846/2013, em sentido parecido, exige a cooperação plena e permanente do leniente e prevê a estipulação de condições que assegurem a efetividade da colaboração.

À vista dessas disposições, nos parece fora de dúvida que, a exemplo do raciocínio desenvolvido pela maioria formada no STF por ocasião do julgamento do HC 166.373, nas ações de improbidade o corréu colaborador/leniente passa a potencialmente ostentar interesse jurídico peculiar, como, por exemplo, na cominação de sanção de reparação ao erário pelo agente ímprobo, podendo acabar funcionando como um não réu infiltrado no polo passivo, impassível de apenação. E isso deve repercutir, necessariamente, sobre o rito.

Na forma dos §§ 7º e 8º do artigo 17 da Lei n. 8.429/1992, a defesa preliminar ofertada pelos réus em ação de improbidade tem por finalidade específica subsidiar um juízo de admissibilidade que poderá ser negativo, abreviando a ação sempre que inexistente o ato de improbidade, improcedente manifestamente a ação (correção: o pedido) ou quando inadequada a via eleita. Se a ação já é proposta com base em leniência ou em colaborações, soa óbvio, em nossa opinião, que devem os réus, por ocasião de sua defesa, até para que possam adequadamente sustentar ausência de ato, improcedência do pedido ou inadequação da via, ter completo conhecimento de todos os argumentos, incluídos aqueles passíveis de serem aventados por corréus colaboradores/lenientes em abono à pretensão autoral.

Com muito mais razão a antecedência da manifestação de colaboradores e lenientes deverá ser observada quando da contestação (artigo 17, § 9º, da Lei n. 8.429/1992). Como sabido, já há algum tempo desde que o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento pela aplicação subsidiária do Código de Processo Civil à ação de improbidade administrativa (REsp 1.217.554/SP, DJe 22/8/2013; REsp 1452660/ES, DJe 27/04/2018), orientação essa que entendemos reforçada pelo artigo 318 daquele diploma, que, face ao viés preponderantemente cível da ação de improbidade, dispôs serem aplicáveis aos procedimentos especiais (o que seria o caso daquela ação) as normas do rito comum.

Em razão dessa aplicação subsidiária, incidem às contestações em sede de improbidade os artigos 341 e 342 do CPC, que oneram o réu com a impugnação específica dos fatos trazidos pela inicial e com a concentração de toda a sua matéria de defesa em sua contestação, o que somente será possível, obviamente, em havendo réu colaborador/leniente, se a “contestação” desses anteceder à daqueles que não ostentarem essa posição.

Já a respeito da instrução probatória, deve ser feita remissão ao artigo 7º do CPC, que assegura “às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.” Em sentido similar, o inciso VI do artigo 139 confere ao juízo a possibilidade de dilação de prazos e de alteração da ordem de produção das provas como forma de conferir maior efetividade à tutela do direito.

Ambos os dispositivos, como se percebe, refletem o que antes dito pelo artigo 1º do mesmo diploma: a lei processual deve ser aplicada como vetor de realização de disposições constitucionais, admitindo-se a flexibilização procedimental quando isso se revelar mais adequado à observância das garantias constitucionais de parte a parte; ou seja, também na dinâmica probatória, em benefício do contraditório, a produção e a ordem de inquirição e de manifestação haverá de se submeter à preferência dos colaboradores/lenientes sobre os demais corréus.

Finalmente, no que toca especificamente às razões finais, que não possuem regulação na Lei de Improbidade, recorremos ao artigo 364, § 2º, do CPC, que reza que, finda a instrução, e em sendo a causa complexa sob as perspectivas fática e/ou jurídica, poderá (na verdade, entendemos que deverá) o juízo remeter as alegações finais a razões escritas, a serem apresentadas pelas partes no prazo sucessivo de quinze dias.

Como se vê, o CPC ecoou a regra presente nos dispositivos mencionados mais acima, entendendo que a ampla defesa e o contraditório do réu passam pela garantia de que seja ele ouvido ao final, sucessivamente, quando já conhecidas as razões finais escritas do autor. Pelas razões já declinadas, só faz sentido propiciar aos réus um fecho de suas alegações, enfocando os resultados da instrução probatória, depois de conhecidas as manifestações de possíveis corréus colaboradores/lenientes.

Todas essas considerações, a par de simplesmente enunciarem nossa posição sobre o tema, entoam grande preocupação com que, de modo a evitar as dificuldades que serão enfrentadas pelo STF, na seara criminal, na continuidade do julgamento do habeas corpus mencionado no início deste artigo, se previnam desde logo possíveis nulidades, adotando-se analogicamente, na seara sancionadora de modo geral, a fundamentação adotada por aquela Corte.

Nesse sentido, em nossa opinião, quando houver no âmbito de ação de improbidade acordo de leniência ou de colaboração já firmado ou que venha a ser firmado no seu curso, deve o juízo, em homenagem aos artigos 9º e 10 do CPC, como questão prejudicial, homologar ou se pronunciar sobre a repercussão do ajuste sobre o feito o quanto antes (decididamente antes da instrução), cooperando assim para que todas as partes tenham orientação sobre como se comportar estrategicamente e sobre seus ônus, deveres e faculdades; adicionalmente, a decisão servirá também para estabelecer a ordem subsequente das manifestações, incluídas defesa preliminar, contestação, instrução probatória e razões finais escritas (sempre com precedência do colaborador/leniente sobre seus corréus). É o que pensamos.


[1] Quando da retomada do julgamento, o Tribunal definirá a abrangência da decisão.

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • Brave

    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!