Versão inverossímil

Faro de cachorro não justifica busca em casa sem mandado judicial

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30 de março de 2019, 12h06

Em um ambiente onde há diversos pontos de droga e por onde transitam muitas pessoas, não é crível que um cão farejador indique com precisão que há maconha em uma casa específica. Portanto, a mera agitação do animal não é indício suficiente da posse ilegal de entorpecente que autorize policiais a invadirem o imóvel sem mandado judicial.

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Para juiz, não é crível versão policial de que cão farejou maconha em casa na Rocinha.

Com esse entendimento, a 31ª Vara Criminal do Rio de Janeiro considerou ilícita a apreensão de uma pistola, munição e um cigarro de maconha na casa de Amarildo Gomes da Silva, na favela da Rocinha, zona sul da capital fluminense, e o absolveu dos crimes de posse ilegal de arma de fogo, posse de drogas e associação ao tráfico. O acusado é filho do pedreiro Amarildo, que desapareceu em 2013 após ser detido por policiais militares.

Em 2017, policiais afirmaram que faziam ronda na Rocinha quando um cão farejador sinalizou a casa de Silva. De acordo com os PMs, a mãe do acusado permitiu que eles adentrassem a residência e fossem ao quarto de Silva. Lá, encontraram uma pistola, 45 balas e um cigarro com 0,7 grama de maconha. Questionado sobre a arma, Amarildo Silva disse que era para se proteger, pois o grupo ligado ao traficante Nem havia dito que iria matá-lo por ele ter se associado à turma de Rogério 157.

O Ministério Público o denunciou por porte ilegal de arma de fogo (artigo 16, caput e parágrafo único, IV, da Lei 10.826/2003), posse de drogas e associação ao tráfico (artigos 28 e 35 da Lei 11.343/2006). Porém, em alegações finais, a promotoria pediu a absolvição de Silva da acusação de associação ao tráfico.

A defesa do réu, comandada pelo criminalista Rafael Faria, argumentou que as apreensões da arma, das munições e da maconha eram ilegais, uma vez que a polícia teria entrado na casa dele sem autorização judicial. Além disso, o advogado disse que seu cliente agia em legítima defesa ao manter a arma em sua residência, visto que vinha sofrendo ameaças. Faria também sustentou que a 31ª Vara Criminal era incompetente para julgar posse de drogas – questão geralmente apreciada pelos juizados especiais criminais.

Ação ilegal
Em decisão proferida nesta segunda-feira (25/3), o juiz Roberto Câmara Lacé Brandão destacou que as apreensões da arma, das munições e da maconha foram ilegais. Isso porque os policiais não tinham mandado judicial para entrar na casa do réu, e o argumento de que o cachorro farejou a droga é frágil.

"Difícil crer que, num ambiente como o da Rocinha, comunidade dominada por facções que exploram o tráfico ilícito de entorpecentes em alta escala, onde são vários os pontos de venda de drogas, consumidas regular e diariamente por elevada gama de pessoas, em via pública, à luz do dia (esta é a notória realidade), um cão farejador, por melhor que seja seu olfato, seja capaz de indicar uma residência isolada, na qual está sendo armazenado (não estava sendo usado, posto que o réu dormia) um único cigarro artesanal de maconha. Mais difícil ainda acreditar que, por obra do mero acaso, esse cão tenha levado a guarnição policial justamente para a residência do filho do desaparecido Amarildo (suposta vítima de tortura e homicídio, em ação imputada à Polícia Militar, fato que ganhou a mídia e notoriedade internacional)", opinou o juiz.

Ele também disse não ser crível a versão dos PMs de que a mãe de Silva voluntariamente permitiu que eles entrassem em sua residência e a examinassem. Brandão lembrou que, em depoimento, a mulher contou que um policial pulou o muro de sua casa com o cão. Ele então foi até a janela e ordenou que ela abrisse a porta para que os demais PMs entrassem no imóvel. "Tal dinâmica demonstra, como bem enfatizado pela defesa técnica, que se alguma autorização houve para ingresso no imóvel, essa manifestação de vontade está viciada pela palpável situação de coação", sustentou o julgador.

De acordo com Brandão, não havia como os policiais perceberem, antes de entrar na casa, indícios de crimes. Dessa maneira, ressaltou, eles desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio. Com isso, as provas decorrentes de tal ação são ilícitas, disse o juiz.

Também é nula a confissão de Silva de que tinha se associado à facção comandada por Rogério 157, argumentou Roberto Brandão. Isso porque a declaração feita aos PMs foi feita sem que o réu fosse informado de seus direitos – inclusive o de permanecer calado – e sob ameaças e agressões físicas.

Devido à nulidade das provas, o juiz absolveu Amarildo Silva das acusações de posse ilegal de arma de fogo, posse de drogas e associação ao tráfico.

Segundo o advogado de Silva, Rafael Faria, foi feita justiça, uma vez que seu cliente só foi acusado por ser pobre.

"Não basta estar em uma condição econômica desfavorável. O pobre é criminalizado na essência. O que seria um direito – a inviolabilidade de domicílio – acaba sendo relativizado porque a pessoa é pobre. Já que o pobre não tem endereço certo, expedem mandados de busca e apreensão coletivos, por exemplo. A Justiça conferiu o mais puro reconhecimento constitucional à matéria", disse Faria.

Clique aqui para ler a íntegra da decisão.
Processo 0261182-05.2017.8.19.0001

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