Opinião

O impacto das ciências comportamentais na teoria jurídica

Autor

  • Fábio Portela Lopes de Almeida

    é assessor de ministro no Tribunal Superior do Trabalho mestre em Direito e em Filosofia pela Universidade de Brasília e doutor em Direito pela mesma instituição com estágio de pesquisa doutoral na condição de visiting researcher na Harvard Law School nos EUA e concluiu pesquisa pós-doutoral na Europa-Universität Flensburg na Alemanha na condição de visiting scholar do Interdisciplinary Centre for European Studies.

2 de novembro de 2019, 6h30

Algumas descobertas recentes em áreas como biologia evolutiva, etologia, neurologia, psicologia cognitiva e economia comportamental nos impele a repensar os próprios fundamentos do Direito. Essas abordagens são essenciais para respondermos a muitas questões que permanecem sem resposta na teoria jurídica. Qual a origem de nossa capacidade de interpretar regras e pensar em termos de justiça em relação às outras pessoas? A habilidade de raciocinar sobre questões normativas deriva de certos aspectos de nossa racionalidade inata e de mecanismos gravados em nossa psicologia moral por processos evolutivos?

Qualquer resposta a essas questões fundamentais exige que levemos em consideração as descobertas de outras ciências sobre como nós, humanos, nos comportamos. A etologia, por exemplo, vem demonstrando que muitos comportamentos morais que geralmente pensamos serem exclusivos de nossa espécie também foram identificados em outras espécies animais.

Outros animais têm habilidades e disposições complexas, necessárias para a vida em grupo. Já foi observado que os grandes símios, particularmente próximos do Homo sapiens em termos genéticos, são capazes de sentir empatia, envolver-se em cooperação mútua, reagir a certas injustiças, formar coalizões, compartilhar e mesmo de punir aqueles que se recusam a cumprir os comportamentos esperados. No caso humano, esses elementos instintivos também estão presentes desde a mais tenra idade. Como ilustram as pesquisas de Paul Bloom, mesmo crianças pequenas, com cerca de um ano de idade, já demonstram grande capacidade de cognição moral. Elas são capazes de identificar padrões de relacionamento de justiça distributiva, ainda que não possam explicar por que chegaram a uma certa conclusão (até porque nem sabem falar com essa idade!).

Além disso, vários estudos mostraram que certas conexões neurais em nossos cérebros estão ativamente envolvidas no processamento de informações relacionadas a recursos típicos do comportamento normativo. A capacidade de sentir empatia, por exemplo, é essencial por nos impedir de enxergar as outras pessoas como objetos ou outros meios para alcançar outros fins. A empatia é necessária para respeitar o imperativo categórico kantiano de tratar as pessoas como um fim em si mesmas.

Como Antonio Damasio e Joshua Greene descobriram em vários estudos em neurologia, muitos psicopatas não enxergam outras pessoas como agentes racionais que podem ser objeto de consideração moral, porque suas mentes enfrentam severa redução na capacidade de simpatizar com os outros. Várias pesquisas, utilizando equipamentos de ressonância magnética, vêm demonstrando que muitos psicopatas diagnosticados mostram deficiências/lesões em áreas do cérebro associadas à empatia, como o córtex pré-frontal e a junção temporoparietal.

Entre tumores e crimes: a neurologia do comportamento moral
Se isso soa como ficção científica, considere os seguintes casos.

Em 2000, um homem que até os 40 anos havia mostrado um comportamento sexual absolutamente normal, foi expulso de casa por sua esposa depois de ela descobrir que ele estava visitando sites de pornografia infantil e até havia tentado molestar crianças. Ele foi preso e o juiz determinou que ele teria que passar por um programa de reabilitação sexual ou enfrentar a prisão. Mas o homem logo foi expulso do programa depois de convidar mulheres no programa para fazer sexo com ele.

Pouco antes de ser preso novamente por falhar no programa, passou a sentir uma forte dor de cabeça e foi para um hospital, onde foi submetido a um exame de ressonância magnética. Os médicos identificaram um tumor em seu córtex orbifrontal, uma região do cérebro geralmente associada ao julgamento moral, bem como ao controle de impulsos e à regulação do comportamento social. Após a remoção do tumor, seu comportamento voltou ao normal. Sete meses depois, mais uma vez passou a demonstrar comportamento desviante – e outros testes mostraram o reaparecimento do tumor. Após a remoção do novo cisto, seu comportamento sexual voltou novamente aos padrões normais.

