Ambiente Jurídico

Fósseis são patrimônio cultural ameaçado no Brasil

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

30 de março de 2019, 8h00

Spacca
O patrimônio cultural brasileiro é megadiverso. Conjuntos arquitetônicos coloniais e modernistas; templos religiosos adornados por peças escultóricas de rara beleza; estações ferroviárias e fábricas centenárias; acervos museológicos e arquivísticos de grande raridade; manifestações culturais que englobam formas de fazer reconhecidas como de valor para humanidade, tudo isso representa uma face importante do conjunto de bens que conferem identidade ao nosso povo.

Contudo, há bens culturais de extremo significado, mas que, por diversas razões, sua importância ainda não foi devidamente compreendida pela sociedade em geral e mesmo pelos entes integrantes da administração pública brasileira. Com efeito, ainda temos em nosso país o que denominamos de “patrimônio sem rosto”, que lamentavelmente figura em uma situação marginal e de flagrante exposição a risco de perecimento.

Nessa categoria estão os chamados bens paleontológicos ou fossilíferos, que são objeto da Paleontologia (do grego palaios = antigo; ontos = ser; logos = estudo), ciência da Terra que se ocupa do estudo de espécies antigas ou desaparecidas, mediante a análise de fósseis (do latim fossilis = extraído da terra).

Juridicamente, considera-se como fóssil qualquer resto, vestígio ou resultado da atividade de organismo que tenha mais de 11 mil anos ou, no caso de organismo extinto, sem limite de idade, preservados em sistemas naturais, tais como rochas, sedimentos, solos, cavidades, âmbar, gelo e outros, e que sejam destinados a museus, estabelecimentos de ensino e outros fins científicos[1]. Entre os vestígios paleontológicos resultantes de atividades de organismos podem ser citados sementes, frutos, ovos, ninhos, coprólitos, pegadas, pistas, marcas de alimentação e paleotocas.

Os fósseis são elementos de grande importância científica e cultural, uma vez que guardam informações sobre a evolução dos seres vivos ao longo do tempo e, na maioria das vezes, sobre o processo de formação geológica da Terra[2], contribuindo para o entendimento dos paleoambientes, da idade relativa das rochas e da evolução cronológica do planeta.

Ademais, são bens de extrema raridade, pois segundo dados da Sociedade Brasileira de Paleontologia estima-se que menos de 1% dos seres vivos que habitaram a Terra se fossilizaram (para que um organismo fossilize, são necessárias condições muito especiais) e que, destes, menos de 1% são de conhecimento dos paleontólogos[3].

De acordo com Carlos Fernando de Moura Delphim[4]:

De forma análoga ao passado dos seres humanos, o passado da Terra deve também ser preservado como patrimônio cultural. Ademais, a terra e seus recursos minerais são fonte de toda matéria-prima e de inspiração para qualquer produção cultural. Patrimônio é sinônimo de herança e os órgãos responsáveis pela herança cultural devem atuar na defesa dos bens geológicos e paleontológicos, que devem ser legados, da forma mais íntegra e autêntica possível, às gerações porvindouras.

A preocupação com a preservação e a proteção de fósseis no Brasil não é recente.

Na época do Império, dom Pedro II já manifestava a consciência do significado dos fósseis, sendo que incentivou a formação de uma comissão científica para pesquisar o patrimônio paleontológico da região da Chapada do Araripe, que compreende um conjunto de rochas calcárias de 9 mil km2 no sul do Ceará, situada em região que era uma laguna no Período Cretáceo, o que explica a enorme quantidade de peixes fossilizados encontrada no local.

Nos dias de hoje a Chapada do Araripe é considerada um dos principais sítios paleontológicos do planeta Terra e foi inserida na Rede Mundial de Geoparques (Global Geoparks Network) da Unesco em razão da relevância do seu conteúdo paleontológico, com registros entre 150 e 90 milhões de anos, que apresentam um excepcional estado de preservação e revelam uma enorme diversidade paleobiológica, o que inclui a maior concentração de vestígios de pterossauros do mundo, além de 20 ordens diferentes de insetos fossilizados, além de fósseis de plantas com flores, que demonstram as interações primitivas entre insetos e plantas.

Contudo, por ser também uma das regiões mais pobres do país, a chapada sofre com o contrabando de fósseis, uma vez que, na época da seca, muitos dos lavradores locais vão trabalhar em pedreiras, onde encontram fósseis e os vendem a atravessadores e oportunistas por preços que variam de R$ 1 a R$ 1 mil, em média.

