Opinião

Considerações sobre o processo legislativo da Lei 13.654/2018

Autores

  • Octavio Orzari

    é sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

  • Tairone Messias Rosa

    é técnico do Senado e advogado. Graduado em Direito e pós-graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).

27 de março de 2019, 14h29

A Lei 13.654, editada em 23 de abril de 2018, provocou intenso debate na comunidade jurídica e nos tribunais acerca de sua constitucionalidade formal. A norma alterou o Código Penal e, dentre outras mudanças, revogou o inciso I do parágrafo 2º do artigo 157, que previa a causa de aumento de pena para o roubo mediante o “emprego de arma”[1].

A redação anterior não especificava o tipo de arma que ensejava a aplicação da referida majorante. Por essa razão, a utilização, pelo agente, de uma arma branca, por exemplo, era suficiente para a configuração da causa de aumento. Já o texto atual do dispositivo deslocou o agravamento do emprego da arma de fogo para o parágrafo 2º-A do artigo 157 do Código Penal, ao mesmo tempo em que excluiu do ordenamento jurídico o inciso que se referia genericamente às armas. Consequentemente, trouxe em seu texto uma novatio legis in mellius, já que as únicas armas que, agora, rendem o agravamento da pena são as armas de fogo.

Em uma leitura não tão aprofundada, muitos defenderam que a exclusão do dispositivo que previa a causa de aumento de pena pelo uso de arma branca teria sido um erro ocorrido durante a tramitação legislativa da matéria no Senado Federal. A premissa, nesse caso, é a de que não faria sentido que uma lei voltada a punir com mais rigor o roubo cometido com o emprego de arma de fogo e com explosivos, fosse, ao mesmo tempo, mais leniente quanto aos crimes cometidos com outros tipos de armas (facas, facões, tesouras etc.).

A incompreensão sobre o trâmite de proposições nas Casas do Congresso levou alguns até mesmo a afirmar que teria havido usurpação da vontade do legislador, pois a revogação da majorante, segundo se alegou, não teria passado formalmente pelo crivo dos parlamentares, ou seja, não teria sido propriamente votada e aprovada pelos senadores.

De acordo com essa visão, a retirada da causa de aumento prevista no parágrafo 5º do artigo 157 do Código Penal teria sido fruto de uma atividade autônoma e inovadora dos servidores da Coordenação de Redação Legislativa (Corele), órgão da estrutura administrativa do Senado que é responsável pela revisão final de textos aprovados. Portanto, para essas pessoas, teria ocorrido alteração do conteúdo substantivo do projeto de lei sem o aval dos representantes eleitos, o que acarretaria inconstitucionalidade formal.

Este artigo visa a contribuir para melhor elucidar a questão, demonstrando que o processo de edição da Lei 13.654/2018 pelo Poder Legislativo seguiu, rigidamente, todos os cânones normativos da Constituição Federal, não tendo havido qualquer inconstitucionalidade.

Aliás, essa também foi a constatação do Tribunal de Justiça de São Paulo. No julgamento do Incidente de Inconstitucionalidade 0017882-48.2018.8.26.0000, o órgão especial do TJ-SP reviu posicionamento anterior da 4ª Câmara de Direito Criminal e atestou que a Lei 13.654/2018 é constitucional. O excerto abaixo, extraído do voto vencedor do desembargador Alex Zilenovski, é bastante elucidativo acerca do entendimento jurídico firmado: “(…) Vício do devido processo legislativo inocorrente. Mera irregularidade na publicação errônea da votação terminativa da CCJ do Senado que aprovou o projeto e a emenda aditiva. Correção feita pela CORELE somando o projeto original e a emenda aditiva 1, constando a revogação aprovada pela CCJ – sanando o erro da publicação (…)”.

A mesma compreensão quanto à constitucionalidade da norma vem sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça. A corte tem aplicado a nova lei regularmente, afastando o aumento de pena por uso de arma branca nos crimes de roubo (por exemplo, AREsp 124.9427/SP, de 29/6/2018).

Além de informar os tribunais, o Senado Federal esclareceu a Procuradoria-Geral da República, que arquivou o procedimento administrativo destinado a embasar eventual ação direta de inconstitucionalidade, tendo a PGR afirmado que: “Não se vê configurado, portanto, o aventado vício formal de inconstitucionalidade por afronta ao devido processo legislativo”.

Apesar dos múltiplos pronunciamentos já havidos pela plena constitucionalidade da Lei 13.654/2018, afigura-se de todo relevante debruçar-se sobre o processo legislativo de gênese dessa norma para sejam afastadas quaisquer dúvidas eventualmente remanescentes quanto à inexistência de vícios formais no processo de elaboração da lei. Ademais, impende registrar o rigor técnico dos órgãos que atuam em apoio à atividade legislativa.

