Opinião

Todos perdem com decisão do STJ sobre venda de ingressos on-line

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28 de março de 2019, 15h13

Foi amplamente noticiada uma decisão (REsp 1.737.428 – RS) proferida pela ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sobre a cobrança de taxa de conveniência para a aquisição de ingressos pela internet. A decisão entendeu, grosso modo, pela ilegalidade da mencionada taxa. Para tanto, invocou –– primordialmente –– dispositivos legais do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, o acórdão em questão não se atentou para alguns aspectos econômicos relevantes.

O primeiro ponto que merece atenção diz respeito a dispositivos da Constituição Federal. Nossa carta magna inicia com o seguinte princípio fundamental: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Ao tratar da ordem econômica, a Constituição dispõe: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”. Sem me estender na matéria, pode-se dizer que o constituinte abraçou a ideia do livre mercado.

Pois bem. Nossa economia, definitivamente, não é planificada. Não temos um “Ministério dos Preços” dizendo quanto deve custar os bens que podem ser adquiridos. As experiências mais semelhantes que tivemos nesse sentido foram os malsinados congelamentos de preços. Deu no que deu, uma hiperinflação medonha que mortificava os pobres. Ora, se não temos uma economia planificada e totalmente controlada pelo Estado, a única conclusão possível é que –– salvo situações extremas –– no Brasil os preços são compostos no mercado. E como isso ocorre? Pela interação espontânea dos indivíduos.

O processo todo se inicia pela lei da escassez. Esta é a primeira e maior lei da economia, e a razão pela qual ela é vista como a ciência lúgubre (Dismal Science). Temos desejos infinitos para bens finitos. E qual seria o bem mais escasso de todos? A resposta é simples: o tempo. Não é possível, por exemplo, comprarmos mais horas em um dia. São 24 horas para todos, devemos usá-las da melhor forma possível. Buscar eficiências para conquistarmos a possibilidade de utilizar o tempo mais amplamente é o dilema constante para todos nós.

Já sabemos que a escassez é o primeiro item que determina o preço de algo, ela funciona diretamente nas curvas de oferta e demanda. Se a demanda é alta, e a oferta, baixa, o preço aumenta. Fazendo uma troça para divertir o leitor: quanto custaria a última Coca-Cola do deserto?

Além da questão da oferta, outros aspectos ditam o preço das coisas. Um pequeno vídeo do saudoso Milton Friedman, Nobel de Economia em 1976, nos explica, de forma singela, a teoria do preço utilizando apenas um simples lápis. É ver para entender. Não fosse só isso, as transações comerciais se modernizaram e tornaram o mundo mais complexo. No formidável The Nature of the Firm, publicado em novembro de 1937, Ronald Coase mostra as vantagens de organizar as atividades empresariais em uma firma (empresa, na acepção do artigo 966 do Código Civil), que reduziriam os custos de transação –– tudo o que incide para a realização da atividade empresarial. Todavia, a modernidade nos levou para outros caminhos. Há um movimento pela divisão de tarefas entre firmas, que não fazem parte de um grupo empresarial. Aliás, vê-se que isso é uma tendência que se espraia de forma global, como bem ilustrado por Thomas L. Friedman na obra O Mundo É Plano –– Uma Breve História do Século XXI.

É aí, por exemplo, que entram as tiqueteiras (empresas que vendem ingressos on-line), como a que foi condenada no acórdão. Essas empresas atuam junto aos produtores de evento e artistas, para fazer a venda dos ingressos. Ao realizar as vendas na internet, essas empresas cobram uma taxa de conveniência (devidamente informada ao comprador). O que é essa taxa? Simples: a remuneração pela atividade da empresa (inclusive as taxas das empresas de cartões de crédito), o custo de adiantamentos feitos aos artistas e o lucro da atividade.

Os ingressos ficam mais caros? Sim, é claro. Mas o movimento para a aquisição na internet está diretamente relacionado à questão da escassez do nosso tempo. Preferimos pagar mais, de modo a não precisarmos nos deslocar para comprar os ingressos. Além disso, os ingressos comprados on-line vêm com identificação pessoal do adquirente e códigos, como os QR Codes, que garantem a autenticidade –– tanto no papel como em aplicativo de celular. Isso aumenta, drasticamente, a segurança dos ingressos. Não seria exagero dizer que as tiqueteiras são o terror dos falsificadores e fraudadores.

Agora, vamos olhar para a decisão sob a ótica econômica. O negócio das tiqueteiras é ruim para os consumidores? Creio que a resposta seja negativa. Trata-se de uma vantagem que evita a perda de tempo e de segurança. Nada impede, contudo, que a pessoa se desloque e compre seu ingresso diretamente em um ponto de venda. A atividade dessas empresas é ruim para o país? Novamente, a resposta é negativa, eventos internacionais funcionam com essa modelagem, logo essas empresas acabam por viabilizar o acesso de brasileiros a eventos em escala global. E, não fosse só isso, o estímulo para eventos internacionais acaba por empregar pessoas em nosso país.

Quais são, portanto, as consequências econômicas mais patentes da decisão? Desestimular a atividade das tiqueteiras, quebrar as empresas existentes, reduzir a quantidade de eventos e tirar o país do mapa dos grandes espetáculos internacionais. Tudo isso merecia análise dos julgadores, até porque nos termos do artigo 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”; e, consoante prevê o parágrafo único, “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.

Nada disso foi feito no caso, e, aparentemente, a demanda foi julgada sem considerar consequências práticas. Resultado: quem perde é o país e os consumidores, não há vencedores, ou, talvez –– em mera suposição ––, os falsificadores de ingressos e os cambistas.

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