Escoamento de riquezas

Administração pública vive na prática o "Direito Administrativo do medo"

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31 de março de 2019, 8h00

Spacca
A cruzada anticorrupção que tomou conta do senso comum no Brasil foi anunciada como se quisesse acabar com a apropriação do setor público por interesses privados. Mas o principal efeito foi causar certo atavismo da burocracia. "Corrupção" é um carimbo que cabe em tudo, e por isso os técnicos do governo foram acometidos por um medo de tomar decisões fora do script, com medo de terem de responder a processos.

"É a aplicação do Direito Administrativo do medo", comenta o advogado Benjamin Caldas Gallotti Beserra, especialista no setor portuário. Em entrevista à ConJur, ele conta ter ouvido a expressão numa palestra do ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, para falar sobre os efeitos das decisões da corte: os técnicos não tomam decisões, não destravam investimentos, com medo de terem de responder pessoalmente pelo prejuízo eventualmente causado por aquele contrato.

A defesa contra esse fenômeno é o indeferimento de algum pleito legítimo, ou o engavetamento de uma proposta importante para o desenvolvimento do país. "Quando existe um excesso punitivo, tudo é visto como corrupção, e não como erro. Isso tem prejudicado o desenvolvimento do país. O técnico tem medo de dar opinião, de tomar uma decisão", afirma Gallotti.

Outra causa desse fenômeno é o que ele chama de excesso de regulamentação. Assuntos que não precisam de tratamento especial, mas acabam sendo alvo de resoluções de agências reguladoras por causa de determinações do TCU, ou até do Judiciário, sem conhecimento prático do problema. Preocupante, diz ele, num setor que transporta 95% das riquezas produzidas pelo país.

Leia a entrevista:

ConJur — Há excesso de controle estatal na regulação da infraestrutura? 
Benjamin Gallotti  Há 20 anos havia uma ausência normativa, não tinha modelos como o das normas da Antaq, tinha que tirar da cabeça, dos conceitos jurídicos, da sua formação. Mas hoje há excesso, que vem justamente da padronização de situações que nem sempre são idênticas. Houve evolução: a Antaq, que é a mais atuante, com mais de 5 mil resoluções e uma série de instruções normativas e resoluções normativas, portarias, juntamente com a Secretaria de Portos, chegaram a se exceder. O que tem acontecido é que elas têm vontade de regulamentar, mas, como os assuntos ainda não estão totalmente cristalizados, elas têm que rever muito as normas e isso é ruim.

ConJur — O chamado "sistema U", com TCU, AGU, CGU etc., atrapalha o desenvolvimento do país com suas ferramentas de controle?
Benjamin Gallotti — Há algumas determinações do Tribunal de Contas para que a Antaq regulamente assuntos que não precisam ser regulamentados. Quando se conceitua, limita. E às vezes a limitação é desnecessária. A taxatividade às vezes impede a adequação de uma condição boa, que é importante para o país, que é de vontade de todos, mas que o técnico fica impedido de fazer porque a norma não previu.

ConJur — O Judiciário deve ser mais contido em casos ligados a infraestrutura?
Benjamin Gallotti
  Não há como evitar que questões sejam levadas ao Judiciário. Mas os juízes realmente não conhecem a realidade de um porto. Às vezes não sabem que a interdição de um porto em um dia gera prejuízos milionários. Reconheço que, para o Judiciário, é muito difícil conhecer tudo de tudo é impossível. A probabilidade de o Judiciário errar por não conhecer o setor é muito grande. A demora para analisar projetos é um dos assuntos que mais demandam intervenção judicial, ou o excesso de regulação, que às vezes o particular não entende. Mas é um assunto polêmico. Toda vez que o Judiciário intervém nessa atividade, que é muito específica, fica sujeito a esse tipo e problema.

ConJur — O que o excesso de regulação pode causar ao país?
Benjamin Gallotti
  É a aplicação prática do "Direito Administrativo do medo". É uma expressão do ministro Bejamin Zymler, do TCU, que ele falou numa palestra para reconhecer as consequências da atuação do tribunal e nunca esqueci. Ele usou a expressão para dizer que o técnico se defende indeferindo um pleito que seria importante para o país por ter uma dúvida, por não ter regulamentação específica para o assunto. Às vezes é exigência do próprio técnico, que diz que, na ausência de norma, ele não pode agir. Esse direito administrativo do medo é o técnico defendendo seu CPF para que não tenha nenhum tipo de problema no futuro. Quando existe um excesso punitivo, tudo é visto como corrupção, e não como erro. Isso tem prejudicado o desenvolvimento do país. O técnico tem medo de dar opinião, de tomar uma decisão, e depois ser responsabilizado ou acusado de alguma coisa. 

ConJur — Qual o modelo ideal de gestão para os portos?
Benjamin Gallotti
  O melhor regime seria o do porto público eficiente como o privado, desregulamentando o máximo possível esse regime de exploração que mostra eficiência ano a ano. Os portos ganham e o volume movimentado bate recorde em cima de recorde.

O modelo de gestão parte de uma política pública do que seria o ideal. A atividade econômica, quando desenvolvida pela iniciativa privada, na maioria das vezes, é mais eficiente do que se fosse pela administração pública. Agora, a gestão do porto busca sempre ter uma mão do governo lá dentro. É diferente um terminal específico, que tem um só dono que movimenta determinado tipo de carga, do porto de Santos, por exemplo, com quilômetros de cais, tem que organizar a entrada de navios, organizar o zoneamento para não haver conflito de cargas e coisas do tipo.

ConJur — O que acha da fusão da Antaq com a ANTT?
Benjamin Gallotti  O setor portuário tinha a Portobras que surgiu na década de 1970 e foi até a década de 1990. Desde então o setor não tinha visibilidade. A Antaq nasceu pequenininha, mas vem se desenvolvendo e nesse período foi dada mais visibilidade ao setor. A fusão não traz benefício para o setor. Muito pelo contrário, tira a pouca visibilidade que o setor tinha, reduz o conhecimento técnico que veio sendo construído ao longo dos últimos 17 anos pela agência. Pode haver benefício de economia para o governo, porque pode haver a fusão de algumas redundâncias e isso vai resultar numa estrutura menor. Mas é uma economia que não vale a pena. O setor portuário transporta 95% das nossas riquezas, portanto, merece mais atenção, não essa fusão.

ConJur — O último relatório da Antaq espera que em 2019 os portos movimentem um bilhão de toneladas de cargas. Que risco o Judiciário apresenta nesse cenário?
Benjamin Gallotti — A questão regulatória judicial não está intimamente ligada ao volume de carga. Se transportasse a metade, seria a mesma coisa. Apesar da crise, o setor vem sempre crescendo. Na questão do aumento de volume, o que a gente vê é que cada vez mais o Judiciário vai ser demandado, com maiores quantidades de players no mercado, mais empresas e mais questões vão sendo trazidas para o judiciário. E o Judiciário em algum momento vai ter que se dedicar.

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