Limite penal

Por que a sociedade tem girado tanto em torno do processo penal?

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

1 de novembro de 2019, 8h00

Spacca
O princípio da dignidade da pessoa humana é tão importante que está estampado no art. 1º da Constituição da República e, dali, ilumina tudo, e sobretudo, o art. 5º, da mesma CR, que trata dos direitos e garantias individuais. Ele não se relativiza (mesmo que insistam alguns que querem tirar vantagem disso), razão por que é vital à democracia, dado albergar a todos, sem exceção. Discutido por muitos, ganhou em Kant, no seu Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o lugar principal. Segundo ele, o ser humano deve ser respeitado enquanto tal, em si mesmo, na sua singularidade. Por isso, não pode ser relativizado; não pode ser substituído por um equivalente, por exemplo, porque não tem preço: tem dignidade.

Respeitar a dignidade de uma pessoa, qualquer que seja, é respeitar sua diferença, como nota do seu espaço individual; dignidade do outro. O outro vale em si, justo porque tem dignidade. Isso forja e funda o amor, a tolerância e, no final das contas, a democracia. Todos são conceitos ligados ao respeito pela diferença. O ser humano, afinal, como se sabe, na modernidade constituiu seus laços, dentre outras coisas mas principalmente, a partir da dignidade humana. Agora, porém, no neoliberalismo, virou consumidor; e tem aparecido assim, como se isso fosse normal. Quem não consome, por outro lado, está, de certa forma, fora da ordem, mormente porque aquilo que começou como mera teoria econômico-política virou, logo, epistemologia; e dita, cada vez mais, a racionalidade que preside o agir de todos; ou quase todos. Aquele que não consome, junto com seus próximos, tende a ser objeto de ódio, justo o oposto do amor. Enfim, se não consome, é visto como diferente; e sobre ele não se tem controle, razão pela qual parece ser, sempre, uma ameaça.

Eis, então, por que se sente que se pode descarregar nele, o outro (não consumidor, pobre e assim por diante), a carga de ódio que vai fomentada, ideologicamente, todos os dias. O status quo, porém, já não mais permite tal descarga, porque o lugar da cidadania é muito forte.

E aí, quem sabe, estejam as formas legais de “pegar” o outro, particularmente o processo penal. O trabalho “sujo” fica para o “sistema”; e todos gozam com a descarga do “seu” ódio, não importando que, para tanto, tenha-se que descumprir a Constituição da República e as leis. Os fins, justificam os meios. É como se ninguém cometesse ilícito algum; como se essa gente não pudesse vir a ser o acusado no processo penal. Como se estivesse presente uma cegueira cívica.

Mas tem um preço a pagar: esse “outro” é, antes de ser um não consumidor, um ser humano e, portanto, tem dignidade. Mais ou menos aquilo que Freud, de modo genial, disse aos comunistas soviéticos (ele tinha coragem!), pode ser dito aqui: se você, na máquina que monta para manipular o sistema, esquece do homem, uma hora o desejo faz com que ele se revolte e se coloque em cena. No início do Século XX, com os czares, a aristocracia, certo dia, acordou com eles nas suas casas; e eram tantos que o exército czarista estava, de certa forma, junto. Mais tarde, quando os comunistas da DDR (Alemanha Oriental) se deram conta, estavam eles em cima do muro de Berlim, fazendo-o em pedaços, movidos pelo mesmo desejo daqueles que, antes, foram enxovalhados.

O que funda uma sociedade democrática é a vergonha; e ela só ganha espaço quando, no laço social, não só há respeito pelo outro e sua diferença como, porque isso vem garantido pela dignidade da pessoa humana.

Usar o processo penal para fazer de conta que a realidade não é assim chega a ser ofensivo à razão.

*Texto parcialmente apresentado em conferência proferida, com o mesmo título, no I SIBRADI – Simpósio Brasileiro de Direito, em homenagem ao saudoso Prof. Victor Alberto Azi Bonfim Marins, APLJ – Academia Paranaense de Letras Jurídicas, Ponta Grossa, 29.11.19.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

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