Outro caso interessante foi o de Charles Whitman que, até os 24 anos, era considerado uma pessoa moralmente normal, trabalhadora, honesta e pacífica. No entanto, em 1º de agosto de 1966, Whitman subiu ao topo da torre da Universidade do Texas onde, armado até os dentes, matou 13 pessoas e feriu outras 32 antes de ser morto pela polícia. Mais tarde, descobriu-se que, pouco antes dos assassinatos em massa, ele também havia assassinado a esposa e a mãe. No dia anterior, ele deixou uma carta datilografada na qual se podia ler o seguinte:

“Não entendo direito o que me leva a escrever esta carta. Talvez seja para deixar alguma vaga razão para as ações que realizei recentemente. Eu realmente não me entendo atualmente. Eu deveria ser um jovem razoavelmente inteligente e razoável. No entanto, ultimamente (não me lembro quando começou), fui vítima de muitos pensamentos incomuns e irracionais. ”

Na carta, também pediu para ser submetido a uma autópsia após sua morte, a fim de verificar se havia algo de errado com seu cérebro. O cérebro de Whitman foi examinado e os médicos encontraram um glioblastoma comprimindo a região de sua amígdala, associada à regulação da agressão e do medo.

O que isso significa para a teoria jurídica? Pelo menos isso significa que o Direito, até o presente, vem sendo fundamentado em uma falsa concepção metafísica de que o cérebro é uma lousa em branco e que nossas ações derivam de nossas disposições racionais.

A teoria do Direito Penal pressupõe que o infrator infringe a lei exclusivamente devido ao seu livre arbítrio e à capacidade de raciocínio. O Direito Privado pressupõe que as pessoas assinam contratos somente depois de considerar todos os seus possíveis efeitos legais e estão plenamente conscientes dos motivos que as motivaram a fazê-lo. A teoria constitucional pressupõe que todos são dotados de uma disposição racional que permite o livre exercício de direitos civis e constitucionais, como a liberdade de expressão ou a liberdade de religião.

Não há dúvida de que somos capazes de exercer esses direitos.

Mas esses exemplos mostram que a capacidade de interpretar normas e agir de acordo com a lei não deriva de uma lousa em branco dotada de livre arbítrio e racionalidade. Os fundamentos dessa habilidade estão arquitetados em uma mente complexa que evoluiu em nossa linhagem hominínea, dependente de estruturas cerebrais que nos permitem raciocinar e escolher entre alternativas diversas.

Isso significa que nossa racionalidade não é perfeita. Nossa mente não é afetada apenas por tumores, mas também por vários vieses cognitivos que afetam a racionalidade de nossas decisões.

Vieses cognitivos, normatividade e racionalidade
Desde a década de 1970, os psicólogos estudam esses vieses. Daniel Kahneman, por exemplo, ganhou o prêmio Nobel de 2002 em Ciências Econômicas por sua pesquisa sobre o impacto desses preconceitos na tomada de decisões. De acordo com ele, nossa mente é baseada em certas heurísticas (regras rápidas e frugais). Essas regras são úteis para avaliar determinadas situações, onde não há tempo para raciocinar e certos "atalhos" podem ser fundamentais para uma decisão rápida. Na maioria das situações, essas heurísticas nos ajudam a tomar as decisões corretas, mas também podem nos influenciar a cometer erros realmente estúpidos.

Existem dezenas de heurísticas que estruturam nossa racionalidade. Somos péssimos em avaliar a significância das correlações estatísticas; descartamos evidências desfavoráveis a nosso ponto de vista; tendemos a seguir o comportamento mais comum em nosso grupo (efeito rebanho); e tendemos a explicar eventos passados com base em nosso conhecimento presente, concluindo que tais eventos seriam facilmente previsíveis à época (viés de retrovisor). Estamos inclinados a cooperar com quem faz parte do nosso grupo (viés paroquialista), mas não com quem pertence a outros grupos. E esses são apenas alguns dos vieses identificados até o momento.

É realmente difícil superar esses vieses. Eles constituem muito do que chamamos de racionalidade, mas é preciso constatar que as 'falhas' causadas por eles são uma parte inevitável e inerente a nossa racionalidade. Certamente, com algum esforço, podemos evitar muitos erros por meio da utilização de algumas técnicas que poderiam nos levar a obter respostas imparciais e corretas.

