Opinião

Prisão em segunda instância e o sentimentalismo das massas

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27 de março de 2019, 12h03

Hitler tinha um canário. Um belo dia, morreu-lhe o canário. E, qual uma criança pequena, Hitler chorou copiosamente. Sim, o genocida era também um notório sentimentalista."[1]

Como guardião da Constituição e pilar da democracia, o Supremo Tribunal Federal vem enfrentando ao longo de suas décadas de existência os temas mais caros para a República e para os indivíduos.

Como reflexo de tempos sombrios, de reações desordenadas das ruas contra tudo o que está aí, a corte se depara mais uma vez com o problema da prisão em segunda instância, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Nos últimos anos, o assunto dominou o imaginário popular com os desvios e erros próprios das paixões comuns, demonstrando, em mais um exemplo real, que as decisões não devem advir das massas, pois de fato, como ensinou Miguel Reale em seu discurso sobre o método no Direito, o homem do vulgo pode conhecer certo, mas não tem certeza da certeza.

O estado de coisas inconstitucional de fato é um calo doloroso nos pés e dedos de uma sociedade marcada pelo litígio estrutural, pela violação massiva dos direitos fundamentais e pela omissão deliberada dos Poderes constituídos.

Todavia, a transformação do status quo deve se dar com ações organizadas, respeitando-se os processos internos e as conquistas históricas, sob pena de gravosos retrocessos e aprofundamento das violações estruturais.

A retórica policialesca, a punitivista e qualquer outra com as vestes do Panopticon de Jeremy Bentham, de que se ocupou Foucault[2], tem sempre fácil trânsito no sentimentalismo das massas, eis que, utilizando a assertiva de Theodore Dalrymple, transmite um calorzinho ao suscetível, assim como um gole de uísque provoca um quentinho no esôfago[3].

O caldo cultural engrossa ou adelgaça conforme a adoção geral da visão romântica e sentimental da existência, com pitadas de emoções desordenadas e corrompidas que conduzem, ao fim e ao cabo, à brutalidade benzida pela superioridade moral dos ungidos fins dos que se julgam detentores da razão.

Prudente é a advertência dos céus, de que todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito (Provérbios, 16:2), de modo que aos indivíduos em grupo só resta, ao menos no plano da matéria, depositar melhor confiança nas leis que nos sentimentos e na emoções.

A Constituição Federal de 1988, codificada com as razões últimas, os motivos lógicos e morais que guiaram o legislador originário, consagrou o princípio de não culpabilidade em contraposição a mil e um anos de guilhotina, gerando assim mais do que uma expectativa de direito, qual a clareza da previsão estampada na Carta, de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (artigo 5º, inciso LVII).

A flexibilização da presunção de não culpabilidade foi objeto mais recentemente dos julgamentos pela suprema corte do HC 126.292/SP e do ARE 964.246/SP. E novamente a corte se debruçará sobre o tema por ocasião do julgamento da ADC 43/DF e da ADC 44/DF, no próximo 10 de abril, momento propício para a Justiça se aconselhar com vetustos dizeres de Confúcio, para quem não corrigir as próprias falhas é cometer a pior delas.

Não se pode antecipar o que virá. Mas é certo que se inspirar no sentimentalismo das massas terminará por tragar de volta aos pulmões da democracia a asfixia das cinzas do Império, quando era a praxe enjaular cidadãos antes mesmo de uma condenação em primeira instância. Lembremo-nos que, quando o povo teve a oportunidade de ser juiz, condenou Jesus e salvou Barrabás.


[1] GORDON, Flávio. Hitler tinha um canário: notas sobre o sentimentalismo, 2018. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/flavio-gordon/2018/11/21/hitler-tinha-um-canario-notas-sobre-o-sentimentalismo>. Acesso em: 19.mar.2019.
[2] Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
[3] DALRYMPLE, Theodore. Podres de Mimados: as consequências do sentimentalismo tóxico. São Paulo: É Realizações, 2015. p. 72.

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