1. Da iniciativa da proposta
Em 24/3/2015, o senador Otto Alencar apresentou à Mesa do Senado proposição legislativa que visava a alterar o Código Penal para “prever aumento de pena para o crime de roubo praticado com o emprego de arma de fogo ou de explosivo ou artefato análogo que cause perigo comum”.

No texto inicial do projeto, autuado no Senado Federal sob o número 149/2015, já havia a previsão explícita de revogação do inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal (artigo 157, parágrafo 2º. A pena aumenta-se de um terço até metade: I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma), como se pode constatar no acesso direto ao documento, disponível no site do Senado Federal[2].

2. Da fase instrutória e deliberativa do PLS 149/2015
2.1.

Após a regular publicação da matéria, o PLS 149/2015 seguiu à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) para exame e deliberação. A proposição se enquadrava naquelas submetidas, por força regimental, à tramitação terminativa, ou seja, que dispensa a manifestação do Plenário para que a matéria possa ser considerada aprovada, conforme previsto na Constituição de 1988, artigo 58, parágrafo 2º, e no artigo 91, inciso I, do Regimento Interno do Senado.

O prazo regimental para emendamento por senadores não integrantes da comissão transcorreu sem a apresentação de propostas para modificar o texto inicial, distribuindo-se ao relator designado na CCJ, senador Antonio Anastasia. Em 9/7/2015, apresentou seu relatório pela aprovação do Projeto de Lei do Senado 149, de 2015 (texto disponível no site do Senado Federal).

Na 37ª Reunião Ordinária da CCJ, a Presidência concedeu vista do relatório àqueles senadores que a requereram e, posteriormente, em 8/11/2017, a matéria retornou à pauta do colegiado, para ser apreciada pelos senadores. A inclusão do PLS 149/2015 na ordem do dia da 49ª Reunião Ordinária da CCJ se deu em caráter prioritário, no contexto de um esforço conjunto para deliberar matérias que pudessem contribuir para equacionar os problemas de segurança pública.

2.2.
No curso da reunião, a senadora Simone Tebet entendeu pertinente sugerir o acréscimo de novos dispositivos ao texto do projeto inicial. Ofereceu, assim, a Emenda Aditiva 1-CCJ[3], que tinha por finalidade tratar das “substâncias explosivas” nos crimes de furto e roubo.

Na mesma 49ª Reunião Ordinária, a emenda aditiva foi examinada pelo relator, que emitiu voto favorável à aprovação da emenda, concordando com a inclusão dos novos dispositivos sugeridos.

Observe-se que a emenda 1 em momento algum tratou da não revogação do inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal. A modificação versava apenas algumas sugestões adicionais, não propondo nenhuma redução da proposta original.

Para se rememorar em detalhes os debates que precederam à votação, é bastante oportuna a leitura das notas taquigráficas atinentes ao processo deliberativo da matéria, as quais também se encontram disponíveis, na íntegra, no site do Senado.

Encerrada a discussão e passada à fase de votação, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou o projeto e a emenda aditiva por 14 votos sim e 3 votos não, conforme lista de votação nominal.

2.3.
Aprovou-se, assim, tanto a proposição principal (texto original do PLS 149/2015) quanto a proposição acessória (Emenda Aditiva 1-CCJ).

A fim de bem cumprir o teor da deliberação tomada pelos senadores, a Comissão de Redação Legislativa (Corele) procedeu então à junção dos dois textos aprovados[4].

O referido órgão técnico apenas somou o projeto original e a Emenda Aditiva 1, constando a revogação aprovada pela CCJ.

A consolidação, portanto, não envolveu nenhuma alteração de mérito sobre o que havia sido votado. Abrangeu apenas uma operação mecânica de aglutinação dos textos aprovados.

Não houve a supressão do artigo do projeto que revogava a causa de aumento do inciso I, parágrafo 2º do Código Penal (artigo 3º), pois esta constou desde o primeiro momento do projeto aprovado pela CCJ do Senado.

Logo, não procede falar-se que a revogação do inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal se deu sem a aprovação dos parlamentares.

2.4.
Após a consolidação dos textos, a matéria seguiu à Mesa do Senado para aguardar a eventual interposição de recurso contra a tramitação terminativa, o que levaria o texto para a deliberação do Plenário da Casa. Seguiu-se, portanto, rigorosamente, o devido processo legislativo, notadamente as diretivas constantes do artigo 91 do Regimento Interno do Senado.

Como não houve a interposição do recurso regimental, o projeto, então, foi enviado para a Câmara de Deputados, onde recebeu o número 9.160/2017, e foi apresentado ao Plenário no dia 23 de novembro de 2017[5].

2.5.
No dia 1º de dezembro de 2017, foi encaminhado a diversas comissões, consignando-se expressamente que a matéria estaria sujeita à apreciação do Plenário da Casa. Além disso, foi concedido regime de tramitação de urgência.