No entanto, o uso de técnicas artificiais para superar tais vieses pode ser caro e exigir muito esforço. Podemos utilizar um computador e treinar habilidades matemáticas para superar vieses que causam erros na avaliação estatística, por exemplo. Mas como podemos usar um computador para raciocinar sobre moralidade ou questões legais "contornando" esses preconceitos psicológicos? Provavelmente, (ainda) não podemos.

O melhor que podemos fazer é reconsiderar os pressupostos psicológicos da teoria jurídica, levando em consideração o que realmente sabemos sobre nossa psicologia e como eles afetam nosso juízo. E há muitas evidências de que esses vieses realmente influenciam a maneira como os juízes avaliam os casos judiciais.

Por exemplo, Birte Englich, Thomas Mussweiler e Fritz Strack concluíram que mesmo os maiores especialistas em direito são realmente afetados por vieses cognitivos. Mais especificamente, eles estudaram os efeitos do viés de ancoragem na atividade judicial, submetendo 52 especialistas jurídicos a um experimento projetado para este fim. Os pesquisadores solicitaram que juízes experientes, com mais de dez anos de carreira, examinassem um caso jurídico hipotético de furto em uma loja e determinassem a sentença. Após a leitura do material, os participantes deveriam responder a um questionário ao final do qual definiriam a sentença.

Antes de responder às perguntas, no entanto, os juízes deveriam observar os pesquisadores jogarem um par de dados que determinaria qual seria a pena postulada pelo promotor. Metade dos dados foram 'viciados' para mostrar sempre os números 1 e 2. E a outra metade foi modificada para indicar 3 e 6. O resultado da soma dos dois números deveria ser considerado como a pena postulada pelo promotor do caso. Depois de observar o lançamento dos dados, os juízes deveriam responder a perguntas sobre questões legais relacionadas ao caso, incluindo a decisão sobre a sentença.

Os pesquisadores descobriram que os resultados dos dados tiveram um impacto real na sentença proposta: a pena média aplicada por juízes que tiveram dados com resultados superiores (3 + 6 = 9) foi de 7,81 meses na prisão, enquanto os participantes cujos dados resultaram em valores mais baixos (1 + 2 = 3), propuseram uma punição média de 5,28 meses.

Em outro estudo, realizado em Israel, constatou-se que, em média, juízes cansados e famintos acabam tomando a decisão fácil de negar o pedido de liberdade condicional, ao invés de concedê-la. No estudo, os pesquisadores dividiram o cronograma de juízes do dia em três sessões. No início de cada sessão, os participantes podiam descansar e comer. A pesquisa identificou que, logo após comerem e descansar, os juízes autorizaram a liberdade condicional em 65% dos casos. No final de cada sessão, a taxa de concessão de liberdade caiu abruptamente, chegando próximo a zero. Demonstraram, assim, que uma mente cansada e as necessidades fisiológicas de alimentação podem induzir decisões intrinsecamente injustas por não observarem critérios jurídicos.

Estudo após estudo, pesquisas interdisciplinares vêm demonstrando que (1) nossa capacidade de desenvolver o raciocínio moral é inata, (2) nossa mente está repleta de vieses inatos necessários para processar informações culturais em relação ao cumprimento das normas morais/legais, e (3) esses vieses afetam nossa racionalidade.

Essas pesquisas levantam muitas questões que terão de ser enfrentadas, mais cedo ou mais tarde, pelos juristas.

Precisamos redefinir o sentido da autonomia racional na teoria jurídica
Alguém diria que o devido processo legal é respeitado quando os juízes ancoram a decisão judicial em fatores completamente externos como fome e cansaço? Obviamente, esse experimento foi realizado em condições controladas e ninguém espera que um juiz jogue dados antes de julgar um caso. Mas o juiz também pode ser influenciado por outras âncoras, como os marcadores de tempo em um relógio, uma data no calendário ou um número impresso em uma cédula monetária. Ou alguém consideraria que o devido processo foi respeitado mesmo que a liberdade condicional não tivesse sido concedida porque o caso foi julgado no final da manhã? Esses elementos externos influenciaram decisivamente o resultado judicial, mas nenhum deles foi mencionado na decisão.

