Reflexões Trabalhistas

A Medida Provisória 873/2019 e o futuro das negociações coletivas de trabalho

Autor

  • Raimundo Simão de Melo

    é consultor Jurídico advogado procurador regional do Trabalho aposentado doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e autor de livros jurídicos.

29 de março de 2019, 8h05

Spacca
Em 1º/3/2019 foi expedida a Medida Provisória 873/2019, restringindo e submetendo o pagamento das contribuições destinadas aos sindicatos, a qualquer título, inclusive as derivadas de vínculo associativo ou conteúdo obrigacional, à condição de manifestação individual prévia e expressa do trabalhador, sem possibilidade de autorização tácita, assemblear e/ou pelo direito de oposição ao desconto, determinando que o pagamento de quaisquer contribuições aos sindicatos somente pode ser feito por meio de boleto bancário ou equivalente eletrônico.

Cabe verificar se essa MP conforma-se com a Constituição Federal de 1988, ante o que diz seu artigo 62:

“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.

O que valida uma medida provisória é a existência de um estado de necessidade que imponha ao Executivo a adoção imediata de providências, de caráter legislativo, inalcançáveis pelas regras ordinárias de legiferação, em face de um real e concreto perigo de demora pela prestação legislativa natural. Por isso, as medidas provisórias traduzem instrumento de uso excepcional pelo chefe do Poder Executivo, porque sua emanação configura momentânea derrogação do princípio constitucional da separação dos Poderes (ADI 221, ministro Celso de Mello), havendo a possibilidade do seu controle jurisdicional, ante a necessidade de impedir que o presidente da República incida em excesso de poder ou de manifesto abuso institucional (ADI 2.213-0).

A MP 873/2019 promoveu profunda alteração no já enfraquecido sistema de custeio sindical no Brasil, depois de a Lei 13.467/2017 ter acabado com a compulsoriedade da contribuição sindical, antigo imposto sindical.

Também visou a MP 873 corrigir a atuação judicial em relação à interpretação e aplicação da Lei 13.467/2017 pelos juízes do trabalho, querendo negar a eles o poder de interpretarem as leis, algo que existiu no absolutismo monárquico, quando a lei teria que ser interpretada segundo a vontade do legislador, o que não tem esteio constitucional no nosso Estado Democrático de Direito e na separação e independência dos Poderes da República (artigo 2º da CF).

Se no aspecto formal a MP 873 padece de vícios, materialmente ela pode ser inquinada de violadora de preceitos da liberdade e da autonomia sindicais, insculpidos no artigo 8º, inciso I da Constituição Federal, que veda a interferência e intervenção do Estado na organização sindical, inciso III, que assegura a representação sindical de todos os integrantes da categoria, associados e não associados dos sindicatos, ante o dever que têm os sindicatos de defendê-los e o inciso IV, que assegura a contrapartida financeira aos sindicatos, aprovada nas assembleias gerais dos trabalhadores, com desconto em folha de pagamento pelas empresas, cujos termos estão assim escritos:

Art. 8º – "É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical (grifados);
III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (grifados);
IV – a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei" (grifados).

Os sindicatos têm o dever de defender os direitos e interesses coletivos e individuais de toda a categoria, o que depende de dinheiro vindo dos trabalhadores que eles representam. Isso é condição para o desempenho concreto e efetivo das atribuições sindicais, pelo que, dificultando o financiamento sindical, a MP 873/2019, determinando que seja devido apenas pelos filiados dos sindicatos, com autorização individual e cobrança por boleto bancário, estará criando barreiras indevidas e intransponíveis à livre atuação dos sindicatos na defesa dos interesses e direitos dos trabalhadores que representam: todos, e não somente seus associados.

Com efeito, as assembleias sindicais são órgãos máximos e soberanos das categorias profissionais e econômicas, sendo nelas que os trabalhadores, democraticamente convocados e reunidos, discutem e decidem sobre as reivindicações aos patrões, aceitação do resultado das negociações coletivas, declaração de greve e a forma de custeio das atividades sindicais. A MP 873/2019, ademais, afronta o artigo 7º e inciso XXVI/CF no tocante à negociação coletiva de trabalho como direito fundamental, cujos instrumentos são reconhecidos pelo artigo 7º e inciso XXVI da Constituição Federal nos seguintes termos:

Art. 7º – "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social … "reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho".

A negociação coletiva é um dos mais importantes instrumentos democráticos necessários à modernização das relações de trabalho, como foi apregoado quando da reforma trabalhista de 2017, que teve como principal eixo fortalecê-la, inclusive, fazendo com que seus respectivos instrumentos prevaleçam sobre a lei em certas hipóteses. A MP 873/2019 desconsiderou e desrespeitou a vontade das categorias profissionais e econômicas e o resultado das negociações coletivas entre patrões e empregados no tocante ao custeio sindical, instrumento de sustentação dos sindicatos/sujeitos da negociação coletiva.

Com relação às normas coletivas vigentes, que disciplinam sobre o desconto em folha de pagamento e repasse das contribuições e mensalidades sindicais, a MP 873/2019, de efeito imediato, feriu direito adquirido e o ato jurídico perfeito, conforme artigos 5º, inciso XXXVI, da CF/88 e 6º, parágrafo 1º, da LINDB, in verbis:

Inc. XXXVI – "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Art. 6º – "A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada".
§ 1º – "Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou".

Os descontos das contribuições e mensalidades sindicais regulados em normas coletivas em vigor em 1º/3/2019, por vontade das categorias de trabalhadores, constituem situação jurídica consumada, que não pode ser desconstituída por qualquer norma jurídica, muito menos por medida provisória de duvidosa validade formal e material.

A MP 873, ainda, desafia as convenções 98 e 154 da OIT, cujo resultado poderá desestabilizar as relações coletivas, criar insegurança jurídica aos instrumentos coletivos de trabalho e enfraquecer os interlocutores sociais que defendem os interesses da classe trabalhadora (precedentes 1.295, 1.313, 1.316, 1.317, 1.338, 1.422, 1.423 e 1.446 do Comitê de Liberdade Sindical – CLS).

Portanto, sob o ponto de vista jurídico, salvo melhor juízo, a MP 873/2019 não encontra guarida no texto constitucional brasileiro e nas convenções internacionais que vinculam o Brasil, sob o aspecto da liberdade e autonomia sindicais, ante a possível desestabilização do sistema sindical e das relações coletivas de trabalho, prejudicando sobremaneira as negociações coletivas de trabalho, o que justifica seu questionamento pelos controles concentrado e difuso de constitucionalidade, na forma da Constituição Federal.

Autores

  • Brave

    é consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor titular do Centro Universitário UDF e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), além de membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Autor de livros jurídicos, entre outros, Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador e Ações acidentárias na Justiça do Trabalho.

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