No dia 28 de fevereiro de 2018, a matéria foi submetida à discussão no Plenário. Foram proferidos os pareceres dos relatores: a Comissão de Finanças e Tributação concluiu pela compatibilidade e adequação financeira e orçamentária e, no mérito, pela aprovação do projeto, na forma do substitutivo apresentado, e pela rejeição dos demais; a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do projeto, na forma do substitutivo apresentado pela Comissão de Finanças e Tributação, e pela rejeição dos demais; a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado concluiu pela rejeição de todas as emendas.

Em seguida, foram apresentadas emendas de plenário 1 a 3. No entanto, todas foram rejeitadas, sem modificação do projeto.

O Plenário, então, em sessão deliberativa extraordinária, aprovou o substitutivo apresentado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados.

O teor da deliberação da Câmara de Deputados não suprimiu ou alterou a redação de qualquer artigo da proposta original, apenas acrescentou a previsão de modificação da Lei 7.102/83, inserindo nesta o artigo 2-A (mecanismo de inutilização de cédulas de moeda corrente disponíveis em caixas eletrônicos)[6].

A matéria, por fim, retornou ao Senado Federal e recebeu o registro como “Substitutivo da Câmara de Deputados nº 1, de 2018, ao Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2015”, devendo-se grifar, para fins de pesquisa, que a tramitação foi registrada no site do Senado separadamente da proposição original[7].

2.6.
No dia 6 de março de 2018, a proposição foi apresentada no Plenário do Senado e, em seguida, enviada novamente à Comissão de Constituição e Justiça.

Enquanto aguardava designação de relator na CCJ, houve requerimento de urgência, com inclusão na ordem do dia da sessão deliberativa do Plenário, órgão no qual foi aprovada, em 27 de março de 2018, com anuência à redação dada pela Câmara dos Deputados, sendo encaminhada à sanção presidencial.

3. Considerações finais
A atividade estatal dirigida à produção de normas jurídicas escritas se consubstancia no processo legislativo, que pode ser entendido como o “conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção) realizados pelos órgãos legislativos e órgãos cooperadores para o fim de promulgar leis”[8].

Por sua vez, Jeremy Waldron, em sua conhecida obra A dignidade da legislação, chama a atenção para a importância do respeito à lei e à deliberação majoritária como forma de assegurar o direito à igual participação dos membros da sociedade nos assuntos coletivos, sendo digna de destaque a clássica lição de Geraldo Ataliba sobre a atividade legislativa, segundo a qual:

Deveras, esta é a mais nobre, a mais elevada e a mais expressiva de todas as funções públicas. Quem pode fixar genérica e abstratamente, com força obrigatória, os preceitos a serem observados não só pelos cidadãos, como pelos próprios órgãos do Estado, evidentemente enfeixa os mais altos e os mais expressivos dos poderes. (…) a mais transcendental de todas as funções do Estado é a legislação. Tudo o mais é-lhe subordinado: todas as demais funções resolvem-se em obedecer à lei, aplicar a lei, dar cumprimento à lei. (…)[9].

Depois dessa longa exposição, fica evidente que não se pode constatar qualquer fundamento técnico-jurídico para sustentar eventual inconstitucionalidade formal da Lei 13.654/18, uma vez que não houve mácula no seu trâmite legislativo. Confirma-se, assim, a presunção de constitucionalidade das leis aprovadas pelo Poder Legislativo, a qual somente pode ser afastada excepcionalmente, se comprovados graves vícios formais que subvertam a legitimidade democrática ínsita ao processo legislativo constitucional.


[1] O assunto foi primorosamente tratado por Alessa Pagan Veiga e Leandro Fabris Neto no seguinte artigo: https://www.conjur.com.br/2018-mai-08/constitucionalidade-formal-lei-136542018.
[2] “Art. 3º Fica revogado o inciso I do § 2º do art. 157 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 dezembro de 1940.” Para esta e outras fases do processo legislativo, vide: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120274.
[3] Não se tratou, portanto, de emenda substitutiva.

Sobre a prerrogativa parlamentar de apresentar emendas, discorre Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “A reserva desse poder aos membros do Legislativo deflui do fato de que os parlamentares são membros do órgão que, de acordo com a doutrina tradicional, constitui o direito novo, apresentando-se a emenda como reflexo desse poder de estabelecer o novo direito” (Do processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 231).
[4] Vide: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7275778&ts=1548950283850&disposition=inline.
[5] Vide: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2163149.
[6] Vide: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=03F7776E2A7AC6C2702BAE8659A70CBF.proposicoesWebExterno1?codteor=1642561&filename=Tramitacao-PL+9160/2017.
[7] Vide: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132413.
[8] SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 42.
[9] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2001, 2ª ed., p. 48-9.

Autores

  • Brave

    é advogado do Senado, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e professor voluntário na mesma universidade.

  • Brave

    é técnico do Senado e advogado. Graduado em Direito e pós-graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).

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