Infelizmente, há registros de dezenas de fósseis brasileiros que foram parar ilegalmente em museus e coleções particulares da Europa, dos EUA e de países da Ásia, que saem lucrando com a paleopirataria. Também não é incomum encontrar fósseis brasileiros à venda em sites internacionais de comércio virtual.

Agrava a situação de perda do nosso patrimônio a tímida normatização existente em nosso país sobre a proteção dos bens fósseis e quase absoluta falta de estrutura oficial para fiscalizar a sua extração e monitorar a sua adequada gestão.

Regulamenta a matéria ora tratada apenas o Decreto-Lei 4.146/42, que conta com um único artigo, que assim dispõe:

Art. 1º Os depósitos fossilíferos são propriedade da Nação, e, como tais, a extração de espécimes fosseis depende de autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional da Produção Mineral, do Ministério da Agricultura.

Parágrafo único. Independem dessa autorização e fiscalização as explorações de depósitos fossilíferos feitas por museus nacionais e estaduais, e estabelecimentos oficiais congêneres, devendo, nesse caso, haver prévia comunicação ao Departamento Nacional da Produção Mineral.

Lamentavelmente, os depósitos fossilíferos (qualquer sistema natural que contenha um ou mais fósseis) estão protegidos em nível infraconstitucional tão somente em razão da sua dominialidade e foram colocados sob a guarda do órgão federal responsável por autorizar e fomentar as atividades de mineração, uma das maiores responsáveis pela destruição de bens paleontológicos no país.

Por isso, no Brasil, o regime jurídico conferido a um sítio paleontológico repleto de fósseis de animais ou vegetais raros não difere daquele relacionado a um monte de areia, segundo a ótica prevalente, para a qual estão sujeitos abstratamente às mesmas sanções tanto o cientista que retira ilicitamente fósseis de pterossauros para remessa ao exterior (paleopirataria) quanto o rústico braçal que extrai do leito de um rio uma carroça de areia para utilizar na construção de sua moradia.

Atualmente, as instituições de defesa do patrimônio cultural e natural brasileiro, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, estão alijadas da gestão do patrimônio paleontológico do país, que está entregue, como já asseverado, à Agência Nacional de Mineração (ANM), sucessora do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Nos termos da Lei 13.575/2017:

Art. 2º. A ANM, no exercício de suas competências, observará e implementará as orientações e diretrizes fixadas no Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Mineração), em legislação correlata e nas políticas estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia, e terá como finalidade promover a gestão dos recursos minerais da União, bem como a regulação e a fiscalização das atividades para o aproveitamento dos recursos minerais no País, competindo-lhe:

XIII – normatizar, orientar e fiscalizar a extração e coleta de espécimes fósseis a que se refere o inciso III do caput do art. 10 do Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Mineração), e o Decreto-Lei nº 4.146, de 4 de março de 1942, e adotar medidas para promoção de sua preservação.

A Portaria 542/2014, do Departamento Nacional de Produção Mineral, estabelece os procedimentos para autorização e comunicação prévias para extração de fósseis, nos termos do Decreto-Lei 4.146, de 4 de março de 1942, e dá outras providências.

Contudo, o descumprimento de tais regras, quando descoberto, tem levado o poder público à adoção de medidas tão somente em razão da dominialidade federal dos bens paleontológicos, mediante uso da Lei 8.176/91, que trata da apropriação de matéria-prima de propriedade da União, consoante se depreende do seguinte precedente:

Os réus afirmaram perante a autoridade policial que não possuíam licença específica para a comercialização de produtos pertencentes à União. De outro lado, os réus foram surpreendidos vendendo pedras e madeiras fossilizadas, sem apresentar nenhuma autorização provinda do órgão competente. Os conjuntos de fossilíferos pertencem à União, a teor do art. 1º do Decreto-Lei n. 4.146/42. 5. É descabida a alegação de que a denúncia descreve fato atípico. A autorização para a exploração de produtos e matéria-prima pertencentes à União, bem como sua comercialização, pertence ao DNPM, conforme prevê o Decreto. Até que seja aprovado o projeto de Lei mencionado na sentença, tratando de forma especial a comercialização de fósseis, vigora o Decreto nº 4146/42, sendo punível a exploração e venda de produtos pertencentes à União, sem autorização do DNPM, nos termos do artigo 2º da Lei nº 8.176/91. (TRF 3ª R.; RSE 0005796-19.2009.4.03.6181; SP; Quinta Turma; Rel. Juiz Conv. Tânia Marangoni; Julg. 18/03/2013; DEJF 01/04/2013; Pág. 1130).