A teoria jurídica precisa incorporar esse conhecimento em sua estrutura. Precisamos construir instituições capazes de levar em conta os vieses já identificados pela psicologia e, na medida do possível, desenvolver estratégias institucionais para contorná-los ou diminuir sua influência. Por exemplo, sabendo que os juízes tendem a ficar impacientes e mais severos contra os réus quando estão com fome e cansados, um tribunal pode forçá-lo a fazer uma pausa de 30 minutos após 3 horas de trabalho para restaurar sua capacidade de ser o mais imparcial possível . Esta é apenas uma pequena sugestão sobre como as instituições podem responder a essas descobertas.

É claro que existem casos mais complexos, como a discussão sobre criminosos que sempre demonstraram bom comportamento, mas que tiveram a infelicidade de desenvolver um tumor cerebral que influenciou o cometimento de um crime. A teoria criminal é baseada na tese de que o agente deve se envolver intencionalmente em conduta criminal. Mas é possível falar sobre intenção quando um tumor foi uma causa direta do resultado? E se não tivesse sido um tumor, mas uma malformação cerebral resultante de uma história pessoal repleta de dramas emocionais, como ocorre em muitos casos de psicopatia? Dizer que o direito penal já poderia resolver esses casos, considerando que o criminoso não tinha responsabilidade devido à sua condição pessoal, é insuficiente para resolver o problema, porque a questão está no próprio conceito de intenção/dolo/autonomia assumido pela teoria jurídica.

E esse problema se propaga por toda a teoria do Direito. Devemos levar em conta o papel dos vieses cognitivos nas relações de consumo. O Direito ainda não percebeu o papel desses vieses na tomada de decisões, mas muitas empresas estão cientes deles. Quantas vezes você não comprou um refrigerante de 750 ml por R$ 2,00 apenas porque custa R$ 0,20 a mais que um de 500 ml? Possivelmente, você pensou que pagaria menos por ml do que pagaria se tivesse comprado o tamanho menor. Mas, no fim das contas, você realmente queria 500 ml e pagaria menos do que pagou por tomar refrigerante extra que não queria! Em outras palavras, a empresa apenas explora um viés específico que afeta a maioria das pessoas, a fim de induzi-las a comprar mais de seus produtos.

Outro exemplo: por razões evolutivas, os seres humanos tendem a consumir alimentos gordurosos e muito açúcar. As empresas exploram esse fato a favor do maior consumo, o que acaba gerando parte da crise da obesidade que vemos no mundo hoje. Em sua defesa, as empresas dizem que os consumidores compraram o produto por conta própria. O que eles não dizem, mas dizem as neurociências e a teoria da evolução, é que nosso “livre arbítrio” tem uma longa história evolutiva que nos leva a consumir exatamente esse tipo de alimento que, ao longo dos anos, afeta nossa saúde. E o Direito precisa levar esses fatos em consideração se desejar proteger e fazer cumprir adequadamente os direitos do consumidor.

O Direito ainda se baseia em um "modelo de agência" muito semelhante ao pressuposto de racionalidade da teoria dos jogos. Nossas decisões são avaliadas como se fôssemos absolutamente racionais, por juízes que julgam com base no pressuposto de que a decisão judicial é tomada exclusivamente com fundamento em critérios intrínsecos ao Direito. Mas isso é uma ilusão. Não somos absolutamente racionais. Toda decisão que tomamos é influenciada pela maneira como nossa mente opera.

Podemos realmente pensar que é justo culpar alguém que cometeu um crime com base em decisões geradas por um viés cognitivo? E, por outro lado, seria correto exonerar um acusado com base nessas suposições? Para responder a essas e outras questões adicionais, os juristas devem repensar o conceito de pessoa assumida pelo Direito, levando em consideração nossa natureza biológica intrínseca.

Apenas levando em consideração os resultados de pesquisas como as citadas será possível redefinir conceitos que, há muito, lastreiam nossa concepção de Direito. Se queremos de fato pensar em um Estado Democrático de Direito apto a decidir demandas de modo justo, precisamos refletir sobre como essas decisões são tomadas por seres humanos cuja racionalidade é, antes de tudo, imperfeita.

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    é assessor de ministro no Tribunal Superior do Trabalho, mestre em Direito e em Filosofia pela Universidade de Brasília e doutor em Direito pela mesma instituição, com estágio de pesquisa doutoral na condição de visiting researcher na Harvard Law School, nos EUA, e concluiu pesquisa pós-doutoral na Europa-Universität Flensburg, na Alemanha, na condição de visiting scholar do Interdisciplinary Centre for European Studies.

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