Apesar do vazio infraconstitucional, somos de entendimento que, para além do aspecto da dominialidade do suporte físico (corpus), o patrimônio paleontológico congrega um complexo de valores naturais (geológicos e biológicos, por exemplo) e culturais (históricos, educacionais e turísticos) de relevância científica, que o coloca sob a proteção expressa do artigos 216, V, da Constituição Federal, tornando-o bem de natureza difusa (pertence a todos ao mesmo tempo em que não pertence, de forma individualizada, a qualquer pessoa) e de conteúdo não patrimonial.

Com efeito, dispõe expressamente o aludido dispositivo constitucional que integram o patrimônio cultural brasileiro os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Insta salientar, ainda, que a dimensão cultural do patrimônio paleontológico também é reconhecida no regime jurídico internacional, sendo que a convenção sobre as medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedades ilícitas dos bens culturais, concluída em Paris a 14 de novembro de 1970, promulgada no Brasil pelo Decreto 72.312/73, estabelece quea expressão bens culturais significa quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido expressamente designados por cada Estado como de importância para a arqueologia, a pré-história, a história, a literatura, a arte ou a ciência, e que pertençam às seguintes categorias: a) as coleções e exemplares raros de zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objeto de interesse paleontológico”.

Por tudo isso, entendemos que o patrimônio paleontológico brasileiro é um bem público, sob a ótica da dominialidade, e um bem de natureza difusa em razão dos valores naturais e culturais que o constituem. Assim, o patrimônio paleontológico pode ser considerado como um bem de uso comum do povo, de natureza indisponível, inalienável e imprescritível devendo ser protegido em benefício das presentes e futuras gerações.

A referência expressa, feita pela Constituição Federal, à condição de os sítios paleontológicos serem integrantes do patrimônio cultural brasileiro (artigo 216, V) nos parece suficiente para qualificá-los como objeto material do crime tipificado no artigo 63 da Lei 9.605/98[5], que pode ser utilizado como importante instrumento de combate à extração irregular de fósseis, em reforço ao previsto no artigo 2º da Lei 8.176/91[6], viabilizando a responsabilização criminal de pessoas jurídicas (artigo 3º da Lei 9.605/98) e a imputação de responsabilidade pela prática dos dois crimes em concurso formal, posto que tutelam bens jurídicos distintos[7].


[1] Segundo o artigo 2º, I, da Portaria DNPM 542, de 18/12/2014, DOU de 22/12/2014, que estabelece os procedimentos para autorização e comunicação prévias para extração de fósseis, nos termos do Decreto-Lei 4.146, de 4 de março de 1942, e dá outras providências.
[2] Segundo o item 6 da Carta de Digne – Declaração Internacional dos Direitos à Memória da Terra (1991): Assim como uma árvore guarda a memória do seu crescimento e da sua vida no seu tronco, também a Terra conserva a memória do seu passado, registrada em profundidade ou à superfície, nas rochas, nos fósseis e nas paisagens, registro esse que pode ser lido e traduzido.
[3] Manifesto da Sociedade Brasileira de Paleontologia sobre a validade da evolução biológica e seu ensino nas escolas do país.
[4] DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Patrimônio cultural e Geoparque. Geol. USP, Publ. espec., São Paulo, 2015.
[5] Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
[6] Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena: detenção, de um a cinco anos e multa. § 1° Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.
[7] Nesse sentido, em situação símile: PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. CRIMES DO ARTIGO 2º DA LEI Nº 8.176/91 E DO ARTIGO 55 DA LEI Nº 9.605/98. CONCURSO FORMAL. DESPROVIMENTO. 1. As normas insculpidas nos artigos 55 da Lei nº 9.605/98 e 2º da Lei nº 8.176/91 tutelam bens jurídicos distintos — meio ambiente e usurpação de patrimônio da União —, razão pela qual a conduta de explorar/extrair recursos minerais sem a respectiva autorização ou licença dos órgãos competentes amolda-se a ambos os tipos legais, em concurso formal, não merecendo guarida o pleito defensivo de enquadramento da conduta em crime único. 2. Desprovimento dos embargos infringentes (TRF 4ª R.; ENUL 5001149-54.2016.4.04.7204; SC; Quarta Seção; Rel. Juiz Fed. Nivaldo Brunoni; Julg. 31/01/2019; DEJF 07/02/2019).

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